21 Outubro 2023
"A força da participação brasileira pode ser sentida nas conferencias nacionais e nos números impressionantes do Plano Plurianual (PPA) participativo, dos maiores do mundo. Ainda assim, a impressão que se tem é que esse movimento não penetrou no âmago da sociedade. Esse paradoxo não é só brasileiro. A pergunta que fica é: a participação hoje tem expressão suficiente para sustentar a democracia e conter o conservadorismo que ainda assola o país?", escrevem Félix Ruiz Sanchez, cientista social e pesquisador no Observatório das Metrópoles e André Leiner, arquiteto, administrador público e pesquisador no Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP, em artigo publicado por Outras Palavras, 19-10-2023.
Esse texto procura chamar a atenção para alguns pontos recentes do debate publico e sua incidência sobre o atual quadro da participação no país. Comenta também sobre o seminário acontecido na Secretaria Nacional de Participação Social, entre junho e julho desse ano, onde se procurou explorar caminhos para uma participação popular ampla, ao alcance de todos. Relata, ainda, uma proposta apresentada nesta ocasião pelos autores desse texto. O intento desse relato é permitir uma discussão mais ampla, além daquela ocorrida durante o seminário. Ainda que situado em um contexto novo, de emergência da extrema direita e também de novas tecnologias, esse debate se inscreve numa controvérsia antiga, que versa sobre a centralidade do protagonismo popular na politica. Tema esse que se renova pela necessidade de ruptura de um modelo vigente de se produzir política frente a situações complexas, dotadas de elevado grau de incerteza, como as que vivemos nos tempos atuais.
Em teoria, o sistema democrático brasileiro tem um bom desenho. O legislativo representa os territórios e a participação realiza o seu controle social. Na prática, contudo, o legislativo tem se mostrado hegemônico e o país vem flertando, e não é de hoje, com a democracia iliberal. Fortalecer a democracia nesse contexto implica em fortalecermos a participação.
A força da participação brasileira pode ser sentida nas conferencias nacionais e nos números impressionantes do Plano Plurianual (PPA) participativo, dos maiores do mundo [i]. Ainda assim, a impressão que se tem é que esse movimento não penetrou no âmago da sociedade. Esse paradoxo não é só brasileiro. A pergunta que fica é: a participação hoje tem expressão suficiente para sustentar a democracia e conter o conservadorismo que ainda assola o país [ii]? Tem-se a impressão de que, passado quase um ano, a vontade popular ainda não tem lugar no governo Lula. Um olhar atento mostra, contudo, que lugar tem, e de honra.
Pautas identitárias estão presentes na estrutura de governo e procuram uma parcela do seu orçamento e do seu poder. E é evidente que essa presença influencia a agenda publica e sua execução. Essas pautas fazem parte de agendas por direitos e disputam, tanto entre si, quanto com as demais agendas de governo. Causas populares integradoras, como o Fome Zero e o Bolsa Família, que possuem alcance transversal, ainda existem, mas não são mais novidade e tampouco empolgam da mesma maneira. Apesar de seu peso inquestionável, perderam o viço e foram incorporadas à real politik do presidencialismo de coalizão. Contemplam ainda, contudo, forte lastro institucional e operacional. São joias da coroa da nossa democracia.
É fato que é a elite do povo que tem lugar no atual governo (todo governo é uma elite). Era de se esperar que essa elite operasse como uma correia de transmissão conectando o governo à suas bases. Contudo, isso ainda não aconteceu. Ou melhor, se aconteceu, não demonstrou, pelo menos até agora, ter a força que se esperaria. Uma possível hipótese para explicar isso é que a presença popular no governo hoje representa um aglutinado de interesses, antes de mais nada identitários do que populares, amplo senso.
Esse modo de fazer politica tem uma razão de ser. Cada agenda identitária é um foco de resistência e uma clivagem. São nesses lugares que as memórias da opressão perdem invisibilidade e a história é reescrita. E são nesses lugares que a superação dessa opressão acontece, pelo avanço de direitos. E isso é fundamental e inegociável para a democracia. São outras joias da nossa coroa.
Não vimos até agora, contudo, pelo menos não dentro do governo, a formação de uma agenda aglutinadora, ampla, e capaz de unificar e mobilizar o campo popular como um todo. E assim, o povo tem mostrado sua voz como pode, por meio da representação legislativa, com todas as mazelas que isso implica no contexto de um presidencialismo de coalizão.
Em 2016 não foi muito diferente. O governo que promoveu a maior participação da história da democracia brasileira, quiçá do mundo na época, sofreu um golpe legislativo. Participação para garantir o avanço de direitos de parcelas da sociedade parecer ser, portanto, diferente de mobilização de base para emancipação popular, amplo senso. Daí a necessidade de pensarmos uma participação que possa desempenhar esses dois papéis. Grosso modo, essa foi a pauta apresentada pelos dirigentes da SNPS para a construção do seminário realizado em junho e julho desse ano [iii].
No decorrer do seminário, alguns pontos importantes foram aparecendo, não necessariamente na ordem aqui exposta. O primeiro é que povo do qual estamos falando inclui as classes D e E. Ou seja, inclui a parcela da sociedade que elegeu o atual presidente e salvou o país de um espetacular naufrágio politico. Como já publicado nessa coluna [iv], Pochmann aponta que de 2015 para cá essa parcela cresceu, e muito. A quantidade de miseráveis dobrou e a de pobres e miseráveis, juntos, recebeu um incremento de 40%. Isso configura não só um retrocesso de bem-estar social como também uma inversão abrupta de tendência. E como aponta Aldaiza Spozatti no mesmo seminário, a interrupção desse percurso de deterioração democrática e de aprofundamento de cidadania sub-normal só é possível se estabelecermos contato com essa população. E complementa, esse grupo, que configura os “beneficiários da renda cidadã”, a despeito da determinação legal [v], não tem de fato qualquer possibilidade de participação nas politicas publicas, a não ser nos períodos eleitorais.
Mas como dar representatividade e expressão a um estrato que reúne, genericamente, em uma única categoria, 1 em cada 4 adultos da sociedade brasileira? E por que a participação, hoje em curso, não atinge essa população? O Professor Wilson Gomes, no seminário, desenha uma hipótese. Lembra com humor as idiossincrasias da participação presencial e comenta sem saudades de dinâmicas participativas extraordinariamente longas, que desafiam a resistência dos cidadãos mais aguerridos. Corretamente nos faz perceber que essas dinâmicas, ainda que de valor politico inquestionável, não apresentam apelo para o campo popular e, menos ainda, para o publico jovem ou para o público iniciante na politica. E desafia: os recursos utilizados para mobilizar a população no governo anterior não poderiam ser utilizados para mobilizar a população em favor desse governo? Não seria o caso de integrar a participação a uma politica efetiva de comunicação? E deu como exemplo a mobilização de idosos e ativistas diletantes que, não só acamparam defronte aos quartéis por semanas a fio, como, foram a Brasília invadir os três poderes em 8 de janeiro desse ano.
Sedutora como possa parecer, convenhamos, essa argumentação ainda é frágil: a estratégia empregada pelo governo anterior é de adesão, e não de participação. E participação pressupões não só adesão, mas também reflexão, debate, representação (organização), e tomada de partido. É, portanto, diferente e mais complexo do que mobilizar uma massa para aderir a uma agenda pronta.
Ademais, o pressuposto de que o grosso da população está “conectada”, também é discutível. Pode estar conectada, mas que conexão é essa? Qual é a qualidade da interação e de organização comunitária que essa conexão permite? Reduzir a participação social popular à grupos de whatsaap e mídias sociais é uma estratégia que adapta a participação à expedientes de controle da circulação de conteúdos ideológicos. São os mesmos expedientes utilizados pelo capitalismo de vigilância [vi]. O emprego da mídia e da tecnologia é essencial para o engajamento de massa, mas longe de ser o suficiente para promover a participação. Participação envolve o reconhecimento de diferenças, a construção de convergências, a negociação de coalizões, e ainda o elenco de prioridades coletivas. E isso tudo de modo inclusivo, não importa a tecnologia.
Existem, portanto, dois caminhos possíveis para serem percorridos por este governo, não excludentes: o caminho da adesão popular à programas desenhados pelo governo, percorrido com a participação de grupos próximos, e o caminho da ação politica de base e de construção de um movimento participativo nacional, a exemplo das conferências.
A primeira opção descansa na metodologia do Orçamento Participativo (OP) e no uso de recursos digitais. O perigo reside justamente na agenda ser definida nas franjas das sedes dos governos, distante das populações e das suas reais necessidades. A segunda implica em realizar um pacto com a educação formativa e mobilizar a base de servidores do Estado para escutar e mobilizar as populações, no próprio território. Não são palavras nossas, mas de Frei Betto [vii].
O desafio, portanto, parece ser ajustar o paradigma freireano à nova realidade social e tecnológica do país, e para tal, é preciso ir além do OP. Isso pois o OP é um espaço que coleta aportes de participação conjuntamente para todo o governo, e o que precisamos é que todas as áreas de governo sejam, em si, participativas e integradas no seu trato com o beneficiário na ponta, i.e., um meio vivo e humano de atenção permanente na ponta, subsidiando cada área de governo. Hoje, a participação, como é realizada, está restrita à um expediente paralelo, com um fim em si próprio. São espaços de disputa politica onde atuam representações do povo, ou melhor, sua elite. Sim, participação politica não deixa de ser isso, e isso é fundamental, mas não pode ser só isso, é preciso ir além.
A distância para com o povo existe, portanto, e está se ampliando. Bruno Manso, em seu novo livro Fé e o Fuzil, aponta que os partidos de esquerda perderam o toque no contato com o povo e que, frente a isso, o povo se organizou [viii]. Preto Zezé, em debate sobre esse assunto com Manso, endossa: a favela é autodidata, tem identidade própria e vem se organizando para construir uma perspectiva de vida melhor, não importa o partido no poder. E conta que montou uma Frente Parlamentar das Favelas “com partido de tudo o quanto é lado”. Uma agenda ampla e popular já existe e tem forma, portanto, a despeito do reconhecimento do governo. E ela envolve “o povo aprender a ler, fazer conta e administrar seus próprios interesses e empreendimentos”, conta o presidente da Central Única das Favelas (CUFA) [1].
Oras, mas isso não seria Paulo Freire ministrado pelas próprias comunidades? Infelizmente, não. No esteio de um aprendizado autodidata e da ausência do Estado, ecos liberalizantes passaram a ressoar pelas comunidades. Discursos nascidos da atomização individual, da miséria e do consumo massivo de mídia, uma crença na informalidade, na parcialidade do sistema de justiça e na força do mercado que acabou por ser incorporada pelo mundo crime e pelo do pentecostalismo, registra Manso.
Isso quer dizer que o Prof. Wilson Gomes tem razão, há de fato uma lacuna comunicacional do Estado no sentido de oferecer e criar uma perspectiva democrática de vida para o campo popular. E Frei Betto vai mais longe, essa lacuna corresponde há um vácuo de autoridade formativa. Mesmo nesse vácuo, a comunicação entre as pessoas persiste. E quando isso acontece, o conteúdo circulante hegemônico se encarrega de formar o ideário popular, dando lugar para a emergência novas autoridades e valores, mostra Manso. É preciso, portanto, que o Estado restaure o campo da comunicação popular e junto com ele, restaure sua autoridade educacional e formativa sobre o território. Para isso, contanto, é preciso um método, e foi isso que ousamos propor no seminário da SNPS e que publicamos aqui para ser pensado coletivamente.
A proposta apresentada no seminário da SNPS é um desdobramento de uma proposta anterior, elaborada durante os debates para a formulação do novo Orçamento Participativo Nacional, atualmente vigente. Esses debates foram realizados dentro da Rede Brasileira de Orçamento Participativo entre o fim de 2022 e meados de 2023. O texto abaixo resume e revê conceitos dessa proposta, e adiciona alguns pontos complementares, não expostos durante o seminário da SNPS.
É sabido que a politica de transferência de renda promove uma ativação da base econômica. É de conhecimento também, que a maior parcela dos empregos no Brasil é gerada por micro e pequenas empresas e que essas empresas são impactadas direta ou indiretamente por essa politica. Esse expediente, contudo, tem parecido ser insuficiente para mobilizar a oferta de infraestrutura e de serviços públicos onde essas politicas acontecem. Isso acontece porque o regime de alocação de recursos e controle do gasto é ainda politicamente centralizado (agenciamento politico).
Com isso em mente, pensamos em um desenho que pudesse alterar esse quadro e renovar o pacto da institucionalidade social, ou ampliando para o campo popular. Para conceber esse modelo levamos em conta três metodologias, a de painel popular [2], a metodologia de Orçamento Participativo e a de montagem das conferências nacionais dos conselhos de politicas publicas.
O Brasil reúne hoje condições únicas, não encontradas em outros países: uma sólida tradição em inovação democrática [ix], um sistema bancário-tecnológico robusto [x] e um programa de transferência de renda já estabelecido e de amplo alcance. Isso torna possível implementar no Brasil uma participação ampla, integral e integrada, i.e., acessível a todos, permeando todo o governo e interligada.
Para que isso seja possível propomos a adoção de um conceito estruturante, o de cidadania coletiva. Cidadania coletiva é a inteligência social do conjunto da sociedade, que nasce do interesse comum que nos une. É a cidadania que vemos nos mutirões, e que vimos nos movimentos populares que limparam as praias brasileiras em 2019 e que mitigaram, parcialmente, a inoperância criminosa do Estado durante a pandemia de 2020. É uma cidadania suplementar à cidadania formal, centrada no individuo. É uma cidadania, ambicionamos, que tem como foco o interesse compartilhado, o sentimento de pertencimento, a preservação ambiental e a transparência. Acreditamos que esse sentimento ainda possa existir na sociedade, e possa ser o motor de um novo pacto social. O segredo reside em mobilizar esse sentimento.
Propomos começar estabelecendo diálogo com a parcela mais vulnerável da população, aquela que mais depende de relações de solidariedade e reciprocidade para sobreviver, as classes D e E, beneficiárias de programas de transferência de renda. Seguindo essa ideia, propomos criar um beneficio coletivo, um montante complementar ao beneficio da renda mínima. Esse novo beneficio seria distribuído mensalmente, na maneira de um valor adicional, de mesmo valor para todos, depositado pelo governo no cartão do beneficiário. Coletivo, pois, esse montante, apesar de ser disponibilizado para cada um, é um recurso comunitário e como tal, é um recurso que não poderá ser sacado, só transferido mensalmente da conta do beneficiário para uma outra conta, compartilhada, pertencente a todos beneficiários de um território ou região (territórios participativos) [3].
É, portanto, um beneficio coletivo, mas que é depositado mensalmente, de forma cumulativa, pelas mãos dos próprios beneficiários em uma conta conjunta da comunidade. Esses depósitos, por serem cumulativos, criam por assim dizer uma poupança coletiva, ou ainda, um baú comunitário. Esse depósito mensal, contudo, não seria feito de maneira indiscriminada, mas feitos somente por meio de rubricas correspondentes à setores do governo, que subdividem essa conta, tais quais: i.cultura; ii. saúde; iii. educação; iv. Obras (inclui transportes); v. trabalho e renda; vi. meio ambiente; vii. direitos humanos (inclui segurança), viii. segurança alimentar e ix. assistência social. Na medida que os depósitos vão são sendo realizados, esses depósitos vão formando “fundos” setoriais de um território participativo.
Por serem coletivos, nada mais natural que a evolução do saldo geral e de cada rubrica possam ser amplamente acompanhados, seja pelos depositantes ou pela sociedade em geral. No Rio Doce fizemos algo semelhante por meio de jornais [4], e funcionou. Essa é uma medida que permite que populações possam, além de consumir, acompanhar o interesse existente entre elas e investir conjuntamente (pensar no futuro), utilizando-se para tal, regras de participação igualitária – uma pessoa um voto ou, no caso, um mesmo valor de depósito.
Esse desenho propõe que o recurso do investimento social (renda mínima) possa a ser reinvestido pelas mãos dos próprios beneficiários, e direcionado à implementação de melhorias nas suas condições de vida nas regiões onde vivem e trabalham. É uma politica, portanto, de reinvestimento social, algo que carrega todo peso simbólico dessa possibilidade de escolha. É, portanto, uma moeda educativa, uma proposta que confere aspectos formativos, lúdicos, educacionais e por que não, democráticos, à participação econômica e politica.
A pergunta que se faz em seguida é, naturalmente, o que fazer com o recurso arregimentado e como priorizá-lo? Por meio da formação politico-pedagógicas e da participação social, evidentemente. Isso quer dizer que será preciso não só determinar coletivamente prioridades de desenvolvimento para o território, mas também estabelecer contato com o governo de forma organizada no intento de adquirir uma correspondência de investimento por aportes estatais de contrapartida ao montante “poupado”. Nada mais justo.
Para ser democrático, porém, esse processo de participação, massiva e igualitária, precisa ser calibrado por mecanismos que garantam a equidade. Isso implica não só submeter a massa de votação à uma gestão participativa local, como também garantir o direito de deliberação por parte de parcelas identitárias, representativas de minorias e setores de governo (conselhos de politicas publicas). Isso pois, caso contrário, invés de fortalecer o contexto democrático, esse expediente participativo acaba por fragilizá-lo, pois permite e induz a formação de ondas de populismo majoritário.
Esse acoplamento é um ponto delicado no desenho de processos participativos e, não raro, implica em tensões sociais de toda ordem. A solução que encontramos para lidar com essas tensões foi a de criar uma paridade entre o voto popular e voto representativo. Isso é, submeter o conjunto de preferências vindas do voto popular ao crivo do voto colegiado (conselhos). Um crivo que não se traduz como um direito de veto, mas em um direito de realocação de até 50% do total do beneficio anual arrecadado, na forma de uma retirada linear e proporcional de todas as rubricas, e de possibilidade de realocação desse montante conforme prioridades politicas dos conselhos.
Ciclo continuo, o passo seguinte é a adaptação da vontade expressa pelo voto popular ao novo contexto oriundo das diretrizes expressas pelos conselhos. Nossa solução para esse passo é a promoção de assembleias populares mediadas por expedientes participativos do tipo OP. Assembleias em que, não só a paridade final dos fundos é consolidada, mas em que também são formuladas propostas para cada rubrica. O desenvolvimento dessa formulação, por sua vez, pode tanto ser feita tanto por novas oficinas de OP, como por oficinas participativas promovidos pelos próprios conselhos de politicas publicas, correspondentes a cada rubrica, algo a ser decidido território à território.
Esse ciclo pode ser pensado de maneira anual ou bianual. Ao se debater a destinação de uma arrecadação de um ano, concomitantemente, ocorre a arrecadação do ano corrente, cujo saldo é objeto de deliberação no ano subsequente.
Essa arquitetura pode alcançar uma organização que possibilite diálogos em âmbito estadual e federal, a exemplo das conferencias de politicas publicas. Estamos falando, portanto, da formulação participativa de Planos de Obras, Serviços e de Atenções Sociais. Planos lastreados em montantes e propostas coletivamente arregimentadas e que os governos estaduais e federal possam reconhecer como legítimos, e corresponder com aportes de contrapartida.
Uma proposta dessa natureza implica, portanto, não só em oferecer voz, mas também organização territorial aos beneficiários de programas de transferência de renda mínima. Ainda implica em envolver e co-criar, com a rede do governo federal e seus beneficiários, um processo de emancipação tornando esses beneficiários em sujeitos políticos (educação popular). E por fim, implica em utilizar o sistema interbancário como instrumento de agregação de capital e acesso a recursos formativos para o combate a desigualdades.
No que tange à composição dos territórios participativos, cabe ainda observar que apesar das sedes municipais concentrarem o poder econômico e politico local, a demanda popular frequentemente ultrapassa esse perímetro e constitui uma mancha mais ampla, intermunicipal. Como resultado, sua representatividade fica fragmentada na escala local. Do mesmo modo, muitos serviços essenciais do território são de provimento estadual, e nesse caso, uma representação estadual implica em arregimentar diferentes representações municipais, o que também é difícil. Desse modo, o seminário propôs que considerássemos a escala metropolitana como estruturadora dos territórios participativos, por ser a que melhor permite dar expressão a sentimentos de pertencimento territorial e regional. A prof. Tania Bacelar desenvolve esse ponto na sua fala.
Pois bem, se considerarmos as unidades de atendimento da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil e o sistema interbancário como um todo, e ainda, as unidades de referência do SUAS (com os CRAS e os Centro Pop) como portas de formação desse processo, e por fim, se considerarmos ainda o atendimento dos beneficiários do CadÚnico, estamos falando da organização de quase 100 milhões pessoas e o emprego de dezenas de milhares de servidores públicos. Isso implica em um esforço para que tanto os CRAS, como o CadÚnico, passem a ter sua área de abrangência territorializada, de modo a gerar uma linguagem comum e um diálogo interinstitucional entre eles. Expediente esse que, posteriormente, pode se estender a toda rede de beneficiários de programas sociais federais.
Muitas dessas concepções já estão presentes e foram implementadas pelo PRONAT (2003) e pelos Territórios da Cidadania (2008), politicas apresentadas por Humberto Oliveira na sua fala inaugural do seminário da SNPS. Cabe mencionar ainda que esse mesmo procedimento pode ser implementado por meio digital, ainda que isso implique em algumas adaptações ao desenho proposto acima [5].
Ainda que essa proposta apresente uma “estrutura”, seu cerne é o direito conferido à população de pensar, reiteradamente, todo mês, sobre seu futuro, e como levar esse futuro a cabo, utilizando para isso meios democráticos e transparentes. É uma proposta que procura inscrever, pela ação formativa e pedagógica, uma perspectiva livre e democrática de futuro no cotidiano popular. Uma perspectiva que se renova continuamente e que, mediante implementação, só tende a crescer e se consolidar (faz parte do algoritmo da proposta).
Existe, subjacente ao “expediente” participativo proposto, portanto, debates, conversas de botequim, reuniões em escolas, praças e pontos de ônibus e nos CRAS, compondo toda uma gama de entendimentos que amparam o momento da deliberação, e que passam a existir no tecido do cotidiano fortalecendo todo o ecossistema politico.
Ainda que ambiciosa, essa proposta deseja expandir, mas não definir contornos para o campo da participação. Por acreditarmos que a participação é um processo pedagógico, antes que institucional, é da nossa percepção de que participação é algo que ultrapassa os “expedientes” acima descritos, e que se expressa a cada encontro pelo fortalecimento do bem comum, sejam esses encontros reconhecidos ou não pelo governo ou pelas instituições. Isso posto, esperamos que o texto acima possa ser enriquecido pelas mãos do coletivo de modo que passe refletir e incorporar uma gama cada vez maior de entendimentos do que seja participação, em especial, pelo crivo daqueles que mais podem se beneficiar dessa politica.
Essa proposta responde ainda à uma necessidade de ruptura de um modelo vigente de se produzir ciência (e politica) frente a situações complexas, dotadas de elevado grau de incerteza. Não são palavras nossas, mas de Pedro Jacobi (in Lavalle & Carlos, 2022, p13). Sendo assim, parafraseando Jacobi, essa proposta foi desenhada tendo em mente de que existe hoje a necessidade de que sejam tomadas decisões consensuais por parte dos mais diversos atores da sociedade quanto aquilo que convencionalmente era restrito às comunidades de pares, na lógica da ciência normal (ou da racionalidade politica). Isso implica, por sua vez, em reconhecer a necessidade urgente de democratização do conhecimento, de um lado, e, de outro, a necessidade de corresponsabilização da sociedade no que toca a necessária defesa de seus interesses em questões de elevada importância e complexidade, como o contexto das dinâmicas socioambientais. É, portanto, uma abordagem que reconhece a necessidade de debater os problemas comuns em conjunto com os diversos atores da sociedade, entendidos como comunidade ampliada de pares. Uma formulação que demanda por avanços nas fronteiras disciplinares e na promoção de trocas fertilizadoras no contexto de uma realidade cada vez mais complexa e indeterminada. Principalmente quando a população local – que tem amplo conhecimento sobre suas realidades e cujos dados científicos não conseguem alcançar – e as pessoas mais afetadas por problemas, contribuem na definição de problemas e das respostas que precisam ser objeto de politicas publicas, pois tem conhecimento pratico sobre o assunto.
Uma honra e um prazer fazer parte de um debate tão qualificado e ter a oportunidade de contribuir para a reflexão de temas tão desafiadores. Deixamos aqui nossos agradecimentos à Renato Simões e Valmor Schiochet e à equipe da Secretaria Nacional de Participação Social, aos nossos pares debatedores Humberto Martins, Tania Bacelar, Wilson Gomes e Aldaiza Sposatti, às mais de 20 secretarias de governo participantes do seminário, e aos colegas de pesquisa do NDAC CEBRAP, do Observatório das Metrópoles e da Rede Brasileira de Orçamento Participativo.
[1] Interpretação livre dos autores, presentes no debate realizado no dia 21/9/2023, 19hs, na Livraria da Tarde.
[2] Metodologia utilizada com sucesso para a escuta de populações atingidas pelo desastre da Samarco no estuário do Rio Doce. Disponível aqui.
[3] A normatização desta proposta, assim como a definição de metodologia e objetivos da constituição dos territórios participativos, pode se dar por meio da regulamentação de ações de transferência de renda por meio de portaria ministerial ou interministerial. Uma minuta inicial pode ser encontrado em Valorização do cadastro único como instrumento de identificação e de localização dos sujeitos da gestação de uma ordem mais democrática, de Sposatti, Sanches, Leirner & Franceschinelli (2023).
[4] Esse mecanismo de transparência, de acompanhamento de saldo de votações (painel popular) por meio de jornais populares foi testado e funciona como um incentivador à participação. Para mais detalhes ver: Adrian Gurza Lavalle e Euzeneia Carlos (orgs). Desastre e Desgoverno no Rio Doce Atores e instituições na governança do desastre (2022). Rio de Janeiro, Garamond.
[5] A tecnologia social POP – Painel de Opinião Pública, incluindo a plataforma digital de código aberto beta PRIORIZE apresenta metodologia de agregação de dados e métrica compatíveis com o expediente acima exposto, e está disponível para implementação por meio de convênio com o Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento – CEBRAP.
[i] Leia sobre o PPA Participativo aqui.
[ii] A onda politica conservadora radical é um fenômeno global. Importante considerar que o cenário internacional aponta que o conservadorismo radical poderá assumir poder nos próximos 2 ou 3 anos nos EUA, Canadá, Australia, França e ainda entrar na composição da coalizão politica Alemã atualmente no poder. Sobre a condição brasileira no cenário internacional e seu impacto no mundo, recomendamos este link.
[iii] Assista o Seminário da SNPS aqui.
[iv] Saiba mais aqui.
[v] Art. 3o São objetivos do Programa Bolsa Família: I – combater a fome, por meio da transferência direta de renda às famílias beneficiárias; II – contribuir para a interrupção do ciclo de reprodução da pobreza entre as gerações; e III – promover o desenvolvimento e a proteção social das famílias, especialmente das crianças, dos adolescentes e dos jovens em situação de pobreza.
Parágrafo único. Os objetivos do Programa Bolsa Família serão obtidos por meio de: I – articulação entre o Programa e as ações de saúde, de educação, de assistência social e de outras áreas que atendam o público beneficiário, executadas pelos Governos federal, estaduais, municipais e distrital; II – vinculação ao Sistema Único de Assistência Social – SUAS, de que trata a Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993, permitida a utilização de sua rede de serviços socioassistenciais; III – coordenação e compartilhamento da gestão e da execução com os entes federativos que venham a aderir ao Programa, na forma estabelecida nesta Medida Provisória e em seus regulamentos; IV – participação social, por meio dos procedimentos estabelecidos nesta Medida Provisória e em seus regulamentos;
No artigo art. 12 da MP 1164/23 podemos verificar que “a execução e a gestão do Programa Bolsa Família são públicas e governamentais e ocorrerão de forma descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes federativos, observados a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social”.
Ora, após mais de 20 anos de experiência do Programa Bolsa Família, verifica-se que a participação dos beneficiários é praticamente nula, quando muito em poucos e raros casos de participação nos Conselhos Municipais da Assistência Social ou mais esporadicamente ainda nas Conferências da Assistência Social que ocorrem bienalmente.
[vi] Leia sobre Capitalismo de Vigilância aqui.
[vii] Veja o que diz Frei Betto aqui.
[viii] Ouça Bruno Manso discorrendo sobre esses tópicos aqui.
[ix] O Brasil vem de um período de ouro de inovação da ordem democrática, que se inicia com a constituição cidadã e tem sequência com a implementação de conselhos, orçamentos participativos e uma forte cultura de governo digital, culminando com o Marco Civil da Internet e o participa.br.
[x] Para mais detalhes, ver Fonseca, C. E. C. D., Meirelles, F. D. S., & Diniz, E. H. (2010). Tecnologia bancária no Brasil: uma história de conquistas, uma visão de futuro. FGVRAE.
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A participação que falta ao governo Lula - Instituto Humanitas Unisinos - IHU