09 Outubro 2023
Nos Estados Unidos, quase 25 mil trabalhadores das gigantes do setor automotivo Stellantis, Ford e General Motors estão em greve para exigir aumentos de salário e melhores condições de trabalho.
A reportagem é de Hélène Chevallier, publicada por Alternatives Économiques, 05-10-2023. A tradução é do Cepat.
“Você quer vale-refeição?” Caderno nas mãos, John passa de grevista em grevista. Apesar de ter um metro e oitenta de altura, ele luta para esconder seu sorrisinho. Seus colegas, cautelosos por um tempo, caem na gargalhada. Os seus antigos vales, distribuídos pelo Departamento de Agricultura aos americanos mais pobres, já não são válidos há muito tempo, mas, independentemente disso, o efeito está aí: “Foi aqui que chegamos: vale-refeição!”, ri o jovem de trinta anos, feliz com a brincadeira.
Se o ambiente é bastante bem-humorado no piquete do armazém de peças de reposição da Stellantis em Winchester (Virgínia), o ressentimento está presente quando as dezenas de funcionários começam a falar sobre o movimento ao qual aderiram em 22 de setembro passado.
Uma semana antes, o poderoso sindicato dos trabalhadores do setor automobilístico, Union Auto Workers (UAW), liderado pelo recém-eleito mas já muito popular Shawn Fain, convocou uma greve contra a General Motors, a Stellantis e a Ford.
Este movimento é histórico não pela sua escala (por enquanto), mas porque afeta os “Big Three”, as três maiores montadoras de automóveis americanas. O sindicato, que conta com 146 mil membros entre os trabalhadores do setor automotivo, optou por uma estratégia de aumento de poder em função dos avanços nas negociações.
No dia 15 de setembro, apenas três fábricas pertencentes a cada uma das montadoras e localizadas no nordeste dos Estados Unidos, berço da indústria automobilística norte-americana, foram paralisadas. Desde então, o movimento se espalhou para outras duas fábricas da Ford e da General Motors, bem como para trinta e oito armazéns de peças de reposição pertencentes à Stellantis e à GM espalhados pelos Estados Unidos. Três semanas após o início do movimento, 25 mil trabalhadores estão em greve.
Numa torrente de palavras assertivas, George Vazquez, presidente local do UAW na Virgínia, resumiu as reivindicações dos trabalhadores: “Queremos um aumento de 36% nos nossos salários em quatro anos, uma semana de trabalho de 32 horas sem redução salarial, uma verdadeira aposentadoria, o fim da contratação de trabalhadores temporários e que todos sejamos pagos no mesmo nível”.
No momento, as montadoras propõem um aumento de 20% nos salários e os avanços são, segundo o sindicato, insuficientes em relação ao resto das reivindicações.
O fim do “two-tier”, um sistema salarial de dois níveis herdado da crise financeira de 2008, é particularmente aguardado pelo movimento. Chris, na casa dos vinte anos, tenta explicar como funciona: “Meu salário é limitado; preciso esperar oito anos antes de receber no máximo US$ 25 por hora, enquanto outros colegas recebem US$ 31 pelo mesmo trabalho”.
É uma consequência da Grande Recessão, explica George Vazquez com amargura: “Isso faz parte das concessões que aceitamos para salvar a nossa empresa há quinze anos”.
Este sistema salarial de dois níveis tem sido amplamente utilizado pelas empresas americanas desde a década de 1980, mas os trabalhadores do setor automotivo sempre se opuseram a ele.
Em 2008, a General Motors e a Chrysler, que agora fazem parte da Stellantis, abriram falência. A Ford evitou isso, mas por pouco. Para evitar o desaparecimento, as “Três Grandes” tiveram de fazer grandes cortes orçamentários. Eles pediram a seus funcionários que fizessem sacrifícios significativos.
“Renunciamos ao nosso bônus de Natal, aos nossos minutos de intervalo, a parte dos nossos cuidados de saúde, aos nossos aumentos automáticos ligados ao custo de vida. E aceitamos que os novos contratados receberiam menos”, afirma o presidente do UAW local.
A concessão deveria durar pouco tempo. “Mas 15 anos depois, nada mudou”, lamenta Denise (o nome foi alterado). Esta trabalhadora passou toda a sua carreira na indústria automobilística: “Quando comecei, há 30 anos, trabalhava em uma fábrica de eixos. Era um trabalho tão duro que disse a mim mesmo: ‘Esqueça. Eu tenho um diploma. Eu não posso fazer isso. Vou encontrar dois empregos’. Mas na época, mesmo dois empregos não me permitiam ganhar o salário que a Chrysler me pagava. Hoje posso ir trabalhar num posto de gasolina e receber quase tanto quanto ganho aqui. Eles nos dão mais trabalho, mas ganhamos menos dinheiro, não é justo”, conta.
Num artigo recente, o Washington Post analisou dados do Bureau of Labor Statistics. Conclui que os trabalhadores da indústria automobilística são os que mais diminuíram os salários nas últimas três décadas. O salário médio em 1994, equivalente à inflação era mais de 45 dólares por hora, fez deles os trabalhadores mais bem pagos dos Estados Unidos. Os 32 dólares atuais os colocam no meio da tabela.
Estes números não surpreendem Joseph McCartin. Para o professor de história, especialista em movimentos trabalhistas da Universidade de Georgetown, em Washington DC, os trabalhadores da indústria automobilística foram durante algum tempo “uma espécie de aristocracia da classe trabalhadora”. Tentam agarrar-se a esse estatuto, mas, comenta o historiador, “lhes escorre pelos dedos”.
“Eles nos abandonaram”, diz Janet (o nome foi alterado) no piquete em frente ao armazém da Stellantis, referindo-se às “Três Grandes”. Aos 58 anos, e depois de uma primeira vida como cuidadora, esta mãe solteira e cheia de energia tem dificuldade em digerir a reduzida pensão que receberia caso se aposentasse agora.
Com um cartaz do UAW na mão e o boné vermelho enroscado na cabeça, Mike acrescenta: “Trabalho na indústria automotiva há 35 anos. Meu pai se aposentou há 22 anos. Se eu saísse agora, receberia exatamente a mesma quantia que ele. Você percebe, com a inflação? É por isso que sou obrigado a continuar trabalhando”.
Aqui trabalhamos na indústria automobilística de geração em geração e a queda do poder de compra é ainda mais marcante. “Quando comecei, uma picape custava US$ 20 mil, lembra George Vazquez. Hoje são pelo menos 70 mil e é o modelo sem os acessórios. Eles não constroem mais carros novos e baratos. Quem pode pagar isso quando você ganha US$ 66.000,00 por ano?”
O empobrecimento é ainda mais difícil para estes trabalhadores aceitarem, uma vez que a remuneração dos seus gestores continuou a aumentar nos últimos anos. Em 2022, Mary Barra, presidente da General Motors, ganhou US$ 29 milhões, ou 362 vezes a renda média dos trabalhadores da sua empresa. Jim Farley, presidente e CEO da Ford, embolsou 21 milhões de dólares, e Carlos Tavares, CEO da Stellantis, 24,8 milhões de euros.
“Os seus salários aumentaram 40% nos últimos dez anos”, afirma Adam S. Hersh, do Instituto de Política Econômica (EPI). No blog deste think tank, o economista observa ainda que os lucros combinados das “Três Grandes” aumentaram 92% em dez anos, passando de 19,3 bilhões de dólares em 2013 para 36,9 bilhões em 2022. O seu lucro acumulado ao longo de 10 anos equivale a 250 bilhões de dólares!
Quase US$ 85 bilhões também foram distribuídos a investidores nos últimos dez anos. “É tudo graças a nós. Agora eles devem nos devolver o que perdemos!”, diz, irritado, Georges Vazquez.
As montadoras se defendem com o argumento de que os lucros obtidos servem para financiar os investimentos necessários à transição do setor para o carro elétrico.
As três empresas demoraram a ver o futuro em watts e não em petróleo. Eles estão agora lutando para recuperar o atraso, apesar dos bilhões investidos.
É preciso dizer que um grande concorrente já deu vários passos à frente. A Tesla representava, de fato, quase 52% das vendas de carros elétricos nos Estados Unidos em 2022, em comparação com 7%, por exemplo, da Ford, o mais avançado dos três fabricantes de Detroit. E esta greve poderá aumentar ainda mais a distância.
De qualquer forma, este é o argumento apresentado por Mary Barra. Entrevistada pelo canal americano CBS, a presidente da General Motors explicou que um aumento salarial demasiado significativo comprometeria a capacidade da sua empresa de produzir veículos com motor térmico e, ao mesmo tempo, desenvolver a oferta de veículos elétricos.
Elon Musk, o chefe da Tesla, está aproveitando os bons resultados financeiros de sua empresa para baixar o custo de seus veículos. O sedã Modelo 3 agora custa US$ 33 mil (após o crédito fiscal federal) e se tornou mais barato do que a maioria dos seus rivais que funcionam a diesel ou gasolina.
Isto se explica, em particular, pelo menor custo da sua folha de pagamento: trabalhadores jovens, não sindicalizados e, acima de tudo, em menor número porque os carros elétricos requerem menos mão de obra do que os seus grandes irmãos térmicos.
Confiante, o multibilionário até se diverte no X (ex-Twitter), sua rede social, sobre as consequências que esta greve terá para os seus antigos concorrentes: “Eles querem um aumento salarial de 40% e uma semana de trabalho de 32 horas. Uma maneira segura de tirar a GM, a Ford e a Chrysler do mercado em pouco tempo”.
O presidente do UAW espera que esta greve inspire rebelião entre os funcionários do líder americano no setor de carros elétricos.
Um renascimento do sindicalismo americano?
Porque é também um dos desafios importantes desta greve: mostrar que o sindicalismo não está morto nos Estados Unidos. “Na década de 1950, 35% dos trabalhadores americanos eram sindicalizados; hoje, estamos em torno de 10%. E esta percentagem cai inclusive para 6% nas empresas privadas, observa Joseph McCartin. Essas taxas nunca foram tão baixas”.
Mas para o professor, o ano de 2023 foi marcante pela quantidade de movimentos sociais que se sucederam nos Estados Unidos, desde roteiristas e atores, até funcionários de Starbucks, UPS e agora dos cassinos em Las Vegas.
A presença de Joe Biden num piquete de apoio aos trabalhadores da indústria automotiva, sem precedentes para um presidente americano, também não é insignificante depois de décadas de políticas neoliberais. Segundo o historiador, teremos que esperar um ou dois anos para medir toda a sua abrangência.
A verdade é que este movimento nas fábricas das “Três Grandes” poderá marcar uma verdadeira inflexão. “É o futuro da indústria automotiva nos Estados Unidos que está em jogo, mas também do sindicalismo. O resultado desta greve será decisivo para os demais trabalhadores”, afirma Joseph McCartin.
Algo para fazer Shawn Fain sonhar. Num clipe transmitido em meados de setembro, o líder do UAW compara sua greve à dos funcionários da General Motors na fábrica de Flint (Michigan) em 1937.
Uma referência carregada de simbolismo quando sabemos que este último é considerado o movimento social mais importante do sindicalismo americano. E um momento decisivo para a ascensão da classe média do século XX.
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Trabalhadores da indústria automobilística em greve, símbolo do declínio da classe média - Instituto Humanitas Unisinos - IHU