17 Agosto 2023
Todo o atual acúmulo militar norte-coreano também pode ser atribuído à China pela sua incapacidade de conter a vizinha. Depois que a China apoiou a invasão russa da Ucrânia, Pequim não pode permitir suspeitas sobre seu papel com Pyongyang, especialmente sem nenhuma recompensa certa de uma possível guerra.
O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin da China. O artigo foi publicado por Settimana News, 12-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Teoricamente, é uma península, mas, na verdade, para todos os efeitos práticos, é uma ilha. A Coreia do Sul está separada do restante do continente asiático pela sua intratável meia-irmã do Norte, impossibilitando todo contato terrestre com seus vizinhos.
A lacuna entre a realidade (ser uma ilha) e a aspiração teórica (ser uma península) é agravada pelo fato de ela ser um dos locais mais ricos e dinâmicos do mundo, fazendo fronteira com um dos lugares mais atrasados e estagnados do mundo, sua meia-irmã do Norte.
Essa realidade torna a península coreana um dos pontos mais perigosos da Ásia para futuras tensões.
A tensão está aumentando ao redor da China. O barulho do sabre tornou-se frequente em Taiwan, a ilha de fato independente, mas, em teoria, parte da “Única China”. As avaliações de risco dos estrategistas consideram a possibilidade de um confronto em torno de Taiwan, porque o Exército de Libertação Popular da China pode tentar invadir a ilha.
Também há riscos de escaramuças que podem sair do controle nas águas contestadas do Mar da China Meridional entre China, Vietnã, Filipinas, Malásia e Indonésia. Uma batalha que pode sair do controle também está prestes a começar nas altas altitudes do Himalaia entre tropas chinesas e indianas. No entanto, o cenário norte-coreano pode ser o perigo mais significativo.
É impossível avaliar as intenções chinesas em todas essas fronteiras. No entanto, uma guerra na península coreana poderia ser menos arriscada e mais vantajosa para Pequim na situação atual.
Se as forças norte-coreanas iniciassem um bombardeio de Seul e movessem a infantaria e os tanques para além da linha de cessar-fogo, isso poderia causar o dano mais significativo ao mundo ocidental com a menor dor para a China.
O início de um conflito na Coreia do Sul poderia causar o colapso do sistema financeiro sul-coreano, que por sua vez poderia desencadear a quebra das bolsas de valores em todo o mundo. Ao contrário de 70 anos atrás, na época da Guerra da Coreia, a Coreia do Sul é um componente crucial da criação de riqueza global, e um ataque a Seul poderia desencadear um tsunami financeiro em todo o mundo.
Isso traria o benefício extra de forçar um engajamento das tropas estadunidenses estacionadas lá, sem envolver diretamente as tropas chinesas.
Claro, tal movimento colocaria o regime de Pyongyang em risco, mas o líder norte-coreano, Kim Jong-Un, pode ser tentado a agir se incitado por Pequim ou em um momento de total loucura mal calculada.
Nenhum desses cenários é impossível, olhando para a história da Coreia do Norte, e, à medida que a tensão aumenta em torno da Coreia do Norte e de Pequim, qualquer um dos lados pode ficar tentado a sair do cerco real ou percebido e fazer algo louco em busca de retornos loucos.
Ao contrário de qualquer outro teatro, uma guerra lá, como vimos, poderia ser razoavelmente segura para a China. As tropas chinesas poriam em risco suas vidas em todos os cenários diferentes, enquanto os estadunidenses poderiam ficar no banco de trás.
Após um possível ataque, a Coreia do Norte poderia tentar barganhar para sair da confusão e esperar reforçar uma situação doméstica muito precária.
A questão não é ver se Pequim ou Pyongyang se atreverão a atacar a Coreia do Sul. Depois do irracional e irrazoável ataque russo à Ucrânia, apenas considerar cálculos racionais e razoáveis não pode ser suficiente. A maior parte do mundo achou que a Rússia nunca atacaria a Ucrânia porque era algo selvagem, mas ocorreu. Portanto, deve-se supor que Kim, muito mais irracional e irrazoável do que o presidente russo, Vladimir Putin, poderia se mover contra a Coreia do Sul. Seu atual acúmulo nuclear e de mísseis pode apontar nessa direção.
Além disso, um ataque terrestre e um bombardeio contra Seul, limitado na esperança de alguma negociação posterior, é mais razoável do que tentar um desembarque em Taiwan, ou um confronto com frotas inimigas no Mar da China Meridional, ou um confronto significativo com a Índia.
É mais provável que um ataque a Taiwan fracasse. Os desembarques são as manobras militares mais perigosas; muitas vezes elas foram um fiasco. Um ataque com mísseis mais significativo contra Taiwan poderia acarretar uma retaliação mais extensa dos Estados Unidos e do Japão, empenhados em preservar a existência política da ilha.
Um confronto com as frotas vietnamita ou filipina no Mar da China Meridional poderia estimular a intervenção dos Estados Unidos, e sua marinha ainda supera em muito a marinha chinesa.
Um grande conflito com a Índia pode ter suas recompensas, porque a China é militarmente muito mais assertiva do que a Índia ao longo da fronteira; no entanto, politicamente, isso definitivamente envenenaria a atmosfera entre os dois gigantes asiáticos.
Uma guerra grande, mas possivelmente limitada, entre as duas Coreias poderia ser diferente. A China poderia negar seu envolvimento e jogar a culpa apenas no maluco Kim. Enquanto isso, a China poderia mostrar seu poder na região e esperar semear ansiedade na aliança regional hostil. Assim, poderia dar a Pequim um maior espaço de manobra.
Não é essencial avaliar se essas são as intenções de Pequim. Existem elementos materiais suficientes que podem alimentar suspeitas sobre o papel de Pequim como titereiro de Pyongyang.
Portanto, dada essa percepção, todo o atual acúmulo militar norte-coreano também pode ser atribuído à China pela sua incapacidade de conter a vizinha. Depois que a China apoiou a invasão russa da Ucrânia, Pequim não pode permitir suspeitas sobre seu papel com Pyongyang, especialmente sem nenhuma recompensa certa de uma possível guerra.
Isso coloca a China em apuros. A China pode querer usar a Coreia do Norte para manter a Coreia do Sul, o Japão e os Estados Unidos afastados. No entanto, sua capacidade de se distanciar de Pyongyang a qualquer momento coloca Pequim em um canto. Ela poderia ser responsabilizada por muitas das ações de Pyongyang.
Os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão exigem um envolvimento mais profundo da China no dilema norte-coreano. A China pode não estar disposta a seguir em frente, porque não tem interesse em melhorar a vida desses três países. Ao mesmo tempo, as tensões com a China continuam se acumulando. Mesmo assim, o cenário de guerra e suas insondáveis implicações colocam a China em situação difícil.
Portanto, mesmo apenas um cenário de guerra na península coreana cria tensão no norte da Ásia e riscos com a China.
Um caminho linear a seguir seria reiniciar as negociações a seis, pressionar a Coreia do Norte para interromper sua acumulação nuclear e de mísseis, e ajudar a encontrar uma solução pacífica para o futuro desse país decadente. Mesmo assim, se a China ajudar a resolver os problemas da Coreia do Norte, isso possivelmente não se traduzirá em um alívio para sua situação geral; se não ajudar, ajudará a criar ainda mais tensão para a China em todas as suas fronteiras.
A China pode ter optado por aliviar a tensão com cautela.
No último grande evento de Pyongyang, as comemorações do dia 27 de julho do fim da guerra há 70 anos, a delegação de Pequim foi discreta em comparação com a da Rússia, que enviou seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu. Mas isso pode não ser suficiente. Kim, com ou sem o apoio da China, tem tentado abrir caminho para os holofotes exibindo seus últimos brinquedos militares, e isso confunde as intenções de Pequim, fazendo o mundo suspeitar que os chineses gostam da postura de sua vizinha.
O Brinkmanship [temeridade bélica] aqui poderia se tornar muito difícil de gerir. Os comunistas, que governam Pequim, e os herdeiros dos nacionalistas do KMT em Taiwan estão lidando uns com os outros há um século. Eles sabem muito bem como administrar o brinkmanship entre eles mesmos. A possibilidade de incidentes e de uma escalada é razoavelmente pequena.
No entanto, a China não está administrando diretamente o brinkmanship de Kim, quer queira ou não ser o titereiro de Pyongyang. Kim pode ser forçado a seguir a linha de Pequim, mas isso sempre foi um esforço extra. Além disso, Pequim teria que lidar com a Rússia, com uma agenda coreana diferente, e os Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul. Muitas bolas no ar, e tudo muito difícil de coordenar. Os incidentes são muito mais fáceis de ocorrer, assim como a escalada.
Portanto, as coisas podem dar errado mais rapidamente, e a China poderia ser sequestrada para apoiar um conflito coreano que ela não controla. Poderia ser como o apoio chinês inicial à invasão russa da Ucrânia, só que muito pior. Ou Pequim poderia se envolver diretamente na Coreia, e as coisas voltariam a 70 anos atrás, só que muito piores.
Mesmo assim, se devidamente geridas, todas as suspeitas e dúvidas poderiam ser positivas. Elas podem levar a discussões melhores e mais profundas que não transformarão a Coreia do Sul em uma península de verdade, mas, pelo menos, esperançosamente, neutralizarão algumas das tensões regionais. Sem isso, a Coreia se torna o lugar mais candente do mundo.
Um artigo não muito bem pensado. É do interesse da China e da Rússia evitar a guerra o máximo possível, já que suas economias dependem da produção e do consumo, enquanto os Estados Unidos dependem muito da criação de dólares do nada. Em 1962, os Estados Unidos se opuseram à conservação de mísseis soviéticos em Cuba e aceitou o compromisso de remover seus mísseis Júpiter da Turquia quando a URSS removeu seus mísseis de Cuba. E também removeu seus mísseis Júpiter da Itália e Thors da Inglaterra. Como os Estados Unidos insistiram em incorporar a Ucrânia à OTAN, uma organização conhecida por se defender do Afeganistão por quase 20 anos, não era irracional e irrazoável que a Rússia agisse. Quanto às outras possíveis guerras, nem a China nem a Rússia têm quaisquer motivos para a agressão. Elas esperam a derrota do regime de Kiev e a consequente perda de credibilidade dos Estados Unidos. Isso tornará mais fácil para Taiwan escapar da hegemonia dos Estados Unidos e resolver seus problemas com o governo chinês de maneira pacífica, provavelmente depois que o KMT vencer a próxima eleição. Isso, por sua vez, pode permitir que a Coreia do Sul escape também, o que tornará toda a Ásia mais pacífica. E, se os Estados Unidos conseguirem evitar a derrota do atual regime em Taiwan, sempre há a possibilidade – em alguma data posterior – de que a China declare fechados os portos e os aeroportos de Taiwan, impedindo, assim, o comércio. Uma guerra em torno de Taiwan levaria à morte e à miséria, assim como à destruição da indústria de semicondutores da ilha pelos Estados Unidos, todos resultados a serem evitados.
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Você diz Taiwan, eu digo Coreia. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU