19 Julho 2023
"Que fique bem claro: a partir do momento em que os representantes do governo retomarem as medidas para que Lula consiga realizar 40 anos em 4, flexibilize as amarras da austeridade fiscal e reveja as aberrações da deforma trabalhista de Temer e Bolsonaro, aí então veremos de fato como andam os verdadeiros e sinceros sentimentos dessa turma dos endinheirados para com Fernando Haddad", escreve Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, em artigo publicado por Outras Palavras, 18-07-2023.
O terceiro mandato do presidente Lula continua a oferecer todo tipo de surpresas para a maioria dos analistas da cena política. A começar por sua impressionante capacidade de ter superado as marcas de todas das injustiças cometidas nos processos levados a cabo pela quadrilha de Curitiba, que culminaram com sua prisão irregular e ilegal. Depois de ter passado 580 dias encarcerado, Lula terminou por provar as ilegalidades cometidas por Moro, Dallagnol e os demais integrantes da Operação Lava Jato e se apresentou à disposição de uma frente ampla para derrotar Bolsonaro nas eleições de outubro passado.
O candidato da oposição conseguiu derrotar a máquina da reeleição montada pelo ex-capitão, lutando contra o uso descarado da estrutura governamental, o abuso de benesses ilegais e um derrame fenomenal de recursos orçamentários para tentar reverter as tendências desfavoráveis no pleito. Vale registrar que esse foi o primeiro caso de um presidente da República que não conseguiu vencer a disputa em sua própria recondução ao cargo. Fernando Henrique havia vencido em 1998, Lula foi vitorioso em 2006 e Dilma foi reeleita em 2014. Ainda que a diferença de votos não tenha sido muito significativa, a recondução de alguém que havia sido criminosamente impedido de concorrer 4 anos antes surpreendeu e converteu-se em uma espécie de reconhecimento social tardio da injustiça cometida.
As classes dominantes brasileiras haviam, em sua grande maioria, apoiado Bolsonaro contra Haddad em 2018. A nomeação de Paulo Guedes como o principal responsável pela área econômica buscava consolidar o apoio que o banqueiro havia conseguido amealhar junto às elites para o defensor da tortura, da pena da morte e da ditadura. Ao longo do quadriênio, no entanto, aos poucos as benesses oferecidas pelo superministro não mais compensavam as atrocidades do genocídio e as irresponsabilidades na condução das políticas públicas. Com a aproximação do pleito, os grandes meios de comunicação passaram a verbalizar a busca de um nome alternativo, que fosse capaz de superar a polarização que se anunciava.
No entanto, como se viu, a operação “terceira via” não foi exitosa. Todas as tentativas de forjar uma alternativa mais palatável aos olhos dos donos do dinheiro fracassaram – seja em termos políticos, seja em termos eleitorais. Lula venceu nos dois turnos e tinha como um de seus primeiros desafios a composição de sua equipe e conseguir tomar posse. A ameaça de golpe militar e o não reconhecimento do resultado proclamado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estavam sendo manobrados pelo derrotado para impedir a chegada de Lula ao Palácio do Planalto no primeiro dia do ano.
Ao que tudo indica, os poderosos abandonaram a alternativa golpista e ensaiaram uma estratégia de sequestrar o futuro governo. Entre o resultado e a posse foram lançados inúmeros balões de ensaio, com nomes de maior confiança do mercado financeiro para ocupar os postos mais importantes da área econômica. Porém, assim como havia ocorrido com a “terceira via”, a operação não emplacou. Nomes como Henrique Meirelles e Pérsio Arida, dentre outros, não conseguiram se viabilizar junto a Lula e seu entorno. Diante desse quadro, o povo da finança lançou mão de seu Plano C: influenciar de forma mais decisiva o programa a ser implementado pela próxima equipe. Assim foi decidido, assim foi feito.
A intenção era inviabilizar as medidas que pudessem conferir uma linha mais progressista e desenvolvimentista ao mandato 3.0. Foi lançada uma operação para impedir a revogação do teto de gastos, tal como prometido por Lula na campanha. A intenção era criar um clima de catastrofismo em torno de uma suposta “irresponsabilidade fiscal” da futura equipe, lançando mão de uma memória deturpada dos governos anteriores do PT. Em outra direção, o financismo tratou de garantir que a Lei Complementar nº179/21, que estabeleceu a independência do Banco Central, também não fosse objeto de alteração, bem como evitar qualquer alteração nas metas de inflação. Na verdade, havia uma certa “tranquilidade” no quesito da política monetária, uma vez que Lula começaria seu governo com a totalidade dos 9 membros da diretoria do BC tendo sido indicados pelo seu antecessor. O Copom e a taxa oficial de juros estavam sob custódia da banca privada.
Frente a esse quadro, a opção de Fernando Haddad foi bastante clara e orientada por um certo pragmatismo, que o afasta de forma explícita e declarada de qualquer trilha desenvolvimentista. Aquele professor que já havia trocado as aulas que ministrava na Faculdade de Filosofia da USP pelas salas do Insper optou por atender plenamente aos interesses da chamada Faria Lima. Na verdade, ele terminou por repetir o cenário traçado por seu antecessor, Antonio Palocci, quando este havia sido nomeado por Lula para o mesmo cargo em 2003. Trata-se da conhecida, e nada inédita, estratégia de incorporar o espírito do bom mocismo e introduzir na agenda do Ministério da Fazenda a pauta prioritária sugerida pelos representantes do financismo.
Houve uma sequência de atos e decisões que permitem comprovar tal trajetória. Antes mesmo da posse do novo governo, ainda durante a transição, Haddad convenceu Lula da necessidade de introduzir na PEC da Transição um dispositivo que relativizasse a revogação pura e simples do teto de gastos, imposto pela famigerada EC 95/2016. Com isso, o futuro governo obrigou-se a enviar ao Congresso Nacional uma lei complementar criando um novo regime fiscal. Na prática isso significava que, além de ter a política monetária já sequestrada pelo financismo privado, o novo “detalhe” poderia retirar também da política econômica a pujança necessária a ser oferecida pela política fiscal.
Na sequência, o novo governo viu-se diante da necessidade de oferecer a Lula os instrumentos para cumprir outra importante promessa de campanha, qual seja, retomar a política de reajuste real do salário mínimo. Mais uma vez, Haddad assumiu o lado da ortodoxia fiscalista e pressionou para que o novo valor fosse apenas R$ 1.302, sem nenhum ganho real. Na disputa interna no núcleo duro do Planalto, ainda no mês de janeiro, acabou prevalecendo a tese de levar a remuneração a R$ 1.320. Naquele momento, pelo menos, o argumento de um suposto ”forte impacto fiscal” da mudança apresentado pela Fazenda não foi aceito pelo presidente da República. Afinal, os ganhos macroeconômicos de tal reajuste sobre a remuneração de dezenas de milhões de brasileiros mais do que compensariam os custos de R$ 7 bilhões aos cofres públicos.
Ainda no domínio da política monetária, o governo poderia desde o início ter promovido uma alteração na meta de inflação, por meio de decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN). Ali têm assento a ministra Tebet do Planejamento e Haddad, além de Campos Neto. Se houvesse disposição do titular da Fazenda, a decisão de trazer a meta para níveis mais realistas teria servido como um argumento a mais para que o Copom tivesse reduzido a Selic desde o começo do ano. Mas nem isso Haddad se dispôs a tentar. Além disso, já estamos entrando no sétimo mês deste terceiro mandato e o responsável pela Fazenda não tomou nenhuma iniciativa para orientar os bancos federais a baixarem seus juros na ponta para as empresas e as famílias. Qual o sentido de termos bancos públicos, se Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco da Amazônia ou Banco do Nordeste praticam os mesmos spreads que seus congêneres do oligopólio privado?
O próximo capítulo envolveu a elaboração do chamado “novo arcabouço fiscal”. Em primeiro lugar, Haddad convenceu Lula de uma certa urgência na matéria, apesar de que a Emenda Constitucional aprovada na transição oferecia o prazo até agosto para que o Executivo enviasse o texto ao Parlamento. Além da pressa, o ministro da Fazenda estabeleceu interlocução exclusivamente com o Roberto Campos Neto (presidente do BC) e com a nata do financismo privado. O governo terminou por não receber representantes dos sindicatos, de entidades profissionais ou pesquisadores de universidade e instituições independentes. Para elaboração do novo modelo, a regra foi manter a essência de compressão dos gastos sociais e das empresas estatais, mantendo a lógica perversa da busca de superávit primário.
Ora, diante de tal submissão a seus interesses, os porta-vozes do sistema financeiro passaram a tecer loas ao novo modelo, mas mantendo um firme e duro controle de eventuais alterações que apontassem para o caminho progressista ao longo da discussão no legislativo. Durante a tramitação do PLP 93 no interior da Câmara dos Deputados, a postura inflexível patrocinada por Haddad impediu que fossem apresentadas pela base do governo emendas que aliviassem a rigidez fiscal presente na proposta. Nem mesmo o discurso de Lula considerando as rubricas orçamentárias com saúde e educação como sendo “investimento” foi atendido.
O tempo encarregou-se de demonstrar que o argumento da pressa em aprovar o texto na Câmara dos Deputados antes do recesso parlamentar era apenas conversa para boi dormir. A matéria segue a passos mais lentos no Senado Federal e já existe a possibilidade de que algumas emendas sejam introduzidas para nova apreciação na Casa em teve início a tramitação. Na verdade, todos os sinais indicam que se tratava de um desejo pessoal de Haddad se fortalecer como um interlocutor mais bem aceito junto ao conservadorismo de todas as matizes.
A etapa mais recente envolveu a assim chamada Reforma Tributária. Também nesse quesito, o ministro da Fazenda assumiu a linha de frente pela aprovação da PEC 45. Trata-se uma proposta que estava parada há tempos no interior do legislativo, junto com outras proposições semelhantes. O grande receio das classes dominantes sempre foi que os de que governos do PT cumprissem com suas propostas de promover uma mudança mais efetiva em nosso sistema de tributação. Tratava-se de introduzir elementos que reduzissem o grau de regressividade e injustiça do modelo vigente, apontando para tributação de fato sobre rendas elevadas e sobre patrimônio. E o interessante é que boa parte de tais mudanças não necessitam nem mesmo de mudança constitucional. Bastariam, por exemplo, uma medida provisória eliminando a injustificável isenção de lucros e dividendos, uma portaria do ministério da Fazenda tributando a exportação de minério de ferro, petróleo e soja, além um projeto de lei complementar disciplinando o Imposto sobre Grandes Fortunas.
Mas o foco de Haddad concentrou-se exclusivamente no processo de simplificação da cobrança dos impostos sobre consumo. É claro que se trata de uma medida importante e necessária, mas que não muda uma vírgula sequer na desigualdade estrutural de nosso sistema de impostos. Ela é bem-vinda por eliminar a guerra fiscal e modernizar o sistema de arrecadação, conferindo maior racionalidade ao conjunto. Mas a estratégia de tramitação deveria condicionar a votação da PEC à aprovação prévia das medidas acima mencionadas. Neste quesito também a desculpa da pressa não se sustenta. Qualquer mudança no sistema de tributação deve respeitar o chamado princípio da anualidade. Assim, as alterações só serão efetivas a partir do ano que vem, pouco importando o momento da aprovação. Além disso, a complexidade do modelo implícito envolve prazos de transição entre 10 e 40 anos para que as mudanças sejam integralmente incorporadas no sistema de preços relativos da nossa economia.
De qualquer forma, a votação na Câmara dos Deputados, no afogadilho dos últimos dias antes do recesso, também revela que o esforço político e orçamentário extraordinário talvez tenha sido desnecessário. Mas a disputa da narrativa sobre a matéria operou para retirar as últimas resistências ao nome de Haddad que ainda existiam junto à nata do finacismo. Uma pesquisa realizada junto a 80 dirigentes do setor apontou uma importante elevação na satisfação do desempenho do ministro, ao mesmo tempo em que os mesmos entrevistados mantêm uma enorme suspeição em relação a Lula. Entre março e julho deste ano, a desconfiança desse pessoal sobre Haddad caiu de 66% para 40%. Durante o mesmo período, as suspeitas em relação a Lula chegaram mesmo até a subir um pouco de 94% para 95%.
Finalmente, talvez até por seu caráter anedótico, vale mencionar também a recente mudança de postura divulgada pelo empresário dono da rede Habib’s. Conhecido até o ano passado pelo seu envolvimento profundo com as causas bolsonaristas, Alberto Saraiva agora demonstra um “arrependimento” por ter apoiado o genocida no passado e declara que está muito satisfeito com a gestão do ministro da Fazenda – segundo ele, “Haddad é 10”.
Assim, cabe às forças progressistas se questionarem a respeito de quais seriam as razões de tal encantamento súbito e surpreendente das classes dominantes com Haddad. É fundamental não cair na ilusão de que agora tudo se resolve com a aceitação do ministro nos salões luxuosos dos bilionários. Muito provavelmente essa inusitada lua de mel só está ocorrendo pelo fato de as pautas progressistas e desenvolvimentistas terem sido esquecidas em alguma gaveta da Esplanada.
Que fique bem claro: a partir do momento em que os representantes do governo retomarem as medidas para que Lula consiga realizar 40 anos em 4, flexibilize as amarras da austeridade fiscal e reveja as aberrações da deforma trabalhista de Temer e Bolsonaro, aí então veremos de fato como andam os verdadeiros e sinceros sentimentos dessa turma dos endinheirados para com Fernando Haddad.
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O encantamento da Faria Lima com Haddad. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU