06 Mai 2023
"Poderíamos responder que como o três, segundo a doutrina cristã, é constitutivo da natureza profunda de Deus, que não é uma mônada, mas uma trama unitária de três relações divinas, é lógico supor que tudo o que Deus criou e admiravelmente mantém vivo, traz uma marca “trinitária”. [Gianfranco] Ravasi descobre de fato e gradualmente, durante a lenta subida ao cume do monte, revela ao leitor as inúmeras "tríades" presentes na trama do mundo e da vida, e quantas mais ainda estão à espera para serem descobertas", escreve Paolo Ricca, teólogo, pastor valdense italiano e professor emérito da Faculdade Valdense de Teologia, em artigo publicado por Riforma, 04-05-2023.
“Alfabeto de todas as civilizações, os números expressam a medida do caminhar humano. Números não apenas para contar, mas também para narrar, num caleidoscópio de narrativas e sugestões, da filosofia à teologia, da literatura à psicologia, da música à matemática, à história da arte”: assim Umberto Bottazzini apresenta a série original "Histórias de números", que dirige para a editora Il Mulino, de Bolonha. O terceiro volume da série, recém-publicado, é de Gianfranco Ravasi, cardeal, até poucas semanas atrás presidente do Pontifício Conselho para a Cultura (agora emérito), autor de tantos livros valiosos que ele mesmo, talvez, agora tenha dificuldade de contar de forma exata. Recordamos em particular os seus numerosos comentários sobre os livros da Bíblia, em primeiro lugar os três esplêndidos volumes sobre os Salmos.
Com o livro que aqui apresentamos também nos movemos, na parte central e naquela final, em área bíblica, porém revisitada seguindo uma estrela polar especial, composta pelo número três. O título é de fato: Tre. Divina aritmetica (Três. Divina aritmética, em tradução livre). O pensamento corre imediatamente, como é óbvio, para a doutrina trinitária de Deus, que de fato ocupa quase um terço do livro, no qual encontramos, além da Bíblia, como sempre nos livros de Ravasi, muita cultura, felizmente descrita como “epifania do significado do ser e do existir” (p. 54), e exposta nas suas variadas articulações (literatura, ciências naturais, antropologia, filologia, artes plásticas, cinema, teatro, poesia, obviamente teologia, no vasto território das religiões do mundo, agora praticamente de casa também na Europa, e muito mais ainda). À medida que se avança na leitura, o interesse pelo tema aumenta e fica difícil parar.
O livro é concebido segundo o modelo da viagem de Dante como a subida de uma montanha, marcada por cinco etapas durante as quais o autor identifica e lista as tríades presentes na natureza, na pessoa humana, na literatura, nas religiões e na Bíblia. O cume da montanha é precisamente a doutrina trinitária de Deus, ilustrada na sua formulação clássica, conforme afirmada na Tradição ocidental que, no entanto, em dois pontos, difere do texto estabelecido pelos Concílios de Niceia (325) e Constantinopla (381). A diferença mais importante diz respeito à relação entre Pai, Filho e Espírito na Trindade. O texto decidido pelos dois Concílios afirma que o Espírito “procede do Pai”. A Igreja do Ocidente, com decisão unilateral e não ecumênica (que, de fato, o Oriente cristão, com razão, nunca aceitou) afirmou que o Espírito procede do Pai “e [também] do Filho” (o famoso e polêmico Filioque = “e do Filho”). Compreensivelmente, o autor não entra nessa controvérsia que, no entanto, não pode ser ignorada, pois ainda hoje é um problema não resolvido nas relações entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente.
O livro abre-se de forma agradável com a citação de uma música que faz parte da celebração doméstica da Páscoa judaica e que o autor define como "giocosa" e ao mesmo tempo "séria", tanto "divertida" quanto também "educativa". Parece-nos que esses dois últimos adjetivos também descrevem traços distintivos do livro: é um prazer de ler (“deleite” talvez seja a palavra mais apropriada) precisamente porque, por um lado, "diverte" no sentido mais elevado da palavra (o termo francês divertissement aparece na p. 16), pois há abundância de informações e curiosidades de vários tipos, e por isso se passa de uma surpresa a outra, de uma descoberta a outra; por outro lado, o livro "educa", ou seja, informa e forma, descortinando horizontes que muitas vezes nos escapam no desenrolar monótono da nossa vida cotidiana, mas que, se conhecidos e vividos conscientemente, podem enriquecê-la de significados e, portanto, de valor.
São realmente muitas as belas informações que aprendemos nessas páginas que mereceriam ser citadas, se o espaço disponível o permitisse: mencionamos apenas uma, a título de exemplo. O autor evoca uma tradição judaica, retomada por Elie Wiesel, segundo a qual os anjos se esqueceram de retirar a escada com que Jacó sonhara e que ligava o céu e a Terra. Ela ficou na terra e tornou-se a escala musical, “que permite ouvir a voz divina que desce do eterno e do infinito, inerente à harmonia dos sons, e, ao mesmo tempo, encarna a voz humana que responde a Deus através do canto e da música” (p. 157).
O sentido desse pequeno livro, que pode ser lido “numa sentada”, está bem resumido no título do primeiro capítulo: “Três, muito mais que um número” (p. 19). O mesmo se poderia dizer de outros números: entre esses destacam-se o 1, o 7, o 12, mas também o 4; talvez pudesse ser dito de todos, mas certamente deve ser dito do três. E no que consiste este “muito mais"? Poderíamos responder que como o três, segundo a doutrina cristã, é constitutivo da natureza profunda de Deus, que não é uma mônada, mas uma trama unitária de três relações O três na transfiguração de Jesus e na presença de Deus na nossa existência, é lógico supor que tudo o que Deus criou e admiravelmente mantém vivo, traz uma marca “trinitária”.
Ravasi descobre de fato e gradualmente, durante a lenta subida ao cume do monte, revela ao leitor as inúmeras "tríades" presentes na trama do mundo e da vida, e quantas mais ainda estão à espera para serem descobertas. O autor expressa várias vezes que o que apresenta é apenas uma amostra: o que aprendemos aqui sobre o número três, embora já seja bastante, é ainda menos do que deveria ser contado. Mas enquanto isso podemos nos contentar, desde que não esqueçamos que o três, além de ser um número, é também, efetivamente, muito mais.
G. Ravasi, Tre. Divina aritmetica. Bolonha, il Mulino, 2023, pp. 175.
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Três: um número e muito mais. Artigo de Paolo Ricca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU