05 Abril 2023
"É o golpe de gênio etnogenético, diria o filósofo Peter Sloterdijk, a ideia de um povo que não tem a sua fundação numa terra, língua ou outro, mas numa lei divina, 'uma pátria portátil'", escreve Carmen Pellegri, em artigo publicado por La Lettura, 02-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Publicado pela primeira vez em 2015 e recém-publicado na Itália, Esodo é o poderoso estudo em que Jan Assmann retoma e complica a questão, já abordada em seus estudos anteriores, da relação entre memória e história, entre perpetuação cultural e constituição de identidade.
Esodo
Explicando melhor, o livro amplia o discurso sobre as grandes narrativas que dizem respeito às bifurcações da história universal, sobre como eles se alicerçam em mitos e tradições, moldes vazios e ruínas de outros. Pilhagem entre culturas, ou, mais precisamente, empréstimos, em todo caso estratificações que embalaram criativamente algo novo: algo que se aproxima da Verdade, ou de uma verdade boa e aceitável, e isso basta.
Afinal, a quem realmente importa saber se o mar diante de Moisés se abriu ou nem se mexeu? E, aliás, que mal há em acreditar nisso, especialmente diante das sempre atuais imagens de abismos que engolem os desesperados em fuga: se o prodígio aconteceu uma vez, poderia acontecer novamente e de novo o mar se abrir e salvar. Ou não?
Mas voltemos à questão. Já no ensaio La memoria culturale (publicado na Itália em 1997), Assmann havia abordado o tema da memória como elaboração da identidade coletiva, enfatizando como cada cultura desenvolve um complexo de conexões que atuam como um elo entre presente e passado, entre homens que se lembram das mesmas coisas e as contam uns aos outros; um espaço comum de memórias que estruturam a memória, desde que sejam bem transmitidas e mantidas constantemente atuais.
Em Mosè l’egizio (Adelphi, 2000), Assmann havia comparado memória e história através de duas figuras: de um lado, Moisés, figura da memória e não da história, já que nem sequer temos evidência de que existiu; do outro, o faraó Ekhnaton, que impôs um credo quase monoteísta, ganhando um lugar na história, mas também uma discreta damnatio memoriae.
Com Esodo entramos no vasto campo do mitologema, o relato fabuloso que cria a mais profunda essência de um povo - o povo de Israel - determinando suas memórias fundadoras que irão valer para todo o sempre, definindo-os e prescrevendo as formas da perpetuação através de ritos, fórmulas, observâncias legítimas, genuínas e autênticas. Acima de tudo, através dos fatos extraordinários da vida de homem, Moisés, através da incrível variedade de sua vivência, nasceu um corpus de exemplos e preceitos em capaz de instruir as gerações vindouras, que se serviram dele como sempre fazem os sábios: para se constituir.
Assmann introduz desde o início a teologia do pacto. Revelado o poder de Deus, Moisés anunciou o pacto ao povo, e com o coração atento, com a mente aberta à compreensão e obediência, "espichando o ouvido", o povo ouviu a revelação da lei, a Torá, fundamento e condição do pacto. A teologia do pacto determina o que em um romance, em que o tempo se apresenta como linear, definimos como o cerne, o salto qualitativo que move os eventos a seguir, a virada capaz de trazer novas sequências de fatos. Tendo ocorrido o chamado e estabelecida a aliança, nenhuma infração seria deixada sem expiação, nenhum mérito ficaria sem recompensa e, acima de tudo, aqui está o contexto capaz de proteger o povo escolhido do caos e do desespero.
É a virada que transforma a pré-história em história mitopoiética, história da qual o próprio Deus se encarrega, que não precisa de um nome porque "é e sempre será"; um Deus de um único povo, e isso será feito do que irá lembrar e responder por ele. Deus que fala apenas uma vez, e entre cólera e comprazimento quer habitar entre seu povo, e seu povo lhe será fiel de acordo com os critérios de aliança política.
Assmann escreve: “No Livro do Êxodo essa passagem ocorre nos capítulos 20-23 com o anúncio e a aceitação das leis por aclamação, sendo então reafirmada com uma cerimônia no capítulo 24. No curso dessa passagem, o povo, que já adquiriu uma organização burocrática no capítulo 18, obtém uma constituição como povo escolhido por Deus. Em antítese ao conectivismo vindo de baixo de natureza ascendente, essa passagem pode ser definida como coletivismo de cima de caráter descendente, ou mesmo de coletivismo transcendental. Com essa expressão refiro-me ao princípio de uma identidade coletiva, instituída de cima, ancorada à transcendência e claramente delimitada, em oposição a um tipo de convivência que se desenvolveu naturalmente ou produzida pela estrutura burocrática”.
É o golpe de gênio etnogenético, diria o filósofo Peter Sloterdijk, a ideia de um povo que não tem a sua fundação numa terra, língua ou outro, mas numa lei divina, "uma pátria portátil".
Algo nunca antes visto, o inédito que não tem precedentes no mundo antigo, mas que deste mundo antigo, ultrapassado e desconstruído, utilizou os mitos (começando pelo nascimento de Moisés que se assemelha à lenda do nascimento do rei Sargão da Acádia: "Sargão, o forte rei da Acádia, eu sou... Eu não conheço meu pai. Minha mãe, uma Alta Sacerdotisa, engravidou de mim e me deu à luz em segredo. Ela me colocou em uma caixa de junco. Com betume impermeabilizou minha morada. Abandonou-me no rio, que não me molhou...)”, os gêneros literários polissêmicos, as tradições e os formidáveis lampejos inventivos: todas fontes já indistinguíveis, todas integradas no gênio criador do Êxodo (o êxodo do Egito, escreveu Freud em 1939, continua sendo nosso ponto de partida) e com o cumprimento desse ato criativo nada mais foi como antes, a linha entre o passado e o futuro traçada, o mar definitivamente aberto em dois.
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Uma pátria portátil para o povo de Israel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU