05 Julho 2016
"O problema do monoteísmo da verdade reside no seu pretencioso conceito de revelação, com sua paradoxal conexão de exclusividade e universalidade. Há muitas religiões, mas não pode haver mais do que uma verdade absoluta e universal", escreve Gianfranco Ravasi, citando Jan Assmann, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 03-07-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
"Este trabalho, a partir da pessoa de Moisés, parece-me, do ponto de vista crítico, uma bailarina em equilíbrio sobre a ponta dos pés". A confissão de Freud a respeito do tríptico de ensaios recolhidos sob o título A Pessoa de Moisés e a Religião Monoteísta, é compartilhada pela maioria dos exegetas que leram a obra; na verdade, a maioria deles está convencido de que a bailarina, no final, perdeu o equilíbrio e caiu. No entanto, não há dúvida de que, como ocorre frequentemente, não se pode sair totalmente ileso de uma leitura provocante e provocatória. É o que preconiza a leitura do livro que recolhe uma breve análise do escrito de Freud, preparado por Pier Cesare Bori, reconhecido professor de história das doutrinas teológicas, falecido em 2012, em Bolonha, onde ensinava. A ele devemos, entre outras coisas, (com Giacomo Contri e Ermanno Sagittario) a melhor versão do Moisés freudiano, publicada pela Boringhieri, em 1977. Bori, embora cinco anos mais velho, tinha sido meu companheiro de estudos teológicos na Universidade Gregoriana de Roma. Depois nossos caminhos se separaram, não só por razões topográficas (ele era de Casale Monferrato e talvez seu fim, mesmo que tardiamente, deveu-se à poluição da Eternit), mas também religiosas. Ele tinha, de fato, mais tarde, aterrissado na ''Associação Religiosa dos Amigos", os assim chamados Quakers (da palavra quake, "tremer" diante do Senhor), uma confissão fundada em 1649, pelo inglês George Fox, desprovida de qualquer pregação, rito, sacramento, ministros, confiada apenas ao silencioso encontro pessoal com Deus. Descubro agora escrupulosidade e sutileza hermenêutica neste breve texto, amplamente introduzido por Gianmaria Zamagni, que nos conduz, porém, com nitidez, também ao horizonte da exegese particular e “bailarina" de Freud.
Conforme resumo do próprio Bori, são três as teses centrais: a origem egípcia de Moisés; seu destino trágico, um parricídio operado pelos próprios hebreus (sobre isso, o pai da psicanálise apoiava-se numa hipotética interpretação do bem conhecido exegeta alemão, Ernst Sellin, a respeito de uma passagem obscura do profeta Oséias); e finalmente, o dualismo entre o culto e o legalismo javista, por um lado, e o monoteísmo puro, em seguida, defendido pelos profetas, por outro. O problema da conexão do monoteísmo judaico daquele professado pela faraó Akhenáton, da fé no único deus solar Aton, dependência fortemente debatida e controversa, no entanto, permite, porém, enfrentar, indiretamente, a questão mais geral, a da complexa e relevante relação entre história a religião. Não por nada o título do ensaio de Bori é emblemático: É uma história verdadeira? E é fácil de imaginar o quão difícil será discernir os dois fios no emaranhado de suas interligações, enlaces e enredamentos.
As mesmas perguntas, focadas principalmente no monoteísmo, envolveram também a pesquisa de um dos mais famosos egiptólogos contemporâneos, Jan Assmann, que, porém, alargou o âmbito da sua análise para além do perímetro histórico-filológico, fazendo-o avançar no horizonte mais fluido da ligação entre cultura e religião. Entre outras coisas, sua análise cruzou-se com a do estudioso bolonhês, tanto assim que nasceu uma Carta a Pier Cesare Bori que se pode ler no livro de Assmann, La distinzione mosaica, publicado pela Morcelliana, em 2015. A traduzir a carta foi Elizabeth Colagrossi à qual devemos, agora, uma evocativa entrevista ao egiptólogo, autor, ele também, de um Mosè l’egizio (Adelphi, 2a. ed., 2007). O diálogo permite recompor o mapa dos "caminhos teóricos e autobiográficos” deste “arqueólogo” da memória e dos povos, que tornou-se conhecido pela sua escaldante (e contestada) tese sobre a raiz violenta dos monoteísmos. Nestas páginas são obviamente enfrentadas, de modo sintético, os vários itinerários de busca assmanianos. Queremos assinalar dois em particular. O primeiro diz respeito a chamada "distinção mosaica"; formulada pelo estudioso, em 1995, da sobre a distinção entre “verdadeiro” e “falso”. Ouçamos o próprio autor: "Minha tese afirma que ela não pertence à religião. Na religião trata-se do que é puro e impuro, santo e profano, certo ou errado na execução dos ritos, mas não do que é verdadeiro ou falso. Essa distinção pertence à ciência, que trabalha por demonstrações, tais como em lógica, matemática, história, jurisprudência, mas não em religião. Nesse domínio, o monoteísmo entrou pela primeira vez, delimitando o verdadeiro Deus, em comparação com os falsos deuses, e o verdadeiro credo, em relação à falsa crença e à heresia".
A outra tese de Assmann que assinalamos é a da chamada religio duplex. Na prática, se comparam, por contraponto ou dialética, em duelo ou dueto, conforme o caso, uma verdade religiosa e revelada e uma de origem mais natural e universal. Delineia-se, assim, na história da humanidade, uma espécie de dupla verdade, que muitas vezes polariza, mesmo tendo, por vezes, tangências e convivências pessoais e sociais. Configura-se de tal modo uma "sobre- ou inter-religião, uma religião natural, comum a todos os homens, para além das suas religiões positivas herdadas". A declinação desta dualid ade realiza-se em contraste ou comparação entre fé popular e religião codificada, embasada numa revelação, em mistérios e ritos, entre espiritualidade pessoal e religiosidade pública, entre epifania cósmica, exotérica, isto é, aberta a todos, e teofania circunscrita e esotérica. É fácil intuir em que linha prevalentemente se coloque, de acordo com Assmann, o monoteísmo no interior da religio duplex.
Significativas são as últimas linhas da entrevista, em que o estudioso refaz-se à famosa parábola dos três anéis de Lessing, para concluir - com um toque de relativismo laboriosamente exorcizado pelo autor – concentrando mais uma vez sua bateria contra o monoteísmo: "O problema do monoteísmo da verdade reside no seu pretencioso conceito de revelação, com sua paradoxal conexão de exclusividade e universalidade. Há muitas religiões, mas não pode haver mais do que uma verdade absoluta e universal". A assim chamada "teologia fundamental", instigada há algum tempo sobre esta aporia, desenvolveu um conjunto de réplicas que não encontram eco, porém, nas páginas de Assmann, e isso é devido, também, um pouco, à "autorreferencialidade que relega, muitas vezes, a teologia sistemática ao hortus conclusus das academias teológicas.
BORI, Pier Cesare. È una storia vera? Le tesi stsoriche dell’Uomo Mosè e la religione monoteística di Sigmund Freud. A cura de Gianmaria Zamagni, Roma: Castelvecchi, 2015, 44p.
ASSMANN, Jan. Il disagio dei monoteismi: Sentieri teorici e autobiografici. Brescia: Morcelliana, 2016, 95p.
Veja também
ASSMANN, Jan. La distinzione mosaica. A cura de BALLANTI, Roberto Celada. Brescia: Morcelliana, 2011, 45p.
ASSMANN, Jan. Un solo Dio e molti dèi. Bolonha: Dehoniane, 2016, 62p.
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Moisés vai ao psicólogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU