11 Março 2023
Pressionada por um projeto de exploração de potássio e por políticos locais, a comunidade indígena Soares, do povo Mura, permanece no limbo da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), e ainda sem previsão para ser incluída nos estudos do órgão para ser demarcada. A empresa Potássio do Brasil mantém reservas do minério dentro de Soares e quer construir um porto próximo da aldeia Urucurituba, na cidade de Autazes, no Amazonas. Lideranças das duas comunidades lutam por demarcação desde 2003, ou seja, desde o primeiro mandato do presidente Lula.
A reportagem é de Elaíze Farias e Wérica Lima, publicada por Amazônia Real, 08-03-2023.
Em janeiro e fevereiro deste ano, os pareceres da procuradoria federal da Funai e do Ibama, órgãos que deveriam proteger os povos indígenas e o meio ambiente, sinalizaram que a situação dos Mura, na prática, continuará como está.
A última posição oficial foi dada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 15 de fevereiro, em resposta à juíza Jaiza Fraxe, da Justiça Federal do Amazonas. A magistrada é responsável por analisar os vários lados da questão e decidir se o projeto de exploração de potássio em Autazes poderá seguir adiante. Esse projeto sofre grande pressão pela Potássio Brasil, uma empresa que pertence ao banco canadense Forbes & Manhattan, do mesmo grupo da mineradora Belo Sun, no Pará, e por políticos locais e nacionais, incluindo o governador Wilson Lima, que iniciou seu segundo mandato se manifestando favorável à mineração.
Na manifestação para a juíza Jaiza Fraxe, o procurador federal Cássio Cunha de Almeida, da Funai, afirma que a reivindicação da TI Soares está na fase de “qualificação”. É o momento em que o órgão está aberto a receber documentos, pesquisas e informações preliminares de natureza antropológica, etno-histórica, ambiental, sociológica, fundiária e cartográfica. Esta fase, conforme apurou a Amazônia Real, não oferece previsão de estudos e não dá garantia de que o processo irá avançar.
“Cumpre destacar que a qualificação das reivindicações fundiárias indígenas é um instrumento de planejamento interno que não dá ensejo automaticamente à constituição de Grupo Técnico (GT)”, diz o procurador-federal. Cássio Cunha de Almeida conclui a resposta enviada à Justiça Federal do Amazonas informando que “no momento ainda não foi concluído o trabalho técnico, logo a Funai ainda não tem condições de avaliar sobre a constituição, ou não, do GT”. É só com a constituição de um GT multidisciplinar que são realizados os estudos necessários à demarcação das terras indígenas.
Em setembro do ano passado, a juíza determinou que o órgão constituísse um GT para dar início do processo de demarcação, mas a Funai recorreu e foi atendida pelo desembargador Jamil Rocha Jamil de Oliveira, no mês de outubro.
Procurada, a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, disse à Amazônia Real que o órgão federal já retomou as demarcações de terras indígenas e que a procuradoria da Funai está assessorando o órgão “para que esse retorno das demarcações ocorra com segurança jurídica”. E garantiu que o caso “já está sendo revisto”.
“Sobre a TI Soares/Urucurituba, a Funai já realizou reuniões internas sobre o tema com a CGID, CGLIC e PFE-Funai, bem como realizará outras tratativas na próxima semana, inclusive com o MPF (Ministério Público Federal) sobre o tema”, afirmou Joenia, em nota enviada à reportagem na última sexta-feira (3).
Conforme Joenia, a Funai “já está revendo os pareceres que detinha posicionamentos anticonstitucionais e equivocados para que os procedimentos de demarcação das terras indígenas retomem”. Muitos deles foram herdados de órgãos federais que foram aparelhados no governo de Jair Bolsonaro (PL).
Em 2018, líderes das duas comunidades uniram-se para fazer a autodemarcação como Terra Indígena Soares/Urucurituba. Foi a forma que encontraram para fazer frente ao avanço da mineração na Amazônia. A Potássio do Brasil quer construir um porto próximo de outra comunidade Urucurituba, na cidade de Autazes, no Amazonas.
Se existe a indefinição dentro da Funai em relação à TI Soares/Urucurituba, o Ibama mantém posicionamento anterior de não assumir o processo de Estudos de Impacto Ambiental e do licenciamento ambiental do projeto de exploração de potássio em Autazes.
Para Jaiza Fraxe, em decisões anteriores, é o órgão ambiental federal que deve se responsabilizar sobre o processo de licenciamento do empreendimento, responsabilidade que o Ibama sempre se negou a assumir no governo de Bolsonaro.
O tuxaua Sergio Freitas do Nascimento próximo a uma placa da mineradora Potássio Brasil (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
O procurador federal do Ibama, Luis Eduardo Alvez Lima Filho, em parecer enviado em 12 de janeiro, oito dias após a intimação da juíza, afirma que “a posição da Autarquia Ambiental se mantém a mesma”. Isso significa que, para ele, está correto o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) ser o licenciador do projeto de exploração de potássio em Autazes. O Ipaam já licenciou o empreendimento, mas a autorização foi suspensa por Jaiza Fraxe em 2016, acatando pedido do MPF, após denúncia dos indígenas Mura.
Luis Eduardo Alvez Lima Filho justifica o posicionamento dizendo que “o projeto não se localiza em áreas ocupadas por povos indígenas, cujo relatório circunstanciado de identificação e delimitação tenha sido aprovado por ato da Funai, publicado no Diário Oficial da União (…), não caracterizando, portanto, empreendimento que esteja sujeito ao licenciamento ambiental de competência federal”.
Em resposta ao posicionamento do Ibama, do dia 10 de fevereiro, Jaiza Fraxe voltou a reiterar sua decisão e ainda aponta “omissão” por parte do Ibama.
“Entende o juízo pela necessidade da competência do Ibama para analisar e decidir quanto à licença de operação. Sua omissão obrigará, em algum momento, a que o juízo faça o seu papel e estabeleça as condicionantes, caso venha a ser efetivamente instalado o parque tecnológico de exploração de potássio no Amazonas com impactos nos arredores de Terras Indígenas”, diz ela em novo despacho.
A magistrada afirma ainda que “apenas está pendente a criação de um GT para analisar a possibilidade de demarcação da Aldeia Soares (visitada em plena Pandemia por COVID19 em inspeção judicial por essa magistrada e todos os atores processuais e seus representantes) enquanto Terra Indígena Mura”.
No dia 4 de janeiro deste ano, a juíza intimou a União, a Funai e o Ibama para saber, agora, qual o posicionamento do governo Lula no caso do empreendimento de exploração de potássio em Autazes, dentro de um território do Mura. A surpresa foi ter a mesma resposta obtida ainda durante o governo de Bolsonaro.
“Em razão da mudança de titularidade do executivo federal, de seus Ministérios, Autarquias e Fundações públicas federais, há necessidade urgente do juízo federal identificar se permanecem ou não os pontos controvertidos para fins de saneamento do feito”, diz trecho do despacho da juíza.
O parecer do procurador federal da Funai surpreendeu os indígenas Mura, como o tuxaua de Soares, (o equivalente a ‘cacique’) Sérgio Nascimento, que aguardava uma resposta positiva da Funai. Ele dizia que esperava uma mudança na política indigenista do governo Lula, que prometeu demarcar terras indígenas.
“Queremos nossa terra demarcada. Só assim conseguimos lutar contra o projeto de exploração de potássio. A Funai precisa ouvir nossa reivindicação, conhecer nossa realidade e passar a levar em conta o que está acontecendo conosco e na nossa terra”, disse Nascimento.
O pesquisador Renildo Viana Azevedo, cuja tese de doutorado é sobre Soares e Urucurituba, ressalta que o posicionamento do procurador não deve ser validado, pois se trata de uma demanda “de anos” que já possui literatura comprovando a presença Mura na região.
Governador Wilson Lima com o presidente da empresa Potássio do Brasil, AdrianoEspeschit (Foto Secom)
“A resposta de que não pode, de que não dá por falta disso [trabalho técnico] é, no mínimo, equívoco. Há uma demanda histórica, uma demanda antiga formalizada com estudos não governamentais, mais os estudos da academia. Tem também os próprios estudos das organizações do povo Mura e até mesmo os achados arqueológicos durante os estudos de impactos ambientais, que demonstram que ali há uma história de ocupação do povo Mura”, explica.
Sem saber da resposta de Joenia Wapichana à Amazônia Real, Renildo Azevedo afirmou que a presidência da Funai precisa se posicionar contra quanto às afirmações do procurador federal e iniciar logo a demarcação, antes que se inicie a exploração do potássio em Autazes.
“Creio que é equivocada essa resposta da Funai e acredito que tem que ser modificada para pelo menos criar esse grupo de trabalho com fim de fazer os estudos necessários para delimitação da terra. Não dá para responder assim sem ter um esforço mínimo de verificação do requerimento de delimitação da Terra Indígena Soares e Urucurituba”, afirma Azevedo.
Uma advogada especializada em processos de demarcação de terras indígenas ouvida pela Amazônia Real afirma que a qualificação é apenas um registro e que, na prática, não representa garantia alguma de que o território terá seus estudos iniciados.
“O processo de demarcação começa formalmente quando o presidente da Funai publica no Diário Oficial da União a constituição do Grupo Técnico (GT) que vai começar os estudos da terra indígena para fazer o relatório circunstanciado da identificação e delimitação de terra indígena. É quando elas estão na categoria ‘em identificação”, afirmou a advogada, que pediu para não ter seu nome divulgado na reportagem.
“Nesse momento há um conflito, uma pressão muito forte de vários lados para que aconteça essa mineração, mas eu acho que o governo comprometido com os povos originários não deve olhar para o interesse do capital internacional em detrimento de um direito fundamental do povo Mura de ter o seu território delimitado”, diz Renildo Azevedo.
O tuxaua Sérgio Nascimento corre contra o tempo para que sua comunidade não seja engolida pelo empreendimento, que avança localmente entre a população de Autazes e pressiona o povo Mura para aceitar e aprovar o Projeto Autazes, como é conhecido.
“Eles pressionam muito. O dono da empresa só vive na cidade. Diz só coisas boas do projeto para os moradores e também pros outros indígenas. A gente se sente sozinho”, diz Sérgio, que pretende ir até Brasília para uma audiência com a presidenta da Funai, Joenia Wapichana.
A Potássio do Brasil tem sócios locais, do Amazonas, e desenvolve atividades sociais no estado e, sobretudo na cidade de Autazes. Ela conta com apoio do próprio governo do Amazonas e de autoridades governamentais. O governador do Amazonas Wilson Lima (União Brasil) já fez reunião com o presidente da Potássio Adriano Espeschit mais de uma vez e cravou como uma das prioridades de seu segundo mandato a exploração de silvinita na campanha eleitoral em outubro de 2022.
Lima apoia a legalização da mineração, da flexibilização ambiental e a expansão do agronegócio no sul do Amazonas, região mais pressionada do estado. Desde que o governo Lula ganhou as eleições em outubro de 2022, o presidente da Potássio Adriano Adriano Espeschit mudou de estratégia. O empresário passou a adotar uma retórica ambiental, chamando o projeto de “potássio verde”, conforme se vê na entrevista cedida à agência Infra em novembro de 2022. “Nossos produtos são verdes. E a Potássio Brasil irá produzir potássio verde”, afirmou.
Tuxaua Sergio Freitas do Nascimento(E) e seu vice Tuxaua, Vavá dos Santos(D) , observam principal área de prospecção de potássio dentro do território indígena Mura (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
A Amazônia Real indagou se a empresa mantém o projeto de explorar Potássio em Autazes, dentro da comunidade Soares, e quais são suas propostas para a área. Até a publicação desta matéria, o órgão não respondeu. Por ora, ela aguarda a liberação da licença ambiental.
O Ibama e o MPF também foram procurados para se pronunciarem sobre o assunto abordado nesta reportagem, mas não responderam.
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Funai e Ibama lavam as mãos sobre a exploração de potássio em Autazes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU