Irã: Ódio pela vida. Artigo de Massimo Recalcati

Foto: Taymaz Valley | Flickr CC

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22 Dezembro 2022

"O Deus dos aiatolás é um Deus da guerra que luta não só contra as outras religiões, mas sobretudo contra a própria vida. Por isso, o machismo não é apenas um apêndice secundário da teocracia, mas o núcleo psiquicamente mais significativo dela: se a mulher é a encarnação da vida e da liberdade, o ódio à vida impõe sua subserviência disciplinar, sua mortificação sistemática, seu cancelamento", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 20-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Os enforcamentos públicos dos jovens opositores ao regime teocrático dos aiatolás têm a intenção de refrear a revolta em curso no Irã através da exibição terrorista da morte.

Uma desconcertante esquizofrenia temporal aparece diante de nossos olhos. Por um lado, um povo, levado à revolta pelas mulheres, exige liberdade e democracia, movendo-se com determinação e coragem para um novo futuro. Por outro lado, o sistema político do regime teocrático que permanece preso a um passado remoto, imóvel, insensível a qualquer progresso, ancorado numa ideologia patriarcal e machista de tipo medieval. É um exemplo trágico do que significa permanecer nostalgicamente ligados a um passado destinado a ser irreversivelmente corroído pelo tempo. Mas, em vez de reconhecer o caráter delirantemente antiquado desse apego nostálgico, desfralda-se o horror da morte como ato de justiça desejado por Deus.

É esta a expressão do coração profundamente perverso do regime teocrático. Qual é, de fato, a natureza mais profunda da perversão? Lacan o indicou com precisão: tornar-se alferes, legionários, cruzados, cavaleiros da fé de uma Lei que exige o sacrifício perpétuo da vida humana em nome de um ideal superior. É o que está acontecendo no Irã: a Lei de Deus é invocada contra aquela dos homens, transfigurando o exercício brutal do poder em uma obra de purificação moral tornada necessária pela obstinação obtusa daqueles que não conseguem reconhecer o poder absoluto daquela Lei.

Não é por acaso que aqueles que se opõem ao regime dos aiatolás são definidos como "inimigos de Deus". Na realidade, a multiplicação das penas de morte e a sua execução pública são a última desesperada tentativa do regime de refrear a propagação dos protestos. Também neste caso não se pode esquecer o carácter profundamente perverso da estratégia: evocar o espectro da morte para provocar angústia e paralisar a revolta.

Em todos os regimes totalitários, esse esquema sempre foi usado lucidamente: a ameaça iminente de morte deve ser capaz de conter o dissenso, dissuadir o protesto, silenciar os opositores, extinguir sua voz, restaurar a ordem. No entanto, esse uso sadicamente espetacular da morte, exibida como um martelo que deve esmagar impiedosamente os opositores do regime, revela que a morte não é apenas um instrumento a serviço da repressão em condições de emergência, mas o concreto armado que permeia todo regime totalitário. A perversão do poder não se mede apenas por sua ação arbitrária, mas também por sua pulsão de morte. O século XX forneceu exemplos dramáticos. Em todo fundamentalismo ideológico-religioso, o profundo ódio à vida aparece em primeiro plano absoluto.

No caso da teocracia, a tese teológica que a alimenta é simples e, ao mesmo tempo, dramática: a verdadeira vida não é esta, mas aquela de um mundo além deste mundo, do qual esta vida é apenas uma pálida sombra. A mortificação da vida - da qual as mulheres seriam a encarnação maligna - seria consequentemente a única possibilidade de acesso à salvação, seu sacrifício a oferenda necessária para ser acolhidos no mundo verdadeiro que está além do mundo falso. O ódio à vida é, portanto, a única possibilidade de ganhar o reembolso no outro mundo pelas privações vividas neste mundo. É o espírito de sacrifício que encontramos em todos os totalitarismos. Mas é justamente naqueles teocráticos que aparece de cara descoberta: a Lei de Deus odeia a vida porque não deveria haver alegria neste mundo.

Por isso, o regime dos aiatolás não pode expressar nenhuma tolerância, piedade, capacidade de escuta. Mostrar a morte na praça através de enforcamentos significa reiterar que a vida como tal é objeto de ódio. O Deus dos aiatolás é um Deus da guerra que luta não só contra as outras religiões, mas sobretudo contra a própria vida. Por isso, o machismo não é apenas um apêndice secundário da teocracia, mas o núcleo psiquicamente mais significativo dela: se a mulher é a encarnação da vida e da liberdade, o ódio à vida impõe sua subserviência disciplinar, sua mortificação sistemática, seu cancelamento.

O corpo da mulher é, de fato, o anti-Deus, o anti-regime, o antagonista irredutível à violência do patriarcado. Por isso, sua inferioridade ontológica e moral deve sancionar sua dimensão impura e sua necessária purificação. É a inclinação machista de todo patriarcado: acreditar fanaticamente em Deus é uma forma de rejeitar a existência da mulher, de continuar a odiar a vida.

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