17 Dezembro 2022
O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba elogiou o Papa Francisco por suas expressões “sinceras e profundas” de “compaixão” pelo povo sofrido da nação do Leste Europeu, sob ataque desde fevereiro passado pelas forças russas.
Mas em nova entrevista na semana passada, Kuleba também criticou o papa e o Vaticano por uma relutância em “chamar as coisas pelo nome” no conflito por medo de ofender os russos.
A entrevista é de Loup Besmond de Senneville, publicada por La Croix International, 12-12-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Na quinta-feira, 8 de dezembro, em Roma, o Papa Francisco ficou muito emocionado ao falar sobre a Ucrânia. O papa chorou durante uma oração que fazia na festa da Imaculada Conceição, na Escadaria Espanhola. O que isso significa para o povo ucraniano?
Esta compaixão significa muito para nós e vai diretamente ao coração dos ucranianos, vendo quão sincera e profunda foi a reação do papa.
E, claro, estamos ansiosos por sua visita à Ucrânia. Ele tem muitos seguidores na Ucrânia, mas sua visita seria bem recebida por uma parte muito mais ampla da sociedade ucraniana, porque o papa é um símbolo de simpatia, compaixão e apoio espiritual. Estamos ansiosos para recebê-lo o mais cedo possível.
Em que questões a Ucrânia está trabalhando com a Santa Sé?
Encontrei-me com o arcebispo Paul R. Gallagher, o responsável da Santa Sé para a Relações com Estados, nos bastidores recente reunião da Organização para Segurança e Cooperação da Europa, e havia muitos assuntos em discussão. Claro, tudo relacionado à guerra é uma prioridade absoluta.
De nossa parte, nossa oferta sempre foi a mesma: o Vaticano pode escolher a questão que melhor pode levar adiante. Aceitaremos qualquer esforço. Se for pelo retorno de milhares de crianças presas na Rússia, será bem-vindo. Da mesma forma, se quiser trabalhar na troca de prisioneiros, promover a iniciativa para garantir o abastecimento de alimentos para a Ucrânia ou participar da proposta de paz formulada pelo presidente Zelensky.
Este é o primeiro passo. Mas não é o suficiente. O próximo passo é saber como fazê-lo. Nesta fase, alguns erros devem ser evitados, para que não haja confusões e mal-entendidos.
Primeiro, não podemos dizer, por um lado, que queremos avançar em uma questão e, por outro lado, falar sobre fraternidade entre ucranianos e russos. Devemos parar de dizer que vamos fazer a paz porque somos nações irmãs. Este não é o caso. E se falamos de irmandade, na qual a Rússia insiste, é antes a irmandade de Caim e Abel. Os russos vêm aqui para matar e estuprar.
Em segundo lugar, o investimento em uma questão não pode ser um pretexto para ser neutro no conflito e não chamar as coisas pelo nome, sob o pretexto de não querer assustar os russos. Nós não aceitamos isso. Nunca esqueça que a Rússia é o agressor e a Ucrânia é a vítima dessa agressão. Nunca devemos ser colocados em pé de igualdade com a Rússia, como fazem aqueles que pedem uma divisão de responsabilidades entre os dois países.
Você acha que o Vaticano poderia desempenhar um papel de mediador no conflito?
O presidente Putin não está disposto a acabar com este conflito. Portanto, a mediação ampla, neste ponto, não funcionará. Infelizmente, desde 24 de fevereiro [quando a Rússia invadiu a Ucrânia], 90% das propostas para se tornar um mediador para resolver o conflito, vindas de vários países, foram uma cortina de fumaça para a falta de vontade desses países de tomar partido e apoiar abertamente a Ucrânia contra a Rússia. Nessas condições, a mediação não é uma opção.
É este o caso da Santa Sé?
Não. O problema com a Santa Sé é mais que ela fez propostas, mas nunca teve uma resposta da Rússia – e nunca terá. Portanto, tudo o que o Vaticano pode fazer é escolher temas concretos e levá-los adiante.
Em 2 de outubro, o papa apelou ao presidente Putin para parar a guerra e ao presidente Zelensky para estar aberto a propostas sérias de paz. Como você encarou esse apelo?
Honestamente, não ajudou. O apelo ao presidente Putin para parar a guerra faz todo o sentido, porque ele a iniciou. Mas quando, na frase seguinte, você pede ao presidente Zelensky que esteja aberto a propostas sérias de paz, a implicação é que Zelensky não está aberto a tais propostas.
Isto simplesmente não é verdade. Nenhum país do mundo deseja mais a paz do que a Ucrânia. Isso cria a impressão de que ambos os lados são culpados, um porque atacou e o outro porque não quer a paz.
O que você acha que seria uma proposta séria de paz?
Para a Ucrânia, qualquer proposta de paz séria é baseada em um princípio fundamental: a integridade territorial da Ucrânia deve ser totalmente restaurada. Podemos debater sobre todo o resto, mas não sobre isso.
Que papel os líderes religiosos da Ucrânia podem desempenhar na resolução desse conflito?
A agressão russa contra a Ucrânia causou grandes fraturas e divisões no mundo religioso, e não apenas entre os cristãos. Este também é o caso de muçulmanos e judeus.
O que esperamos das religiões, antes de tudo, é que consolem as pessoas e as ajudem espiritualmente. Por outro lado, lembro que a Igreja e o Estado são separados. Isso significa que nenhuma religião pode apoiar as narrativas russas ou sua posição na Ucrânia. Não podemos tolerar que um padre na Ucrânia abençoe soldados russos pelo sucesso no campo de batalha. O papel das Igrejas na Ucrânia é ajudar o país a se recuperar.
Cada Igreja é responsável pelas palavras que usa e pelas ações que realiza. Nesse sentido, o alto nível de propaganda russa entre o clero do Patriarcado de Moscou na Ucrânia não deve ser tolerado. Qualquer atividade de uma Igreja que facilite ou ajude invasores russos deve ser reprimida, por todos os meios legais à nossa disposição. A Igreja não pode ser um porto seguro para os espiões russos.
Você é muito crítico em relação à posição do Papa Francisco sobre este conflito. Mas considera que evoluiu desde o início da guerra?
Sim, evoluiu na direção certa. A verdade é que esta guerra destruiu muitos alicerces da ordem política global e muitas percepções válidas por décadas.
A maior decepção para nós foi quando o papa disse que a OTAN estava de alguma forma provocando a Rússia, que estava “latindo” à sua porta. Entendo de onde vem esse argumento, que é a Rússia, e concluo que alguém o compartilhou com o papa como uma explicação razoável para a guerra. Mas isso não legitima o argumento de forma alguma.
É doloroso ouvir certas coisas do papa, mas devo elogiá-lo por estar aberto e aceitar a realidade em sua complexidade. Ele não se prende a conceitos que não funcionam e não correspondem à realidade, mas está constantemente aberto para encontrar a verdade e a paz. Mas a triste verdade é que ainda não chegou a hora da mediação ampla, e a razão para isso é o presidente Putin.
Porque quando você quer a paz, você não envia centenas de mísseis todas as semanas para destruir a infraestrutura energética e privar os civis do acesso à eletricidade, aquecimento e água. Você também não envia centenas de soldados para capturar cidades no Donbass ou anexar territórios. Chegará o dia da grande mediação e, claro, se a Santa Sé quiser desempenhar um papel, certamente o fará. Mas ainda não chegamos lá, para nosso profundo pesar.
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Chanceler ucraniano critica “neutralidade” do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU