26 Novembro 2022
Nos últimos dias, o ciclo de encontros “Molte fedi sotto lo stesso cielo", promovido pela Acli (Associação Cristã de Trabalhadores Italianos), promoveu um diálogo on-line entre Franco Garelli e Danièle Hervieu-Léger.
Esta é a transcrição da primeira parte da noite. Nós a oferecemos aos nossos leitores como uma contribuição, séria e em algumas passagens muito provocativa, para pensarmos sobre como continuar sendo pessoas de fé no nosso tempo.
O diálogo foi publicado em La Barca e il Mare, 24-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para começar, gostaria de lhe perguntar, Danièle, por que esse título, “Rumo à implosão?”, em uma França onde, apesar do peso das estatísticas, observa-se, como você diz, uma certa vitalidade do catolicismo de base, como apareceu, por exemplo, durante o período da pandemia.
Escolhi esse título com Jean-Louis Schlegel porque queríamos enfatizar a situação de decomposição interna da própria instituição. Há muito tempo, sociólogos e historiadores estudam a erosão da presença do catolicismo na sociedade francesa, mas a ideia central nessa obra é que o naufrágio também vem de dentro, porque a Igreja é cada vez menos capaz de responder à evolução do mundo que a cerca.
De fato, a hipótese que defendo nesse livro é a de que a Igreja está contaminada por um sistema “romano”, por um sistema clerical que ela implantou a partir do Concílio de Trento para enfrentar a ameaça do cisma e depois até o século XIX para combater os efeitos da modernidade política e reafirmar seu poder na sociedade. Esse sistema defensivo – que eu chamo de sistema romano, e que foi elaborado para enfrentar as ameaças externas – tornou-se o veneno da Igreja. Uma verdadeira pedra no sapato. E é esse sistema que mais a ameaça hoje.
Um dos aspectos que mais me impressionou ao ler seu texto foi o caráter “inflamável” do catolicismo francês, que se manifesta ainda hoje por meio de debates internos “virulentos”; conflitos não só políticos, mas também teológicos e pastorais; de “correntes inconciliáveis”; de uma “propensão francesa à histerização dos debates religiosos”. As diferentes almas do catolicismo realmente não têm nada em comum? E tudo isso ocorre – para usar suas palavras – “com a impotência da própria instituição de estabelecer um marco e um caminho compartilhável por todos os fiéis para dar conteúdo ao ideal de unidade de que a Igreja se vale”.
Esse caráter inflamável do catolicismo francês e, mais em geral, da cena religiosa francesa vem de uma longa história. No nosso imaginário nacional, a religião está estruturalmente associada à violência, e isso, para mim, tem um ponto de partida nas guerras religiosas do século XVI. Foram essas guerras religiosas que verdadeiramente associaram, e de um modo muito estreito, religião e violência na França. Toda a história do catolicismo na França é marcada por conflitos extremamente violentos, que envolveram ao mesmo tempo uma dimensão propriamente religiosa e teológica e uma dimensão política. Isso não remonta à Revolução Francesa, nem à constituição civil do clero, nem ao choque entre a Igreja e a República entre o século XIX e o início do século XX.
Isso vem acima de tudo dessa violência religiosa que entrou na esfera religiosa e em particular na esfera católica, que vimos no século XVII, por exemplo, na repressão do jansenismo, na reevocação do Édito de Nantes, em uma série de situações cruciais em que a nação se dividiu, e nós ainda carregamos essa herança de conflitualidade. Então, isso não significa que a violência dos conflitos ideológicos, teológicos e políticos no catolicismo francês signifique automaticamente que essas correntes católicas opostas não têm nada a dizer umas às outras – é preciso saber que, com o nosso melhor inimigo, temos coisas a compartilhar, e é isso que complica a situação – mas é verdade que os conflitos que o catolicismo vive hoje são extremamente violentos.
Outra pergunta sobre uma questão central do texto: você retoma e reforça sua tese sobre a exculturação, ou seja, sobre a saída, o afastamento ou a expulsão do catolicismo da cultura comum. Em sua análise, surge uma pergunta intrigante: é a cultura que expulsa o catolicismo ou é este que é expulso por sua própria culpa?
Respondo, acima de tudo, voltando à noção de exculturação. Com efeito, é preciso pensar que a matriz cultural do catolicismo na França, a maneira como o catolicismo perdurou por tanto tempo, modelando a cultura social e também política, e não apenas religiosa, na França, sobreviveu implícita, mas muito fortemente, à laicização das instituições ocorrida com a modernidade política e também, há bastante tempo, até os anos 1970, à secularização da mentalidade. Essa matriz cultural – é preciso compreender – é particularmente visível no modo como as instituições civis e políticas são pensadas na França: não se entende nada em relação à sociedade francesa, à universidade, à escola, ao próprio Estado, ao sistema hospitalar etc. se não compreendemos até que ponto essa matriz católica modelou a nossa relação com todo o nosso panorama institucional.
Dou apenas um exemplo: um filósofo e homem político do século XIX falava do Estado de um ponto de vista completamente secular, dizendo que o Estado deve ser moral e magistral. É a réplica à Mater et magistra, e, portanto, há essa interpenetração entre a cultura política e institucional e a Igreja. Ora, a partir dos anos 1970, é essa matriz cultural que está se desfazendo, ou seja, não é mais possível dizer hoje – como J. Paul Sartre dizia ainda nos anos 1950 – que “na França somos todos católicos”: sabemos muito bem que há muito tempo os franceses não são todos católicos, mas ainda podíamos dizer que o catolicismo falava um pouco para todos.
Hoje isso acabou. O catolicismo é uma minoria religiosa entre outras, em uma sociedade que vai perdendo cada vez mais o tapete cultural modelado pelo catolicismo que – ouso dizer – se retira debaixo dos pés da instituição e em que a matriz cultural católica hoje fala “em rajadas”. Restam vestígios, ela não desapareceu completamente, mas ao mesmo tempo está submersa pela cultura do indivíduo e da autorrealização. Em tudo isto, as responsabilidades, as causas desse fenômeno são de ambos os lados: tanto do lado da sociedade quanto do lado da Igreja, que é absolutamente incapaz de reagir a esse processo.
Ainda sobre esse tema, você diz que a exculturação é um processo muito gradual, porque o catolicismo moldou profundamente o nosso mundo cultural. O que resta, então, do catolicismo exculturado?
É o que eu dizia há pouco: restam vestígios dele, restam pedaços que ressurgem regularmente, por exemplo no debate sobre a escola, nos debates sobre a concepção do bem público, nos debates sobre a dimensão moral da política... Ainda há muitos tipos de vestígios, mas a coerência dessa matriz explodiu fortemente a partir da virada cultural do século XX, com uma afirmação cada vez mais clara da autonomia dos indivíduos, não só na ordem política, mas também na ordem de sua vida pessoal e íntima.
Na base da exculturação, está a distância da Igreja e do catolicismo em relação à “modernidade psicológica”. Essa é uma categoria muito interessante. Pode nos explicar esse ponto tão importante?
A questão da autonomia e do conflito, o problema que a afirmação moderna da autonomia levanta à Igreja – simplesmente porque a afirmação da autonomia do sujeito contradiz a pretensão da Igreja de deter o monopólio da verdade –, esse conflito histórico e estrutural típico da França entre a modernidade e a Igreja romana é evidentemente abordada sobretudo por meio da questão da autonomia do sujeito cidadão. Desse ponto de vista, a Revolução Francesa foi uma inversão total. O que a Revolução Francesa fez? Afirmou que o sujeito cidadão é autônomo e é capaz, com outros sujeitos cidadãos, de produzir o sentido da história que desejam conduzir coletivamente. E essa é uma ruptura cultural e política evidentemente maior: a Igreja faria de tudo para tentar combater essa autonomia.
No século XIX, o confronto, a guerra das duas Franças, o confronto entre a República e a Igreja no século XIX é verdadeiramente o debate em torno da autonomia do sujeito cidadão. A lei não cai do céu, a lei surge do corpo cidadão. Então, essa centralidade da autonomia política é fundamental, mas o que ocorreu – uma nova inversão, uma virada nos anos 1970 – é o acontecimento que Jean Baudrillard chamou de modernidade psicológica, ou seja, não mais a autonomia do sujeito cidadão, mas também a autonomia do sujeito privado, do sujeito que intervém na esfera em que a Igreja pós-revolucionária teve que recuar em seu espaço de influência. Portanto, é o tempo da autonomia do sujeito em sua vida familiar, conjugal e íntima: é o advento do sujeito dos afetos.
E a Igreja, que havia sido extraordinariamente desestabilizada pelo advento do sujeito político, tinha conseguido se adaptar à situação, curvando seu trabalho de influência sobre a esfera familiar. E foi a partir do século XIX que a Igreja desenvolveu uma verdadeira obsessão em torno do tema da sexualidade, da conjugalidade, com o desenvolvimento familiar extremo. Pois bem, essa situação foi completamente sacudida pelo advento do sujeito dos afetos, que diz: “Eu sou o senhor da minha vida pessoal, da minha vida íntima, das minhas escolhas amorosas, e nenhuma instância pode afetar essa autonomia”.
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Rumo à implosão da Igreja. Entrevista com Danièle Hervieu-Léger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU