09 Novembro 2022
“Em oposição à posição transumanista, o doping contribuiria para aniquilar completamente o vestígio moral que permanece no esporte profissional. A aceitação do doping, e em particular do doping genético, contribuiria para que a prática desportiva fosse totalmente entregue ao mercantilismo e, consequentemente, aumentariam as diferenças econômicas que explicam a discrepância entre o sucesso e o fracasso no esporte: só poderiam ter acesso a este tipo de substâncias ou tecnologias genéticas de dopagem clubes esportivos com maior poder aquisitivo”. A reflexão é de Raúl Francisco Sebastián Solanes, em artigo publicado por El Viejo Topo, 01-11-2022. A tradução é do Cepat.
O desenvolvimento científico-tecnológico permite uma forma mais sofisticada de doping: o doping genético. Há quem defenda a superação dos limites naturais da competitividade esportiva e apresente seus argumentos. São eles suficientemente convincentes?
O sistema desportivo é um dos principais palcos das nossas sociedades, e acabou por se tornar o habitat paradigmático do homem performance. O corpo humano torna-se a representação de um "fato social total", essencialmente ligado a uma cultura de consumo cujo eixo central é a experiência de viver e sentir sensações físico-emocionais. De modo que o imperativo do fitness (bem-estar físico) é substituído pelo wellness (bem-estar, além de físico, mental e emocional). (1)
A influência do transumanismo, que irrompeu com força como uma das correntes de pensamento emergentes, chega ao próprio campo esportivo graças às suas propostas sobre o gene dopping e enhacement, ou seja, o doping genético e o melhoramento genético do desempenho dos atletas no terreno esportivo. Para abordar esta questão teremos que abordar o que é o doping, sua história e suas novas manifestações como o doping genético.
A origem da palavra doping estaria no termo "dop", usado na África do Sul durante o século XVIII para se referir a uma bebida alcoólica que tinha efeitos estimulantes. Outros, por outro lado, assinalam que poderia vir da palavra holandesa "doop", que mais tarde seria assumido pelo inglês para se referir a uma substância com efeitos sedativos e alucinógenos. É no final do século XIX que o termo passa a ser usado para se referir a uma bebida com efeitos narcóticos, e é no início do século XX que a conexão com os efeitos de melhoria do desempenho físico é definida.
As autoridades esportivas foram as primeiras a tomar uma série de iniciativas contra qualquer tipo de melhoramento proveniente de substâncias químicas. Em 1928, a Federação Atlética Amadora Internacional proibiu o doping e, em 1968, o Comitê Olímpico Internacional (COI) começou a realizar controles obrigatórios de doping. Como resultado, funda-se em 1999 a Associação Mundial Antidoping (WADA). Será nos Jogos Olímpicos de Atenas de 2004 que o controle antidoping sistemático será estabelecido pela primeira vez.
São muitos os argumentos apresentados a favor e contra o uso do doping a partir da ética do esporte, pois entende-se que o doping também é um problema jurídico, legal, cultural e, sobretudo, ético. Pérez Triviño reúne vários argumentos em relação à proibição do doping. São os seguintes:
O problema do engano e a afetação da igualdade. A partir deste argumento tenta-se apontar que o doping seria uma infração às regras do esporte, do que se depreende que quem recorrer a esse tipo de substância dopante estaria infringindo as regras do esporte. Os defensores desse argumento argumentam que o doping deve ser proibido, pois contradiz as regras do esporte e é uma forma de engano.
Outro argumento corresponde à “loteria genética”. Embora o esporte moderno se caracterize pela igualdade, a verdade é que em muitas ocasiões os atletas não saem para o campo esportivo em pura igualdade de condições, pois alguns foram dotados de uma série de disposições naturais que os fazem se destacar no esporte mais do que seus companheiros. De fato, os autores que recorrem a esse argumento entendem que a desigualdade per se não é inaceitável ou injusta no esporte; chegam inclusive a afirmar que faz parte do esporte, pois um esporte em que todos tivessem as mesmas habilidades ou disposições físicas seria chato e sem graça. Portanto, o uso do doping é rejeitado, especialmente nos casos em que seu uso se justifica para superar as desigualdades físicas de que a natureza nos dotou.
Outro argumento ainda: a relativa irrelevância do doping, que entende que atualmente o doping não oferece soluções milagrosas que aumentem o desempenho dos atletas. Cada participante do esporte deve continuar treinando com dedicação e sacrifício se quiser obter o objetivo desejado. O doping oferece uma vantagem hipotética e muitos riscos que colocam em perigo a sua saúde.
Por fim, o argumento do dano e do paternalismo injustificado. A principal premissa desse argumento é que, na maioria dos casos, as substâncias dopantes que os atletas ingerem para aumentar seu desempenho são descontroladas, portanto, há um alto risco de causar danos graves à saúde.
O uso de tecnologias genéticas no esporte pode surgir para diversos fins, sejam eles terapêuticos ou de melhoria do desempenho. A verdade é que haverá três tipos de modificação de melhoria que os atletas poderão experimentar em um futuro próximo: o doping genético, os implantes no corpo que transformarão os atletas em ciborgues e a criação de seres transgênicos, ou seja, híbridos e quimeras. A Agência Mundial Antidoping (WADA) define o doping genético como a introdução e subsequente expressão de um transgene (um gene geneticamente modificado) ou a modulação da atividade de um gene existente para obter uma vantagem fisiológica adicional.
O primeiro problema enfrentado pelo novo projeto de melhoramento é determinar o que se entende por “melhoramento”. De acordo com Allen Buchanan: “Um melhoramento biomédico é uma intervenção deliberada, aplicando a ciência biomédica, que busca melhorar (to improve) uma capacidade existente, que a maioria, ou todos, os seres humanos normais normalmente possuem, ou criar uma nova capacidade, agindo diretamente sobre o corpo ou o cérebro”. (2) Um segundo problema consiste em decidir que postura ética adotar a esse respeito, se estamos dispostos ou não a aceitar os melhoramentos com meios biomédicos, ou apenas são admissíveis as intervenções terapêuticas, ou seja, os tratamentos.
O debate sobre a aceitação ou não do doping e a aplicação das novas tecnologias genéticas para melhoramento das capacidades humanas tem se dividido em pelo menos duas frentes: de um lado, os transumanistas, que defendem que a grande variedade de técnicas e genéticas de melhoramento deve ser desenvolvida e aplicada à prática esportiva e, por outro lado, os bioconservadores, que defendem que não deveríamos modificar substancialmente a biologia e as condições inerentemente humanas.
Como assinala Thomas Douglas, a principal tese dos bioconservadores é que “mesmo que fosse tecnicamente possível e legalmente permissível se engajar no melhoramento biomédico, não seria moralmente permissível fazê-lo”. (3) Entre os bioconservadores encontramos Francis Fukuyama, que fez parte do Conselho de Bioética do ex-presidente norte-americano George W. Bush. Em seu artigo Transhumanism, Fukuyama afirmou que o transhumanismo é “a ideia mais perigosa do mundo”. (4) O filósofo Michael Sandel é outro dos clássicos dessa posição, expressa principalmente em seu livro Contra a perfeição. Ética na era da engenharia genética. Por sua vez, bioeticistas como George Annas, Lori Andrews e Rosario Isasi propuseram uma legislação para tornar a modificação genética hereditária em humanos um “crime contra a humanidade”.
Com foco no campo da ética esportiva, podemos citar alguns nomes importantes de ambos os grupos. No primeiro grupo, os transumanistas, devemos colocar as propostas de Claudio M. Tamburrini ou de Julian Savulescu, que afirmam que certas técnicas de melhoramento tornariam o esporte uma prática mais segura e estável. Por outro lado, no grupo dos bioconservadores, devemos incorporar as propostas do já citado Michael Sandel ou, sempre em relação ao esporte, de Robert Louis Simon.
Julian Savulescu, professor e diretor do Uehiro Centre for Practical Ethics da Universidade de Oxford, tem defendido abertamente os benefícios das técnicas de melhoramento humano no esporte profissional. Em primeiro lugar, ele entende que a decisão de ingerir substâncias dopantes pelos competidores é uma decisão livre: o atleta tomou essa decisão e não é diferente de qualquer outra decisão que ele tenha tomado para melhorar seu desempenho. Em segundo lugar, aponta que o surgimento e uso de muitos avanços tecnológicos em equipamentos esportivos implicam, por sua vez, que o desempenho dos atletas já tenha sido melhorado: um caso simples é o relativo às inovações produzidas no calçado usado pelos velocistas.
Da mesma forma, Savulescu acredita que a eliminação das proibições de doping em esportes como o ciclismo profissional trará igualdade e justiça entre os ciclistas e suas equipes. A razão é que a avaliação de substâncias proibidas não é feita de forma global, mas parcialmente, aplicando-se a uma pequena porcentagem da comunidade esportiva. Essa é a razão pela qual, apesar do prescrito pelas regras que proíbem o uso de doping, essa prática ainda é muito consolidada entre os atletas. Portanto, o estabelecimento de uma legislação que legalize e regule o uso de técnicas de doping contribuiria para tornar o esporte de alto rendimento mais justo.
A solução, na opinião de Savulescu, seria eliminar o tabu existente em relação ao doping e aceitar seu lado positivo (por exemplo, os esteroides anabolizantes permitem que os atletas aumentem seu desempenho para níveis nunca alcançados pelos treinamentos realizados sem recursos artificiais). Embora possa haver muitas objeções a isso, com base no fato de que põe em questão a equidade no esporte. Como bem assinala Sandel, esse melhorismo que aposta tudo no desenvolvimento, no progresso e no aperfeiçoamento levaria a uma sociedade estratificada e não solidária, uma sociedade que desprezaria aqueles que sofrem de deficiências e que, portanto, minaria o compromisso com a justiça distributiva. (5)
Podemos concluir que os atletas são pessoas com igual dignidade, o que implica que são fins em si mesmos e que não podem ser mediados para qualquer outro fim. Em vez de assumir riscos à saúde em prol da máxima competitividade, o esporte deve promover valores que impactem positivamente a sociedade a partir de suas repercussões socioculturais.
Em oposição à posição transumanista, o doping contribuiria para aniquilar completamente o vestígio moral que permanece no esporte profissional. A aceitação do doping, e em particular do doping genético, contribuiria para que a prática desportiva fosse totalmente entregue ao mercantilismo e, consequentemente, aumentariam as diferenças econômicas que explicam a discrepância entre o sucesso e o fracasso no esporte: só poderiam ter acesso a este tipo de substâncias ou tecnologias genéticas de dopagem clubes esportivos com maior poder aquisitivo.
Cabe pensar que por trás de argumentos como os de Savulescu se escondam os interesses das empresas farmacêuticas, que seriam as principais beneficiárias da legalização e, portanto, da disseminação do doping. Como o próprio Suvalescu declara: “o dinheiro compra o sucesso”. (6) Mas como Gadamer nos ensinou em seus últimos escritos, já com idade avançada, se o que queremos é ser educados e formados – ou, no caso do esporte, aspirar ao lema de Coubertin onde o importante é competir bem –, então devemos recorrer a forças humanas para sobreviver ilesos à tecnologia e ao ser da máquina. (7)
1. Russo, G. (2011). La società della welness: Corpi sportivi al traguardo della salute. Ed. Franco Angeli, p. 16.
2. Buchanan, A. (2011). Beyond Humanity? Ed. Oxford University Press, p. 23.
3. Douglas, T. “Moral Enhancement”, Journal of Applied Philosophy, vol. 25, n. 3, 2008, p. 228.
4. Fukuyama, F. Foreign Policy, 2004 September/October.
5. Sandel, M. (2007). Contra la perfección. Ed. Marbot, pp. 89-92. Edição brasileira: Contra a perfeição. Ética na era da engenharia genética (Civilização Brasileira).
6. Savulescu, J. (2012). ¿Decisiones peligrosas? Una bioética desafiante. Ed. Tecnos, p. 118.
7. Gadamer, H. G. (2000). La educación es educarse. Ed. Paidós, p. 48.
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Transumanismo na prática esportiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU