03 Novembro 2022
Vivenciando a experiência da morte, com o peso de sua humanidade, Jesus confirma a dimensão de sua escuridão e dor. Mas, ao mesmo tempo, com o poder de sua divindade, irradia-a com a luz da eternidade.
O comentário é de Ignazio Sanna, arcebispo emérito de Oristano e presidente emérito da Pontifícia Academia de Teologia (Path). O artigo foi publicado em Avvenire, 02-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A contribuição mais completa de Karl Rahner (1904-1984) à compreensão do morrer cristão está contida em dois ensaios “clássicos”: “Sobre a teologia da morte” (1958) e “O morrer cristão” (1976).
Com esta breve nota, gostaria de chamar a atenção para um papel particular que ele atribui à experiência da morte. Em artigo sobre as vias de acesso à compreensão do mistério humano-divino de Jesus, ele considera a experiência da morte como uma dessas vias, ao lado da via do amor ao próximo e da esperança em um futuro absoluto.
Karl Rahner (à esquerda) e Joseph Ratzinger durante o Concílio Vaticano II
Foto: Avvenire
Ao conectar a via da experiência da morte à do amor ao próximo, ele reflete sobre o fato de que a absolutez de tal amor é posta em questão justamente pela eventualidade da morte da pessoa amada. De fato, como escreve Gabriel Marcel, dizer a uma pessoa “eu te amo” equivale a lhe dizer “eu quero que você nunca morra, que você viva sempre”. Para que essa absolutez e definitividade do amor não sejam postas em questão, então, é preciso afirmar a existência de uma pessoa, que garanta que ela viva eternamente. Ou seja, a experiência da morte exige que a pessoa amada viva eternamente. Jesus é a pessoa amada que vive eternamente.
A experiência da morte, no entanto, também põe em questão a vida e a existência da pessoa que ama. A precariedade da vida e a certeza e inevitabilidade da morte afetam igualmente tanto a pessoa que ama quanto a pessoa que é amada. Pode haver, então, na história e na vida de quem ama, a esperança concreta de que a morte não anule definitivamente o amor, mas o faça florescer na bem-aventurada absolutez do amor de Deus e na sua eternidade?
Para Rahner, a resposta é afirmativa. Essa esperança existe se existir um homem cuja “ressurreição”, entendida como cumprimento absoluto da vida, possa ser experimentada na fé como a realização da nossa morte comum. Isto é, se existir um homem que testemunhe e documente que a morte não é a última palavra do destino humano, mas apenas a penúltima; que documente que a promessa de Deus é uma realidade e que, portanto, se constitui como um portador escatológico da salvação.
Ora, essa esperança cristã não pode se fundamentar na posse de seguranças materiais, estigmatizada pelas palavras de Jesus na parábola do rico que acumula bens sem parar (Lc 12,20). A esperança cristã, por outro lado, fundamenta-se na certeza de que, quando não estivermos mais, estaremos ainda mais, e que a morte não é o desaparecimento no nada, mas o encontro definitivo com o Deus da vida. Ela é alimentada pela oração que mantém viva no nosso coração e no nosso afeto a presença das pessoas que amamos.
Para nós, cristãos, o morrer encontra seu sentido último na pessoa de Jesus. A Sagrada Escritura, de fato, assegura-nos que “não temos um sumo sacerdote que não saiba tomar parte nas nossas fraquezas: ele mesmo foi posto à prova em tudo como nós, exceto o pecado” (Hebreus 4,15). Os Evangelhos relatam três intervenções milagrosas sobre pessoas mortas: a filha de Jairo (Marcos 5,35-43), o filho da viúva de Naim (Lucas 7,11-17), o amigo Lázaro de Betânia (João 11).
Diante dessas mortes, Jesus mostra uma grande compaixão humana que desemboca no pranto pela perda do amigo, mas, ao mesmo tempo, ele se manifesta como Filho de Deus. É verdade que os mortos aos quais ele chama de novo à vida não ressurgem definitivamente, porque a filha de Jairo, o filho da viúva de Naim e Lázaro morrerão novamente. Mas Jesus, ao chamá-los de volta à vida, ainda que temporariamente, revela de forma real e eficaz o destino último da humanidade, ou seja, a ressurreição para a vida eterna em Deus. Segundo o evangelista São João, os milagres de Jesus são “sinais” que revelam sua natureza divina e, neste caso, seu poder sobre a morte física.
No entanto, Jesus, mesmo sendo de natureza divina, sofre diante da morte e a enfrenta em toda a sua dramaticidade. São Marcos escreve que, no Horto das Oliveiras, Ele “começou a sentir medo e angústia. Ele disse a Pedro, João e Tiago: ‘A minha alma está triste até a morte’” (Marcos 14,33-34); “Ele rezava para que, se fosse possível, aquela hora se afastasse dele” (Marcos 14,35-36).
Em outras palavras, Jesus, vivenciando a experiência da morte, com o peso de sua humanidade, confirma a dimensão de sua escuridão e dor. Mas, ao mesmo tempo, com o poder de sua divindade, irradia-a com a luz da eternidade. A Sexta-feira Santa da crucificação e o Sábado Santo do sepultamento, sinais decisivos da encarnação, abrem-se no Domingo de Páscoa, que é a aurora de um dia sem pôr-do-sol, o ingresso na morada da Cidade Eterna.
Para nós, cristãos, a luz da fé ilumina a peregrinação terrena sobretudo no momento da provação, e o seu momento mais forte certamente é a morte de um de nossos pais, familiares, amigos. Quando ouvimos na mídia as notícias das mortes na Ucrânia, das mortes por Covid-19, das mortes em acidentes rodoviários, em catástrofes naturais, em episódios inexplicáveis de violência homicida, comentamos: “As pessoas morrem”, falando de forma impessoal. No entanto, quando o nosso pai, a nossa mãe, um amigo nosso morre, a percepção do mistério e da dor muda radicalmente, porque estamos envolvidos em primeira pessoa.
Mas, justamente quando o luto entra nas nossas casas, devemos demonstrar que a visão cristã da vida e da morte motiva e orienta o nosso comportamento. Se a morte chegar no fim de uma existência repleta de anos e de gratificações, é fácil considerá-la como uma consequência da natureza humana e aceitá-la como o destino inevitável. Se, ao invés disso, a morte atingir os nossos afetos com o falecimento prematuro de familiares ou amigos ou, pior, por obra da crueldade e da maldade do homem, então emerge o protesto e a rebelião interior.
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Celebração dos mortos. “A morte é o autêntico cumprimento da vida” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU