01 Novembro 2022
"Éticas e estéticas coloniais e fascistas se combinam nesses processos faccionais de exclusão e inclusão de atores em comunidades imaginadas. Ora os judeus à esquerda não são tão judeus, ora os evangélicos progressistas não o poderiam ser. É preciso que uma ética democrática e de valorização da diversidade se imponha".
O artigo é de Christina Vital da Cunha, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense - UFF e Editora da Revista Religião & Sociedade.
Através de uma narrativa visceral, Michel Gherman nos apresenta temáticas atualíssimas no livro “O não judeu, judeu” como judeidade e branquitude, formas de resistência à modernidade, extrema direita, fascismo e a eclosão pública de ressentimentos no Brasil. O conjunto de métodos utilizados e de fatos analisados no livro buscam desvelar a transformação do Brasil em uma “Disneylândia do fascismo”. Mas como teríamos chegado a este ponto? O evento na Hebraica do Rio de Janeiro e a análise com a qual Gherman nos brinda ajudam a pensar a condição de possibilidade para a explicitação do ódio, de intolerâncias, para a localização de um mal no outro “próximo”.
Na noite 03 de abril de 2017, Jair Bolsonaro, como então pré-candidato à presidência da República, proferiu um discurso no qual falou explicitamente que não ia “demarcar mais nenhuma terra para indígenas”, que “há raças boas e raças ruins”, assim como equiparou negros e negras a animais ruminantes ao considerar-lhes o peso em arrobas. Naquela noite, foi marcado um “risco de giz” no chão informando sobre quem estava dentro e quem estava fora, quem era judeu e quem não o era, quem era legítimo e quem não era, quem era amigo e quem era inimigo. A lógica faccional sobre a qual tratei em alguns artigos publicados ao longo de 2019 e 2020 se revela de modo contundente sob a forma de acolhimento aos fiéis escudeiros e banimento aos críticos e oponentes. A autoridade de quem valida ou não o outro não foi outorgada previamente, mas ali se constitui em um complexo jogo de interesses e afetos e não poderíamos imaginar o que viria como resultado de uma ética da provocação.
“Naquela noite” os judeus que estavam dentro da Hebraica e que aplaudiam Bolsonaro eram considerados por eles e se consideravam a si próprios como verdadeiros judeus. Os de fora, os que se manifestavam contrariamente ao discurso do então presidenciável e criticavam o clube pela organização do encontro eram desconsiderados como judeus. Nas palavras de Gherman, foram desconvertidos subjetivamente, politicamente, eticamente e religiosamente da comunidade judaica. Como pesquisadora de religião, entendendo-a como um fato social total, venho acompanhando evangélicos progressistas no Brasil de modo mais sistemático desde as eleições de 2020 e não pude deixar de notar a semelhança no processo. De modo igual ou ainda mais violento, observamos uma situação nunca antes experimentada nas igrejas brasileiras. Nem nas Igrejas Evangélicas e nem na Igreja Católica.
Os que se declararam eleitores de esquerda, especialmente de Lula nestas eleições 2022, vem sendo perseguidos e violentados material e subjetivamente. Pastores estão perdendo seus postos eclesiásticos, crianças estão observando discursos de ódio nos púlpitos em cultos dominicais, fieis estão sendo negados em sua legitimidade como “irmãos” e “irmãs” por se posicionarem ideologicamente à esquerda. As pessoas estão sendo ameaçadas e constrangidas nas igrejas por pastores e por falas presidenciais que produziram uma relação necessária entre cristianismo e extrema direita. Entre evangélicos nestas eleições, um jogo muito ardiloso acontece no qual os evangélicos à esquerda estão fora da grande comunidade cristã ao votarem ou se filiarem a partidos de centro esquerda e esquerda, mas são contabilizados como “de dentro” quando isso interessa ao mainstream evangélico, aos líderes midiáticos ou aos políticos de carreira por esses líderes impulsionados. Ou seja, quando lhes interessa ao propósito de dominação e demonstração de força, os evangélicos à esquerda estão “dentro” na medida em que são contabilizados como integrantes da Frente Parlamentar Evangélica na próxima legislatura, por exemplo. Quando não lhes interessa, são considerados “de fora”.
A lógica dessa produção de inimigos próximos e à espreita é ao mesmo tempo comum na Batalha Espiritual, forma teológica que domina o campo religioso evangélico no Brasil, e traço vivo da colonização que ainda nos constitui na forma da colonialidade que marca as relações cotidianas no país. Colonialidade que convive com os esforços de consolidação democrática.
A ética da provocação é uma forma específica de colocação de alguns líderes evangélicos, indubitavelmente atores centrais na intolerância religiosa atual e no racismo religioso identificados no país. O Bispo Edir Macedo publicou um livro, nos anos 1990, deixando clara sua posição e da IURD ao indagar: “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?". Outros líderes midiáticos tem inúmeras inserções nas redes sociais identificando os que seriam os inimigos do Evangelho, do cristianismo: religiosos de matriz afro-brasileira, maçons, “esquerdopatas”.
Do mesmo modo, como podemos ver no filme Fé e Fúria, de Marcos Pimentel, um dos pastores da Igreja Batista da Lagoinha, convoca jovens da igreja para irem à praça da cidade provocarem os religiosos de matriz afro que ali se reuniriam para uma festividade própria. Deixa clara a ética da provocação que em parte se sustenta na Teologia do Domínio e em parte se sustenta na emoção colonial de domínio branco, masculino, cristão sobre o oponente identificado nas “raças ruins” sobre as quais Bolsonaro falou na Hebraica: negros e negras, sua cultura, sua religiosidade.
Éticas e estéticas coloniais e fascistas se combinam nesses processos faccionais de exclusão e inclusão de atores em comunidades imaginadas. Ora os judeus à esquerda não são tão judeus, ora os evangélicos progressistas não o poderiam ser. É preciso que uma ética democrática e de valorização da diversidade se imponha. Com todos os problemas que as democracias liberais apresentam, devem ser pensadas como um sistema que anuncia regras do jogo que viabilizam inclusão e respeito ao contrário de formas de vida que não toleram aquilo que julgam diferente a partir de crivos sempre oscilantes conforme interesses situacionais.
A condição de possibilidade de emergência pública dessa ética da provocação, desses ódios, dessas táticas e discursos fascistas e coloniais foi continuamente difundido por Olavo de Carvalho e seus seguidores sem que parte da academia e dos liberais brasileiros percebessem como observamos em “O não judeu, judeu”, assim como nas produções de João Cézar Rocha.
A todos e todas nós está lançada a missão de reconstruir as bases políticas e ideológicas comuns que valorizam a diversidade. E mais ainda, como nos lembra Michel Gherman, é preciso dar limites não só morais e culturais, mas legais à emergência desse comportamento de aniquilação que o bolsonarismo expressa, mas não encerra. Essas emoções de anulação do outro sempre estiveram em nossa história e precisamos coletivamente cortar suas raízes sociais com educação, inclusão e legislação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cancelamento de judeus e evangélicos à esquerda nas eleições 2022. Artigo de Christina Vital da Cunha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU