"Uma teologia responsável que deseja orientar-se nos labirintos contemporâneos e buscar compreender e traduzir o Evangelho em nossa matriz humana e cultural certamente recebe um poderoso apelo da reflexão de Bruno Latour", escrevem Fabrizio Mandreoli, teólogo, filósofo e historiador, e Michele Zanardi, em artigo publicado por Settimana News, 25-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“O que nos permite sobreviver? Quais são nossos meios de subsistência? Como esses meios de subsistência estão ameaçados? O que estamos prontos para fazer? Por quê? O que estamos fazendo para resistir? São perguntas muito simples de conscientização e orientação, mas abordá-las coletivamente […] tem efeitos verdadeiramente terapêuticos. Em nossas oficinas ocorre o compartilhamento coletivo das descrições de nossas condições de vida: é o primeiro passo para uma articulação política, para poder expressar interesses comuns. Organizamos essas oficinas em muitos contextos: municípios, paróquias, nas cidades, no interior... No início, os participantes afirmam sobreviver graças a coisas completamente abstratas, mas, na terceira ou quarta repetição, elas se tornam coisas concretas. Pode ser uma fazenda cuja água está poluída porque há um lava-jato ao lado. Ou alguém que tem uma doença cuja causa é desconhecida [...]. Cada vez constatamos um efeito terapêutico, um efeito de conversão que nos permite dar um passo à frente” (B. Latour). [1]
“Simplesmente entendi uma coisa: a verdade tem diversas modalidades, que os modernos descobriram e das quais não sabem o que fazer. Minha descoberta filosófica é ter explorado essas diversas modalidades de verdade de forma sistemática por 50 anos. Admitimos, aprendemos, compreendemos o extraordinário poder da verdade científica, a extraordinária necessidade da verdade política, o formidável poder da ficção; e agora, com a ecologia, a formidável, essencial e substancial existência da reprodução dos seres. Agora se abre uma possibilidade, que antes estava fechada, de também sustentar a verdade religiosa” (B. Latour). [2]
A notícia da morte de Bruno Latour, ocorrida no início de outubro, certamente foi sentida por aqueles que ao longo do tempo se aproximaram dos textos e pensamentos desse intelectual, considerado um dos mais significativos de nosso tempo. [3]
Ou melhor: Latour está entre os intelectuais – entre os quais, embora em outros âmbitos, lembramos Ivan Illich e Paolo Prodi [4] – que tentaram buscar um significado para a época que estamos vivendo, tornando-se um ponto de referência e de orientação.
É notável como Latour tenha deixado no embaraço qualquer um que quisesse se referir a ele, aproximando-o a categorias intelectuais específicas: sociólogo, antropólogo, semiótico, filósofo (belíssimo seu texto de estreia filosófico), [5] até mesmo teólogo por alguns aspectos de sua formação e resultados de seu pensamento.
Tal capacidade transdisciplinar é hoje uma verdadeira preciosidade, numa época marcada pela superespecialização dos setores disciplinares e por singulares miopias humanas, políticas e culturais. Para uma breve descrição [6] convém, portanto, fazer referência a alguns textos que escreveu em seus 75 anos de vida, como que para representar, numa sequência temporal, as etapas essenciais de sua proposta. [7]
Para concluir, recordamos uma razão fundamental pela qual tal itinerário pode ser eloquente – ao nível do método, conteúdos e questionamentos – para a investigação teológica (e eclesial). [8]
Uma primeira etapa encontra-se em sua tese de doutorado – Exégèse et ontologie: à propos de la ressurreição – em que estuda a exegese de Rudolf Bultmann sobre a ressurreição de Jesus e questiona os modos como ela é encontrada, construída, traduzida a verdade.
Esse cunho exegético – ou seja, esse interesse pela interpretação de textos e contextos históricos, sociais – molda todo o seu trabalho de pesquisa e lhe confere uma sensibilidade única para os processos de tradução entendidos como redes de mediações e traduções.
Uma segunda etapa é em Abidjian, na Costa do Marfim pós-colonial. Lá, observando o sentimento de superioridade manifestado pela minoria europeia francesa em relação à população local, Latour não se perguntou quais seriam as estruturas "pré-modernas" da sociedade marfinense, mas que mecanismos levavam os antigos colonizadores a se autocompreenderem como portadores de uma cultura mais avançada.
A preciosa observação daqueles anos conflui num texto escrito com Amina Shabou sobre Les idéologies de la compétence en milieu industriel à Abidjan (1974). A partir daí Latour começa a desenvolver seu projeto de antropologia dos modernos, ou seja, estudar as estruturas e os horizontes profundos daqueles que se sentiam/sentem observadores do mundo a partir da posição privilegiada de “modernos”. Para ele, trata-se de realizar uma inversão do olhar e aplicar os métodos da etnografia, antropologia e sociologia não a tribos perdidas de alguma área remota do globo, mas aos modernos ocidentais.
Laboratory life com Steven Woolgar (1977), Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (1989). Essas obras pioneiras mostram como a pesquisa sobre o significado de ser "modernos" continua em um laboratório biomédico da Califórnia, no qual ele estuda a antropologia de um laboratório científico – posto por assim dizer na frente avançada da modernização ocidental – e descobre como a ciência é o resultado de uma série infinita de mediações, traduções, construções, influxos, decisões políticas e humanas.
Isso não o leva a desacreditar a pesquisa científica como se fosse apenas uma construção social – acusação que muitas vezes lhe foi feita naqueles anos –, mas a tomar consciência de que a pesquisa científica também e inevitavelmente construção social, dentro de uma trama e resultado de múltiplas interações. Nesse contexto, ele percebe que mesmo o mundo não humano (por exemplo: a natureza reagindo aos experimentos e as ferramentas necessárias para estudá-la) desempenha um papel eloquente e participa do processo de construção do conhecimento científico e da árdua busca pela "verdade”.
Seu projeto – de investigação antropológica da cultura ocidental contemporânea – continua. Em Jamais fomos modernos (1991) - com uma sugestiva introdução à edição italiana de Giulio Giorello – Latour mostra que a distinção moderna entre natureza e cultura, entre fatos da ciência que estuda a natureza e os da política que organiza a vida humana é uma distinção muito mais porosa do que parece.
Do mesmo ano é também o original – e atual I microbi. Trattato scientifico-politico (Pasteur: guerre et paix des microbes, 1991) sobre o 'diálogo' entre o mundo microbiano e quem o estuda cientificamente (e se relaciona politicamente). Nesse quadro, amadurece de forma plena a reflexão sobre objetos híbridos que são um conjunto de humano e não humano, um formidável entrelaçamento de natureza e cultura. A relação entre seres humanos e a tecnologia resulta tão densa de interdependências e referências, a ponto de não ser mais possível dizer com certeza quem faz quem fazer algo.
Em Il culto moderno dei fatticci (1996) com uma feliz invenção linguística indica a sobreposição entre a objetividade dos fatos e a subjetividade da crença individual nos fetiches. No Política da Natureza (1999) ele mostra a estreita conexão entre os laboratórios de ciência e as assembleias legislativas, em que as - muitas e diversas - mediações são o caminho necessário para produzir um conhecimento que tende à objetividade. Nos mesmos anos Latour começa a falar de um parlamento das coisas: quem, por exemplo, em nossas assembleias representa rios, lagos, geleiras, biodiversidade ameaçada, ar poluído...?
Nesses estudos emergem com força a atitude exegética e a consciência do entrelaçamento da realidade. Os laboratórios, as assembleias políticas, a vida social, não apenas produzem – em seu esforço de leitura da realidade – textos, mas são eles próprios textos que exigem um grande esforço de interpretação para conhecer os vários níveis e camadas de elaboração e compreender o exaustivo caminho da verdade.
Nesse esforço de exegese emerge cada vez mais claramente a natureza compósita da realidade, que é humana e não humana, é natural e cultural, é composta de sujeitos e objetos entrelaçados entre si, é repleta de atores – ou melhor, atuadores – que influenciam e interagem uns com os outros, moldam uns aos outros. A interdependência como chave de leitura da realidade é, portanto, o tema da Riassemblare il sociale Actor-Network Theory (2005, em italiano 2022), onde Latour sistematizou a intuição de uma ontologia fundada na estrutura, justamente, "reticular" do existente.
Isso significa repensar desde a base a própria ideia de uma sociedade onde as realidades humanas montam redes com as não humanas. Nesse esforço, Latour entra em diálogo com autores extremamente interessantes – como Tim Ingold, Eduardo Viveiros De Castro, Philippe Descola - que, ainda que de forma diferente, defendem a impossibilidade de separar natureza e cultura, permitem uma rediscussão do olhar from no-where lugar típico de muitas pretensões modernas ocidentais - e talvez também de não pouca teologia - e ajudam a ampliar poderosamente as lentes de compreensão da realidade e da história. [9]
Esse projeto torna-se então uma modalidade de leitura ampla – An Inquiry Into Modes of Existence (2013) – dos modos de desenhar, representar e falar sobre o existente. Pesquisas que parecem singularmente abstratas, mas que têm repercussões precisas e esclarecedoras em muitos âmbitos da vida social e cotidiana, basta pensar, por exemplo, no belo texto sobre o apego e sobre fazer apegos humanos – Fatture/fratture: dalla nozione di rete a quella di attaccamento – publicado na revista de etnopsiquiatria de Piero Coppo. [10]
Esse fluxo de amadurecimentos leva Latour a entender de forma original a crise após a queda do Muro de Berlim (1989) e o ataque às torres gêmeas (2001) como uma crise do modelo ocidental de paz, que é, em última análise, extremamente bélico [11], e ao entendimento de que outra guerra se abriu: a guerra ao meio ambiente e ao planeta.
Este é o compromisso de Latour dos últimos vinte anos. A consciência ecológica – ou seja, a entrada em um novo regime climático – como sinal de uma época torna-se o tema abordado em muitos volumes recentes, incluindo a coletânea - que recomendamos, para quem não conhece o autor, como um precioso texto de entrada na reflexão latouriana – Essere di questa terra. Guerra e pace al tempo dei conflitti ecologici (2019) organizado por Nicola Manghi.
A este deve ser adicionado Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (2020) e Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres (2022): a humanidade só pode ter futuro na medida em que souber pensar e assumir a sua interdependência com os outros seres vivos e com a própria terra, se souber converter-se de um pensamento que privilegia a ideia sobre a realidade, e tentará sair das abstrações políticas, econômicas, filosóficas para voltar a aterrissar em nossa frágil e finita terra.
Esses tipos de reflexões também são híbridos: tocam a conexão entre o humano e o não humano, práticas e escolhas políticas, estruturas econômicas, paz e guerra, vida pessoal e espiritual. Esses são os temas de dois textos curtos, mas preciosos: Tracciare la rotta come orientarsi in politica (2018) – que apresentamos aqui [12] – e, com Nikolaj Schultz, Mémo sur la nouvelle classe écologique (2022).
Textos em que o convite a tomar partido de um verdadeiro conflito – para defender a possibilidade de que a terra seja habitável por todos, humanos e não humanos, agora e no futuro – junta-se ao compromisso com um trabalho de ressensibilização pessoal e coletiva, [13] que afeta a intimidade espiritual e as práticas políticas. [14]
O percurso de Latour, aqui mencionado apenas breve e superficialmente, é realmente rico, poliédrico [15] e cheio de sugestões para a pesquisas teológicas (e eclesiais). O discurso sobre a relevância desse autor já começou, [16] aqui nos limitamos a relembrar algumas observações básicas.
O card. Martini e, mais recentemente, o Papa Francisco diagnosticaram o atraso secular, 200 anos, das categorias culturais utilizadas nos ambientes eclesiais em relação à extensão dos problemas atuais. Não se trata apenas de cultura acadêmica e nem mesmo de pequenos ajustes pastorais e comunicativos, mas de linguagens, modos de sentir, pensar e agir que devem ser atualizados não para correr atrás do próprio tempo, mas para não o abandonar.
Isso vale certamente para a Igreja, mas também para muitos mundos culturais, políticos e institucionais do nosso contexto que se encontram numa crise semelhante à das Igrejas. [17] Quanto à teologia, a não revisão dos horizontes da compreensão ou o diálogo, fora do tempo, com questões e perguntas de ontem corre o risco de aumentar a exculturação da linguagem cristã, que muitas vezes é proposta com palavras desgastadas, com práticas esgotadas, com ideias estáticas de "natureza" e "cultura", com visões rígidas e irreais de subjetividade e objetividade, com visões antropológicas, quadros mentais e institucionais que soam ininteligíveis até mesmo para as pessoas mais sensíveis e em busca de respostas.
Realmente, a expressão de Latour "as bússolas dos modernos pararam de funcionar" parece extremamente precisa para descrever nosso contexto cultural e teológico. Parece estar na situação descrita pelo judeu alemão Walter Benjamin em Experiência e pobreza de 1933: logo após a ascensão de Hitler ao poder, as experiências anteriores que pareciam edifícios sólidos que tudo explicavam e garantiam já não parecem mais se sustentar e é preciso mudar para a necessária pobreza de novas narrativas, de iniciativas essenciais porque capazes de guardar o coração de entregas antigas e cuidar do futuro dos outros. Num êxodo exigente, com caminhos que não se dão como garantidos” (Ivo Lizzola).
Nesse trabalho de repensamento, parece-nos importante reconhecer que "novas culturas continuam a ser geradas nessas enormes geografias humanas onde o cristão não costuma ser mais promotor ou gerador de sentido, mas que recebe delas outras linguagens, símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes em contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita pulsa e se projeta na cidade. […] Torna-se necessária uma evangelização que ilumine novas formas de se relacionar com Deus, com os outros e com o meio ambiente, e que desperte valores fundamentais. É preciso chegar onde se formam as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades”. [18]
A questão é, assim, entrar nas profundas junções da feitura da realidade humana e social, onde se perfilam os desafios do presente e do futuro para poder contemplar a busca/presença de Deus [19] testemunhar ali a palavra do Evangelho. [20] Parece-nos que a pesquisa de Latour – nessa tentativa de encontrar as palavras e as representações mais adequadas para entender onde estamos e onde podemos pousar – pode ser mestre de método e conteúdos.
Um método cuidadoso, coletivo, não rígido, com um inato sentido não colonial, capaz de escuta, abrir espaço e observação precisa. Múltiplos conteúdos que ajudam a olhar a realidade de outra forma, a questionar estruturas mentais que parecem imutáveis, a identificar conexões transversais entre ciência e política, entre natureza e cultura, a revelar que realmente "tudo está conectado", a revelar injustiças sociais e ambientais, a apreender as escolhas que temos pela frente sobre a paz e a guerra, a mostrar a conexão entre o grito da terra e o grito dos pobres [21], a iluminar a profunda relação entre trabalho de luta à insensibilidade pessoal e a responsabilidade política pela possibilidade "de um mundo habitável para todos, humanos e não humanos".
Uma teologia responsável que deseja orientar-se nos labirintos contemporâneos e buscar compreender e traduzir o Evangelho em nossa matriz humana e cultural [22] certamente recebe um poderoso apelo da reflexão de Bruno Latour.
[1] Disponível aqui.
[2] Disponível aqui.
[4] Cf. M. Neri, Paolo Prodi, in M. Perroni – B. Salvarani (ed.), Guardare alla teologia del futuro, Claudiana, 2022, 216-223.
[5] Disponível aqui.
[6] Cf. disponível aqui.
[7] Cf. disponível aqui.
[8] Sobre isso consultar aqui.
[9] M. Bontempi, Dalla temporalità dei moderni alle aspettative di futuro nell’Antropocene. Un itinerario teorico attraverso Koselleck, Latour e Beckert, Società Mutamento Politica 10 (2019), 155-164. Disponível aqui.
[10] Disponível aqui.
[11] Disponível aqui.
[12] Disponível aqui.
[13] Sobre o tema, cf, aqui e aqui a reflexão teológica e ecológica realizada no Colégio de Bernardins em Paris: Les sources de insensibilité écologique: cerner the origin proprement religieuse de insensibilité écologique, tout en l'explorant, dans la voie ouverte par le travail de Bruno Latour.
[14] Cf. B. Latour, "Si tu viens à perdre la Terre, à quoi te sert de sauver ton âme?", In: J.-N. Pérès (dir.), L'avenir de la Terre: un défi pour les églises, DDB, Paris, 2010, 51-72 e B. Latour, "Sur une nette inversion du schème de la fin des temps", Recherches de science religieuse 107 (2019) 4, 601-615.
[15] Cf. N. Manghi, "Intervista a Bruno Latour", Quaderni di Sociologia, (77) 2018, 107-128. Disponível aqui.
[16] Cf. o dossiê no número 50 de janeiro-junho de 2022 da Rivista di Teologia dell’Evangelizzazione.
[17] "Encontramo-nos como os passageiros de um avião que decolou com destino Global, a quem o piloto anunciou que foi obrigado a inverter a rota porque já não é possível aterrissar naquele aeroporto, e que apavorados ouvem – 'Senhoras e senhores, aqui é o capitão falando novamente' – que mesmo a pista de emergência, a Local é inviável" em B. Latour, Tracciare la rotta, Cortina, Milão 2000, 44.
[18] Papa Francesco, Evangelii gaudium 73 - 74.
[19] Papa Francisco, Evangelii gaudium 71.
[20] Disponível aqui.
[21] Disponível aqui.
[22] Disponível aqui.