"Queremos, pois, provocar todo o corpo apostólico da Companhia de Jesus para que tomemos uma posição firme, clara e decidida diante do atual cenário político brasileiro marcado pela ameaça à democracia, pela escalada de autoritarismo político, pela disseminação da mentira, pelo negacionismo da ciência, pela intolerância e violência contra os que pensam diferente e pelo fanatismo religioso", escrevem os jesuítas em formação em Belo Horizonte-MG em carta aberta enviada pelos signatários e que publicamos a seguir.
Eis a carta.
“Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça”. (Papa Francisco, A Alegria do Evangelho, n. 203)
Companheiros e companheiras na missão!
Estamos atravessando o processo eleitoral mais importante da história do Brasil pós-Constituição de 1988. Trata-se não somente de duas candidaturas com projetos distintos para o país. O que temos no cenário brasileiro é a consolidação de um movimento de extrema direita com características fascistas que tem se alastrado por muitos países e que, infelizmente, encontrou terreno fértil entre nós.
Instrumentalizando pautas morais e religiosas, esse movimento atua criando, manipulando e subvertendo medos, inseguranças e emoções com a finalidade de arregimentar uma ampla parcela da população que legitime um projeto de poder autoritário, intolerante, violento, negacionista e salvacionista.
Essa forma de ação esconde uma finalidade mais profunda e nefasta:
- levantar uma cortina de fumaça que garanta a mobilização das massas para validar, pelo voto, a desconstrução do Estado e das políticas públicas, do cuidado dos mais pobres e dos mais vulneráveis, com a promoção do desmonte na educação e na saúde;
- no avanço na destruição dos biomas (especialmente a Amazônia); na retirada de direitos dos trabalhadores;
- na destruição do sistema mínimo de proteção social;
- na legitimação da violência contra pessoas negras, mulheres, indígenas (e seus territórios), pessoas LGBTQIA+;
- enfim, um projeto de morte e exclusão de grande parte do nosso povo. É um projeto claramente desumano, antievangélico e anticristão diante do qual se exige de nós um posicionamento firme, contundente e profético.
O processo de escuta e discernimento que redundou no Plano Apostólico e que segue agora no Planejamento Estratégico nos fez reconhecer que muitos jesuítas e colaboradores/as estão preocupados com a forma como damos uma resposta evangélica às questões de gênero e ao racismo; à questão indígena e das comunidades tradicionais; à questão da Amazônia e da ecologia integral; a questão da educação em vista da formação integral e da transformação social. No fundo, como jesuítas em formação, sentimos na Província do Brasil um chamado e convocação:
1) à que a missão seja o que motiva nossas vidas e opções apostólicas o que para nós também significa;
2) a retomada da justiça como critério dinamizador do nosso serviço à fé para que possamos caminhar em direção à reconciliação.
Estamos convencidos de que a reconciliação acontece onde há verdade, memória e justiça, o que só é possível em um cenário onde se estimula a práxis do cuidado com a dignidade humana e o aprimoramento da democracia com justiça social.
Queremos, pois, provocar todo o corpo apostólico da Companhia de Jesus para que tomemos uma posição firme, clara e decidida diante do atual cenário político brasileiro marcado pela ameaça à democracia, pela escalada de autoritarismo político, pela disseminação da mentira, pelo negacionismo da ciência, pela intolerância e violência contra os que pensam diferente e pelo fanatismo religioso.
A vivência concreta dos valores do Reino de Deus e do Evangelho expressos no desejo de caminhar com os pobres e descartados, o apelo por ajudar as juventudes a construir um projeto de vida que abra a um futuro com esperança e o impulso pelo cuidado da casa comum, a começar pela Amazônia, só se tornarão uma verdade se, partindo de nossa experiência de fé centrada no Deus da Vida revelado em Jesus Cristo, tenhamos a capacidade de nos comprometer com os rumos da história do povo brasileiro.
A Companhia de Jesus e a nossa vida-missão somente terão sentido se forem realmente apostólicas. Que não nos detenhamos em um instinto de autopreservação quando o Espírito de Deus que sopra, clama entre nós por criatividade e audácia proféticas!
Assim, como membros deste Corpo Apostólico, nós, os jesuítas em formação em Belo Horizonte, cientes de que “o amor consiste mais em obras do que em palavras” (EE 230), conclamamos os demais jesuítas e colaboradores/as a assumirem junto conosco posições, gestos e ações proféticas que este tempo de ameaças exige, coerentes com as defesas: da democracia; dos empobrecidos e vulneráveis; da proteção dos direitos de trabalhadores/as; das mulheres; dos povos e territórios indígenas; das pessoas LGBTQIA+; da verdade, do respeito, da inclusão e da tolerância; da saúde e educação de qualidade para todos/as; da justiça social; da ecologia integral; da vida em sua integral dignidade, complexidade e diversidade, para que, seguindo a missão do próprio Jesus, sejamos instrumentos para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10).
Belo Horizonte, 25 de outubro de 2022.
Signatários:
- Aldeman Acioly de Carvalho Neto, SJ
- Caio Henrique de Souza Silva, SJ
- Clevisson Rabelo Conceição, SJ
- Fabricio Biela Vassoler, SJ
- Gabriel Cavalcante de Oliveira, SJ
- Gleison da Silva Pereira, SJ
- Higor Jesus de Lima, SJ
- Igor Cristiano Oliveira, SJ
- James Silva da Cunha Castro, SJ
- Jeferson Albuquerque Spindola, SJ
- Jerfferson Amorim de Souza, SJ
- João Melo e Silva Júnior, SJ
- Luan de Amorim Moreira, SJ
- Luciano Coutinho Paulino, SJ
- Paulo Henrique Laurêncio, SJ
- Renilson Carvalho Tomaz, SJ
- Tácio Novais Silva, SJ
- Thalisson Santos Bomfim, SJ
- Vinicius Ferreira da Paixão, SJ
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