01 Outubro 2022
"A religião, portanto, perpetua axiomas com interesse cada vez maior em estabelecê-los na esfera pública", escreve Nelson Lellis, doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF.
Na última década do século XVIII foi publicado o livro A religião nos limites da simples razão, de Immanuel Kant. O tema da moral é discutido na obra de forma crítica e expressa que a religião cristã seria uma instituição capaz de produzir moral no sujeito, uma vez a sociedade o impulsiona constantemente para o mal. Há um trecho importante que, inclusive, distingue as religiões em dois grupos: “um que procura favores (religião de simples culto) e outro, o da religião moral, ou seja, da boa conduta” (p. 55). A transcendência deixaria de ser protagonista na esfera religiosa para conceder ferramentas a fim de que as pessoas consigam vencer o mal (o pecado, o que é perverso à natureza humana – discutido, sobretudo, a partir de Agostinho). A monarquia prussiana proibiu a circulação do livro por entender que desfigurava e menosprezava doutrinas fundamentais e capitais da Escritura.
A política parece necessitar dessa legitimação mágica da religião para dar os seus passos. Não que todos creiam assim, mas por conta da força dos símbolos religiosos na sociedade. Muitos políticos entendem que a religião deve ser tratada como uma ferramenta útil em campanhas, manutenção de discursos, decisões nas esferas de poder etc. E poderiam crer que assim funciona? Sim, contudo, muito mais os que estão engajados em reuniões de oração, campanhas de jejuns pela nação e movimentos similares.
A capacidade de conviver com elementos mágicos para moralizar a política nacional não é apenas uma realidade entre conservadores. Esse tipo de discurso religioso como forma de fomentar temas como “justiça”, “programas sociais”, “educação”, e outros, também pode ser encontrado entre os chamados “cristãos progressistas”.
Os “progressistas evangélicos”, por exemplo, entendem o cristianismo como um meio de boa conduta e são capazes de retirar das Escrituras interpretações que buscam conduzir seus interlocutores à uma razão política a partir dos sentimentos e ordenanças de Jesus. Daí, ama-se o próximo por causa de Jesus, busca-se a justiça social por causa de Jesus, respeita-se a comunidade LGBT+ por causa de Jesus, toma-se parte pela causa indígena e de quilombolas por causa de Jesus, põe-se como candidato por causa de Jesus (e se não é por causa de Jesus, é por determinado grupo cujo apreço de Jesus está inclinado). Ou seja, a diferença – nesse aspecto – entre cristãos considerados progressistas e cristãos conservadores é a direção para onde colocam os olhos de Jesus, pois o mecanismo de controle é o mesmo. Mesmíssimo. Mediante a tradição ideológica a que se pertence, toma Jesus pela mão e o conduz até os dias de hoje dizendo: “Olha, sempre foi assim... Então agora precisa continuar, caso contrário, Jesus não será honrado devidamente na sociedade e não seremos cristãos tão dignos”. Daí, um grupo de cristão olha para o outro e diz: “Vocês não são cristãos”. É claro, a interpretação mais adequada ao seu grupo que norteará suas justificativas e sentenças. No final, cada um irá para o inferno do outro.
Não adianta querer reinventar Marx e dizer que nos dias atuais, diante a democracia, que teria ele uma nova percepção acerca da religião. Não teria. E por quê? A religião em sua visão aliena o sujeito. E por que aliena? Porque seus conceitos e ideias estão no plano da superestrutura. Colocando Hegel de cabeça para baixo, Marx pontuava que o que move a sociedade é a realidade, nas as ideias, ou as divindades, ou os conceitos, ou os mitos... Portanto, quem, inclusive, move os mitos, os deuses, as doutrinas, são os humanos. Não são os deuses que criam os destinos. São os humanos que decidem a imagem das divindades – e Marx sabia disso lendo Ludwig Feuerbach (deuses são projeções dos humanos).
Essa esfera noológica (similar a essa superestrutura), de que também falou Edgar Morin, é alimentada pela sociosfera. Tentando aqui ilustrar... A sociedade inventa sua divindade para saciar determinado tipo de fome e depois lhe concede “vida própria”. Após essa criação, a divindade passa a se alimentar de seus criadores e a sociosfera perde seu controle. Essa marca religiosa poderia aqui ser identificada como uma espécie de imprinting. O termo foi cunhado por Konrad Lorentz para dar conta das marcas incontornáveis das primeiras experiências de um jovem animal. O imprinting religioso que marca o indivíduo é praticamente um selo cultural que normatiza o comportamento social. Esse imprinting impende que as pessoas enxerguem a realidade enquanto tal, uma vez que os olhos são hipnotizados pelos fenômenos de alucinação coletiva. Como dizia Paul Feyerabend, em Against Method... (1975, p. 45), “a aparência da verdade absoluta nada mais é do que o resultado de um conformismo absoluto”. A religião, portanto, perpetua axiomas com interesse cada vez maior em estabelecê-los na esfera pública.
Digno de nota: há os políticos (e não somente) que buscam controlar – ainda – as consciências a partir dos mitos cridos e reverenciados por fiéis, gente trabalhadora (criatura oprimida) e que enxerga na religião a possibilidade de suspirar. Óbvio! Colocando na balança esses dois grupos, não nos restam dúvidas que a tentativa de usar no século XXI, em um Brasil que luta para proteger sua democracia, a figura de um Jesus que prioriza a paz e a justiça, é melhor que um Jesus armamentista e que se preocupa com a genitália alheia. Todavia, urge lançarmos sobre a mesa a discussão de uma esquerda conservadora, que preza pelo religioso não apenas como um grupo de eleitores, mas como uma forma de tornar seu discurso como forma de legitimar suas questões políticas, de propaganda e de uma outra moral à la carte.
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“Cristãos progressistas” são conservadores? – breve nota - Instituto Humanitas Unisinos - IHU