Ser padres hoje. Artigo de Domenico Marrone

(Foto: Josh Applegate | Unsplash)

28 Setembro 2022

 

"O sacerdote deve ser credível, ainda que não completo e continuamente confrontado com o dilema entre ser um paulino 'pote de barro' e o 'tesouro' de graça de que é ministro. Deve ser sinal do Transcendente, mesmo estando imerso nas experiências cotidianas de todos os homens. Um homem que está em constante contato com seu Deus, mas sem jamais interromper a experiência plena da condição humana".

 

A opinião é de Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, professor no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Bari, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 23-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis o artigo. 

 

“Hoje, mais do que nunca, se sente a necessidade de recuperar o sentido carismático do sacerdócio”[1]. O presbítero não é um simples funcionário, um simples executor de organogramas eclesiásticos, mas um homem que é livre para testemunhar e realizar seu ministério sacerdotal e sua missão pastoral em conformidade com as exigências espirituais mais profundas de sua alma e seu desejo de servir a Cristo.

 

Hoje em dia, a lógica dos encarregados da seleção de pessoal parece ter se infiltrado nos responsáveis pela formação dos sacerdotes.

 

Provavelmente também nos contextos formativos tenha se afirmado cada vez mais a mutação antropológica do “homem psicologizado”, como o Cardeal Zuppi afirmou recentemente numa entrevista[2]. Estamos na esteira do "reducionismo" do qual E. Samek Lodovici, em sua Metamorfosi della gnose analisa dois exemplos: o primeiro é o reducionismo sociológico, o segundo é a variante genética do reducionismo de caráter psicológico[3].

 

Ministério e espiritualidade

 

Contra a cada vez mais frequente "psicologização e deontologização" (H. Muhlen)[4], o que pode ajudar em profundidade e favorecer concretamente uma renovação do ministério presbiteral é a busca de uma espiritualidade. Sem uma espiritualidade adequada, a ação pastoral não tem energia, não tem anseio transcendente. É o caminho para que tal amadurecimento possa se desenvolver.

 

O problema é que também se pode ser um padre "maduro" o quanto quiser e não testemunhar nem mesmo uma centelha do mistério cristão! Estamos na presença de uma clamorosa deriva pelagiana.

 

Acredito que valha também para os ministros ordenados o que afirma para os cônjuges o documento do Dicastérios para os leigos e a família, Itinerários catecumenais para a vida matrimonial. Orientações pastorais para as Igrejas particulares: "Muito mais grave do que qualquer carência psicológica, ou qualquer dinâmica interpessoal imperfeita, é o afastamento de Deus, que desencadeia no coração humano uma espiral de fechamento e de egoísmo que impede o verdadeiro amor, porque impede a abertura, o respeito e a generosidade em relação ao outro" (n. 67).

 

O padre “é o viator não só pela inquietação do eterno, que possui em comum com cada homem, mas por vocação e oferenda. Deve-se tudo a todos, e ele nunca pode abandonar inteiramente nenhuma criatura. É um pão de comunhão que todos podem comer, mas do qual ninguém tem o direito exclusivo” (Primo Mazzolari, Adesso, 1 de março de 1949).

 

Humanidade e formação

 

A antropologia cristã fornece dados válidos para uma interpretação satisfatória para uma vida espiritual em geral, e para uma vida sacerdotal em particular, porque comporta o conceito integral da personalidade, motivada por valores sobrenaturais.

 

A antropologia cristã abre caminho para uma elaboração antropológica onde o valor transcendente cristão constitui o critério para a unificação do ser e da ação humana. Por isso é legítimo afirmar que "através da sua inserção em Cristo, o homem ascende a uma nova dimensão, a um humanismo transcendente... meta suprema do desenvolvimento pessoal"[5].

 

A formação corre o risco de ficar enredada nos reducionismos do "funcionamento". As teorias são expressas, mas alimenta-se cada vez menos o fato de se tornar sempre mais conscientes de si mesmos espiritual e humanamente e, portanto, capazes de compreender a humanidade alheia.

 

Neste rastro podemos chegar a uma seleção eficiente de candidatos ao presbiterado, enquanto a leitura de uma vocação exige um amadurecimento espiritual e humano profundo e equilibrado, conscientes de que os caminhos de Deus não são os nossos caminhos. Pode facilmente acontecer o paradoxo de que os discernimentos dos séculos passados, menos sentidos no plano psicológico, ao menos em certos casos, resultem mais abertos ao mistério e capazes de deixar Deus agir.

 

Pelo que se refere aos critérios de seleção os padres, se for justo e necessário garantir que um aspirante a padre não seja afetado por distúrbios emocionais e afetivos particulares, seria, por outro lado, insensato exigir uma espécie de normalização do comportamento do padre com base em fatores padronizados e socialmente compartilhados, como o fato de ser sempre e em toda situação apreciado pela maioria de seus paroquianos ou ser sempre obsequioso a determinados hábitos sociais ou institucionais, mesmo quando manifestamente conflitam com a caridade, a justiça e a paz evangélicas.

 

Funcionários de Deus

 

Corre-se o risco de ter abundância de tantos dirigentes, tantos acadêmicos, tantos especialistas, tantos organizadores de encontros e eventos, mas não conseguir transmitir a tantas consciências inquietas aquela força e aquela paz espiritual de que necessitam e da qual sentem sinceramente a urgência.

 

Precisamos de padres "incômodos" e não de padres "cômodos", "normalizados", "elegantes", "padronizados", funcionais ao "sistema", que no domingo, comentando o Evangelho, sejam capazes de agradar a todos sem dizer nada de particular, sem sacudir as consciências. São os funcionários de Deus.

 

Muitas vezes, certamente de boa-fé, eles são orientados a "não" serem eles mesmos, não seguirem os ditames de sua consciência, de sua generosidade e de sua sensibilidade, bem como de sua inteligência.

 

Até mesmo as relações entre os presbíteros, os encontros formativos, de oportunidades em que se tenta um conhecimento mútuo melhor, tornam-se ocasiões para "bisbilhotar" em suas respectivas insolubilidades. Uma abordagem potencialmente “iatrogênica” está sempre à espreita, o que limita gravemente a compreensão do outro.

 

Ter o desejo de compartilhar e desnudar-se é obviamente humanamente importante e permite que se criem laços mais profundos. Até aqui é a parte boa... O ruim vem quando, como em tudo, esse lado se exaspera na busca incansável de análises ou significados, leituras comuns ou passadistas que não são boas para a saúde da relação.

 

Os momentos de encontro tornam-se, em alguns casos, terapias de grupo em que cada um conta onde está em sua vida, se expõe também removendo aquele véu de pudor que a natureza da relação exigiria, esperando uma compreensão e uma ajuda demasiado terapêutica. Corre-se o risco de imitar o mito de Narciso, disposto a ouvir apenas o eco de si mesmo.

 

O ditame evangélico é desnaturado: ele os escolheu "para que estivessem com ele e os enviasse a pregar" (Mc 3,14). Nem com Ele, nem para pregar, mas para estar sempre voltados sobre si mesmos, para falar uns com os outros numa autorreferencialidade narcísica ou até mesmo de autocomiseração numa contínua ênfase nas fragilidades e vulnerabilidades. Corre-se o risco de gerar, por um lado, um estilo depressivo e, por outro, uma busca espasmódica de "embelezamento" psíquico, não diferente de quem frequenta academias ou salões de beleza. Enquanto isso, a paixão pelo reino esmorece e o fogo pela missão esvanece.

 

Paradoxalmente, o mundo interior desaparece em favor do mundo exterior; a reserva e a preciosidade, bem como a introspecção consigo mesmo, são perdidas. Falta-nos leveza e nos comparamos com os outros até falando de nós mesmos através de outros argumentos: o que lemos, nossas ideias pastorais e políticas, uma experiência comum, afinal, dizem muito sobre nós. Falar sempre sobre o pessoal torna esse pessoal menos íntimo, menos interior e precioso.

 

O peso da realidade

 

Há também uma leitura filtrada do que se conhece subjetivamente sobre o mundo, com o risco de banalizar a realidade, substituindo a realidade externa pela percepção interna. A realidade é terrivelmente mais complexa. E muitas vezes escapa, cega, quando vai além das grades abstratas dentro das quais se tenta enredá-la.

 

Quando a realidade explode à nossa frente, temos duas possibilidades de nos proteger da violência dessa irrupção não desejada: nos trancar em nossa bolha cognitiva, em nossa própria ideologia (até as competências profissionais podem se transformar em uma leitura ideológica da realidade!), e avaliar o que acontece tomando distância, como um "algo", um "objeto", sempre dentro de sua própria grade conceitual.

 

Ou abrir-se, encontrar o outro fora da própria bolha, como um "tu", como uma pessoa que vive essa mesma realidade a que todos pertencemos, e se comportar de acordo, protegendo-se e tomando conta daquele pedido de ajuda, cientes das nossas limitações[6].

 

Entre os presbíteros fala-se pouco de Deus, como se se temesse não ser ouvidos ou, mais provavelmente, não se soubesse o que dizer de Deus. Este relativo, mas real "silêncio sobre Deus", como se Deus não fosse o tema, aliás, o único tema, o que revela?

 

Paradoxalmente, são mais frequentemente os ateus, mais ou menos devotos, que falam de Deus como seu principal antagonista à revelia. Poderíamos concluir com um paradoxo, dizendo que, afinal, somos todos religiosos, até mesmo os padres, mas nem todos crentes. Muitos buscam a Deus através de seus ministros, mas nem sempre conseguem.

 

Homens de Deus, os presbíteros, embora obrigados a serem irrepreensíveis do ponto de vista moral e comportamental, não podem nem devem estar demasiado condicionados pela preocupação de não criar "conflitos" no seio da comunidade e dos paroquianos, porque, se sua tarefa é, como deve ser, guiar, educar, formar o rebanho, além de confortá-lo e ajudá-lo nos momentos mais difíceis de seu caminho e de sua existência, eles não podem se eximir sistematicamente de repreender e advertir aqueles que são relutantes em se deixar transformar constante e definitivamente pela graça salvífica de

 

Cristo e, sobretudo, não podem eximir-se de dizer coisas ou realizar atos que podem até lhes custar muito caro.

 

Pedra de escândalo

 

O sacerdote deve ser credível, ainda que não completo e continuamente confrontado com o dilema entre ser um paulino "pote de barro" e o "tesouro" de graça de que é ministro (2 Cor 4,7; cf. Mt 13, 44). Deve ser sinal do Transcendente, mesmo estando imerso nas experiências cotidianas de todos os homens. Um homem que está em constante contato com seu Deus, mas sem jamais interromper a experiência plena da condição humana.

 

Gosto de concluir com as palavras que encontramos no último capítulo de O Filho do Homem: "Esta pedra de escândalo para tantos espíritos rebeldes, o padre (...) constitui em nosso meio o sinal sensível da presença do Cristo vivo (…). Homens comuns, semelhantes a todos os outros, chamados a tornar-se Cristo quando levam a mão à testa de um pecador que confessa suas ofensas e pede perdão, ou quando tomam o pão nas mãos "santas e veneráveis", ou quando levantam o cálice da nova aliança e repetem a ação insondável do próprio Senhor (…). Sim, homens semelhantes a qualquer outro, mas chamados mais do que qualquer outro à santidade (…). Esse é o mistério desse sacerdócio ininterrupto através dos séculos!”.

 

Nessas expressões, Mauriac enuncia o paradoxo do padre: síntese dos contrários. Nele convergem os elementos mais contrastantes: humanidade e divindade, tempo e eternidade, força e fraqueza, grandeza e miséria.

 

Notas:

 

[1] G. Crea, Patologia psichica e normalità del prete, Bisogna vigilare sulla propria storia, in “L’Osservatore Romano” de 18 de fevereiro de 2010.

[2] Leia aqui.

[3] Cf. E. Samek Lodovici, Metamorfosi della gnosi. Quadri della dissoluzione contemporanea, Ares, Milão 1991. Segundo esse autor, no cristianismo tudo é “humano, demasiado humano”, para usar a expressão de Nietzsche, e tudo é acessível às explicações que o pensamento humano sabe dar disso. As principais modalidades são: a historicização, ou seja, a redução da mensagem cristã à divinização pós-rem de dados originalmente histórico-culturais; a ideologização, ou seja, a tentativa de explicar o cristianismo como um disfarce poético dos conflitos de classe; a alegorização, ou seja, a redução a alegoria de toda a história de Cristo; a psicologização, onde os dogmas aparecem como sinais das necessidades psicológicas do homem; a existencialização, ou seja, a aceitação do conteúdo cristão não pelo seu valor de verdade, mas pelo seu "significado para mim"; e, finalmente, a racionalização, ou seja, a exclusão de qualquer mistério.

[4] Veja aqui.

[5] Cf. B. Goya Psicologia e vita spirituale. Sinfonia a due mani, EDB 2000, pp. 18-19.

[6] Cf. M. Bessone - M. Sassoon - N. Lioy, Dallo psicanalismo allo psicoterapismo. Per una politica della clinica e una psicoterapia critica, Radio 32 edizioni, 2022.

 

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