15 Setembro 2022
Existem também sistemas abusivos na Igreja. Existem instituições, comunidades, estatutos e culturas católicas que facilitam os abusos. A cultura católica tende a absolutizar a autoridade espiritual de seus representantes e de seus ensinamentos. Identificar a voz dos representantes eclesiais com a de Deus ou o ensinamento ordinário da Igreja com o de Deus é um abuso.
A opinião é de Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, professor no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Bari, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 03-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O tema do abuso de consciência e de poder foi evidenciado pelo Papa Francisco tanto na Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018 quanto no encontro do dia 25 de agosto seguinte, durante a viagem à Irlanda. Com um grupo de jesuítas, ele reiterou de modo semelhante que “o elitismo e o clericalismo favorecem toda forma de abuso. E o abuso sexual não é o primeiro. O primeiro é o abuso de poder e de consciência” [1].
O motu proprio Vos estis lux mundi também quis incluir o abuso de autoridade entre as circunstâncias que tornam punível o comportamento nos termos do art. 1 §1 a I, que se refere parcialmente ao cânone 1.395 §2 do Código de Direito Canônico.
A Igreja tratou o tema dos abusos em várias ocasiões, também em tempos recentes, tanto em nível de reflexão quanto de procedimentos e protocolos operacionais [2]. No entanto, a relevância do tema dizia respeito principalmente aos abusos sexuais e psicológicos de menores por ministros da Igreja, especialmente presbíteros. Trata-se, sem dúvida, de aspectos preponderantes, mas certamente não exaustivos. Um tema que não recebeu atenção suficiente até agora é o abuso de poder e de consciência.
O tema do abuso espiritual não é novo, mesmo que a palavra seja nova. Há textos sobre isso na tradição. Mas talvez também seja verdade que a nossa sensibilidade hoje seja maior. Provavelmente ela cresceu como resultado da reflexão sobre o abuso sexual, e muito do que aprendemos nesse sentido pode ser aplicado às dinâmicas em comunidade e também à Igreja como tal.
“O abuso pertence sempre a um processo de corrupção e transformação da autoridade legítima em uma dinâmica perversa de poder, supremacia, dominação, de posse em relação a uma ou mais pessoas que se encontram em uma situação de vulnerabilidade existencial e de dependência” [3].
Os documentos civis e eclesiásticos utilizam as expressões “pessoas vulneráveis” ou “adultos vulneráveis” para indicar um dado grupo de pessoas que, devido à idade, doença ou deficiência, não são capazes de cuidar de si mesmas. Com efeito, os documentos eclesiásticos falam da proteção dos menores e das “pessoas vulneráveis” (Francisco, 2019a).
A carta apostólica Vos estis lux mundi forneceu a seguinte definição de “pessoa vulnerável”: “Toda a pessoa em estado de enfermidade, deficiência física ou psíquica, ou de privação da liberdade pessoal que de facto, mesmo ocasionalmente, limite a sua capacidade de entender ou querer ou, em todo o caso, de resistir à ofensa” (Francisco, 2019b, art. 1, §2 b).
Essa definição, que corresponde àquela que é definida como “vulnerabilidade especial” (Unesco, 2005), difere da “vulnerabilidade radical” por indicar uma condição humana comum [4]. Se essa diferença não for levada em consideração, a expressão “pessoas vulneráveis” poderia sugerir que apenas um grupo especial de pessoas é suscetível de abuso, enquanto todos os outros adultos estão seguros.
Por isso, é necessário levar em conta a distinção entre vulnerabilidade especial e radical ou geral. De um ponto de vista antropológico, a vulnerabilidade radical faz parte da condição humana. Não é uma carência de um determinado grupo, mas uma característica comum dos seres humanos. Deriva do termo latino vulnus (ferida). A vulnerabilidade é uma possibilidade, não um fato [5]; indica a possibilidade de ser ferido.
Portanto, a vulnerabilidade radical indica a capacidade de se expor aos outros, enquanto estar exposto aos outros implica a possibilidade de ser ferido. A vulnerabilidade “expõe os seres humanos a serem abençoados e feridos, ao bem e ao mal” [6].
A abertura aos outros sempre envolve um risco. Por esse motivo, a vulnerabilidade como tal não é uma carência. Ser receptivo e, portanto, vulnerável é uma condição necessária para uma autêntica vida humana. Assim entendida, a vulnerabilidade radical possibilita o autêntico desenvolvimento da vida humana no encontro com os outros.
No contexto cristão, a vulnerabilidade é uma condição para o discipulado. Quem não está aberto e não é tocado pelo chamado de Jesus não é capaz de segui-lo. Os discípulos devem estar abertos para serem afetados. De fato, Inácio de Loyola elogia aqueles que estão dispostos a ser afetados, “los que más se querrán affectar” [7]. Mais uma vez, a capacidade de ser afetado, ou seja, a vulnerabilidade, não é uma imperfeição, mas uma condição necessária do discipulado. A abertura aos outros torna possível o abuso espiritual; portanto, as pessoas generosas estão mais em risco [8].
Consequentemente, o abuso espiritual pode ocorrer por causa da abertura humana aos outros, não por uma espécie de carência por parte das vítimas. Essa conclusão refuta o princípio equivocado que postula que o que possibilita o abuso são algumas características das pessoas que o sofrem.
Na cultura católica, o aspecto institucional é crucial, a ponto de garantir a autoridade até mesmo de líderes que não têm qualidades carismáticas. Por exemplo, os ministros ordenados e os superiores nomeados têm autoridade reconhecida na Igreja, independentemente de suas qualidades pessoais. Essa autoridade institucional certamente pode aumentar em virtude dos dons carismáticos dos líderes, mas o apoio institucional é suficiente para sustentar sua autoridade.
Além disso, como a fé cristã não é individualista, o ensino católico convida o fiel a escutar a voz de Deus por meio da mediação eclesiástica. Como parte do povo de Deus, os fiéis são chamados a viver sua fé e a escutar a voz de Deus por meio da Igreja.
Se quiséssemos ir à raiz da dinâmica do comportamento abusivo, acho que poderíamos voltar à antiga e sempre atual tentação de “ser como Deus”. Em outras palavras, na dinâmica do abuso, o ministro sagrado “é como Deus”, porque aparece como o “protagonista” que possui dons, visões, capacidades e personalidades que, substituem e tomam o lugar de Jesus como modelo e do Espírito Santo como “doador de vida”: é uma tentação sutil, mas real, que, partindo da identificação sacramental com Cristo sacerdote, é um possível resultado da inclinação narcisista mais ou menos presente em todos [9].
O ponto de partida é obviamente oferecido pelas páginas evangélicas nas quais se descreve não apenas a figura do bom pastor, que dá a vida pelas ovelhas, ao contrário do mercenário, mas também e sobretudo se apresenta a dimensão do serviço de quem é chamado a uma posição de “preeminência”: “Jesus chamou-os e disse: ‘Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos’” (Mc 10,42-45).
Não é apenas uma atitude interior, mas também se manifesta em modos de agir que evidenciam o autêntico serviço. São expressões aplicáveis diretamente ao exercício do governo que, porém, abrangem toda a dimensão “ministerial”, já que a atividade de governo também é exercida para um fim espiritual. E não é sobretudo um ofício ou uma técnica a ser aprendida, mas sim uma identidade ministerial a ser vivida na progressiva união com Cristo Pastor.
A reflexão conciliar sobre a Igreja quis reiterar de modo particular essa dimensão ministerial, sublinhando que, em certo sentido, precisamente quem é mais investido de autoridade tem um papel especial de serviço: “Cristo Nosso Senhor, para apascentar e aumentar continuamente o Povo de Deus, instituiu na Igreja diversos ministérios, para o bem de todo o corpo. Com efeito, os ministros que têm o poder sagrado servem os seus irmãos para que todos os que pertencem ao Povo de Deus, e por isso possuem a verdadeira dignidade cristã, alcancem a salvação, conspirando livre e ordenadamente para o mesmo fim” [10].
Movem-se na mesma linha tanto a constituição apostólica Sacrae disciplinee leges, com a qual foi promulgado o Código de Direito Canônico de 1983, quanto o Catecismo da Igreja Católica, que, no número 876, afirma: “Intrinsecamente ligado à natureza sacramental do ministério eclesial está o seu caráter de serviço. Com efeito, inteiramente dependentes de Cristo, que lhes dá missão e autoridade, os ministros são verdadeiramente ‘servos de Cristo’ (Rm 1,1), à imagem do mesmo Cristo que por nós livremente tomou ‘a forma de servo’ (Fl 2, 7). E uma vez que a palavra e a graça, de que são ministros, não são deles, mas de Cristo que lhas confiou para os outros, eles tornar-se-ão livremente servos de todos”.
O que é o abuso espiritual? Ainda não há uma definição precisa com a qual todos concordem. Por enquanto, proponho como definição de trabalho: o abuso espiritual é um termo coletivo ou, como se diz no mundo anglo-saxão, um “termo guarda-chuva”, para várias formas de abuso emocional e/ou de poder no contexto de vida espiritual e religiosa.
O abuso de consciência, ou abuso espiritual, pode ocorrer em qualquer religião ou comunidade de fé; porém, assume características, dinâmicas e estratégias diversas de acordo com os contextos institucionais específicos em que ocorre; portanto, embora não seja um fenômeno exclusivo do cristianismo, vale a pena estudá-lo no contexto cristão.
Na Igreja Católica, o abuso espiritual é caracterizado por alguns elementos institucionais específicos: em particular, as congregações religiosas, o magistério universal, o direito canônico, os votos de obediência, a infalibilidade papal e a eficácia dos sacramentos; portanto, o abuso espiritual no contexto católico merece uma análise específica.
O primeiro problema ligado à definição desse fenômeno é seu próprio nome. O nome mais comum para esse fenômeno é “abuso espiritual”, mas alguns autores falam em “abuso de poder espiritual” ou “abuso religioso”, enquanto outros usam a expressão “abuso de consciência”, principalmente em âmbito católico.
A meu ver, “abuso espiritual”, “abuso de poder espiritual” e “abuso religioso” são quase sinônimos, enquanto “abuso de consciência” é um tipo um pouco mais específico de abuso espiritual que prejudica a consciência do fiel [11].
O segundo problema é o da própria definição. Como se define o abuso espiritual? Quais são suas características essenciais? O livro pioneiro sobre esse tema é o de Johnson e VanVonderen intitulado “The Subtle Power of Spiritual Abuse” [O poder sutil do abuso espiritual] (Johnson, VanVonderen, 1991). Nele, os autores afirmam que “o abuso espiritual é o maltrato de uma pessoa que precisa de ajuda, de apoio ou de um maior poder espiritual, com o resultado de enfraquecer, minar ou diminuir o poder espiritual dessa pessoa” [12].
Além disso, os mesmos autores forneceram uma descrição: “O abuso espiritual pode ocorrer quando um líder usa sua posição espiritual para controlar ou dominar outra pessoa. Muitas vezes se trata da prevaricação dos sentimentos e das opiniões de outra pessoa, sem levar em conta o que resultará disso para seu estado de vida, suas emoções ou seu bem-estar espiritual” [13].
“O abuso espiritual ocorre quando um líder com autoridade espiritual usa tal autoridade para constranger, controlar ou explorar um seguidor, provocando, assim, feridas espirituais" [14].
Essas definições se concentram em três elementos: o abuso da autoridade espiritual, o ato de se aproveitar de um seguidor e o dano que daí deriva à vítima. Um pequeno livro publicado em 1994 o descreve da seguinte forma: “Por abuso espiritual, refiro-me à negação da liberdade espiritual que ocorre quando se diz a uma pessoa que só há um caminho para chegar a Deus” [15]. Embora essa definição seja bastante genérica, ela evidencia um tema central: a perda da liberdade.
O abuso espiritual gira em torno do poder. O abuso não é uma consequência do poder, mas do seu mau uso. A primeira característica do abuso espiritual é a violação das fronteiras. A violação das fronteiras espirituais viola a privacidade da pessoa. A pessoa perde o espaço de proteção que sua dignidade merece. Aqui ocorrem as coisas mais íntimas da vida espiritual. As áreas do forum internum e do forum externum, que são estritamente separadas pelo direito canônico, confundem-se. Nesse contexto, a obediência torna-se um instrumento de poder e de dominação.
Entre a violação dos limites e a proibição do contato, há um espaço de falta de liberdade, aquilo que Erving Goffmann chama de “instituição total” e que é frequentemente citado junto com os pensamentos de Robert Lifton sobre a “lavagem cerebral” ou o “controle do pensamento”. A liderança é perfeita, iluminada por Deus (mais ou menos diretamente) e, portanto, inatacável. Qualquer pessoa que tenha um problema é transformada em um problema.
Um aspecto particularmente relevante para o nosso tema diz respeito a uma distinção fundamental: aquela entre o âmbito de governo e o âmbito da consciência.
Para tutelar a plena liberdade interior e proteger o espaço sagrado da consciência, a Igreja sempre promoveu uma clara distinção entre foro interno e foro externo, entre o âmbito da consciência e o âmbito de governo. A mistura desses âmbitos tem sido muitas vezes a causa de graves abusos de poder pela autoridade religiosa.
Em âmbito eclesial, é bom manter sempre como horizonte último e irrenunciável o respeito pela dignidade da pessoa na sua individualidade.
Será oportuno zelar pelo conceito de “comunhão”, que não raramente é interpretado de forma ideológica como a ação em unidade perfeita de intenções e em uma unanimidade de escolhas, provocando, assim, a anulação do indivíduo em favor da comunidade.
Essa “diluição” do indivíduo no todo levou, em diversas ocasiões, a considerar facilmente sacrificáveis o bem-estar e os direitos da pessoa em favor dos interesses da instituição. A comunhão, por sua vez, deveria se manifestar nos diversos contextos como sinal da comunhão eclesial, que é análoga à de um corpo vivo e operante, caracterizada pela copresença da diversidade e da complementaridade das vocações, dos ministérios, dos carismas e das responsabilidades [16].
As principais fontes do abuso são duas: uma personalidade manipuladora (geralmente de quem tem a tarefa de guia) e um sistema abusivo que pertence à própria estrutura e às regras e costumes de uma instituição.
Os aspectos que caracterizam esse sistema são a manipulação das consciências, que é obtida por meio da violação da intimidade da pessoa e do estabelecimento de relações de sujeição total, e a reorganização da vida individual e comunitária para que tudo, absolutamente tudo, seja reconduzido e confiado a quem se reveste de autoridade. Esse sistema, evidentemente, tem efeitos devastadores sobre a liberdade da pessoa.
Esse aparato de manipulação, tão sutil quanto eficaz, leva a pessoa a confiar unicamente em uma pessoa [17], a se entregar completamente em uma relação que gradualmente se torna, por meio de calculados abusos de poder e de consciência, uma jaula da qual é impossível sair: as vítimas são tão condicionadas a ponto de se tornarem incapazes de reagir e de tomar qualquer decisão autonomamente.
- a área relacional, em que emergiam sintomas problemáticos na vida fraterna e comunitária, como a incapacidade de estabelecer relações sinceras e transparentes, atitude generalizada à mentira ou a esconder a verdade, desconfiança recíproca, falta de respeito, jogos de alianças, interpretações subjetivas dos comportamentos alheios e tendência perene à suspeita;
- a área da gestão da autoridade, em que emerge um preconceito generalizado contra a autoridade, que provocava atitudes de distanciamento, de temor ou de contraposição obstinada em relação a qualquer pessoa que tivesse responsabilidades de governo.
À luz do que foi evidenciado, fica claro que é muito difícil, senão impossível, que um sistema abusivo seja remediado sem uma intervenção externa. A tomada de consciência dessa dificuldade levou a uma séria reflexão sobre o conceito de vigilância na Igreja. É indispensável uma atenção constante aos meios, às normas, aos estilos de governo, aos costumes na vida comunitária e na gestão da autoridade, que também deve envolver o grave dever de intervir oportunamente quando forem identificados elementos de corrupção no sistema ou o uso de instrumentos abusivos.
Quais são os elementos sobre os quais convém que a autoridade eclesiástica vigie para não incorrer em comportamentos abusivos?
Um primeiro elemento é o respeito pela liberdade individual. Nenhum fim, por mais louvável que seja, pode justificar a predisposição de instrumentos e práticas que possam de alguma forma ferir a dignidade pessoal ou o direito à autodeterminação. A adesão a um carisma e a admissão em uma realidade eclesial é a resposta livre e voluntária a um chamado divino, e tal adesão nunca anula a liberdade pessoal e, consequentemente, a responsabilidade individual. Onde não se promove a responsabilidade pessoal, não se contribui para a salvação das almas, pois o ser humano – ensina a Igreja – só pode se voltar para o bem na liberdade [18].
Um segundo elemento é a tutela do espaço da consciência. A esse respeito, o direito é muito claro. O Código de Direito Canônico dispõe: “Ninguém tem o direito de lesar ilegitimamente a boa fama de que outrem goza, nem de violar o direito de cada pessoa a defender a própria intimidade” (cân. 220). A defesa da intimidade sancionada por esse cânone, por um lado, determina a proibição de impor a qualquer pessoa a abertura da alma e a partilha da própria intimidade; por outro, obriga seriamente ao sigilo todos aqueles que tomam conhecimento de aspectos e questões que façam parte do âmbito da consciência de um irmão.
A partir da imposição desse vínculo, deduz-se claramente que não é aceitável obrigar, mediante normas e regulamentos, a abertura da consciência a ninguém, muito menos é admissível pôr em comum aquilo que é acolhido em confidência, por um mal-entendido senso de comunhão. Infelizmente, devemos constatar que em muitas realidades eclesiais a normativa tem facilitado várias formas de invasão da consciência e da intimidade do outro, desencadeando em vários casos abusos com resultados muito graves em vários níveis, especialmente quando está regulamentada a manifestação da consciência aos superiores.
Por isso, a Igreja sempre promoveu uma clara distinção entre foro interno e foro externo, entre âmbito da consciência e âmbito de governo. Com efeito, precisamente a mistura desses âmbitos acaba sendo uma das principais características de um sistema abusivo, pois implica a reorganização da vida das pessoas para que todos os aspectos da vida exterior e interior sejam entregues nas mãos de quem a tarefa de governar.
Infelizmente, a cultura católica muitas vezes tende a absolutizar a mediação eclesiástica e esquece que ela deve interagir com outras mediações, especialmente com a da consciência pessoal [19].
O que ocorre quando essa autoridade espiritual apoiada pela Igreja é mal usada? Em que medida a Igreja faz parte do abuso espiritual?
No que diz respeito à crise mais ampla dos abusos sexuais, do abuso de poder e do abuso de consciência, os bispos franceses declararam que “reconhecem a responsabilidade institucional da Igreja pela violência sofrida por tantas vítimas” [20]. Os bispos chilenos, por sua vez, destacaram que a responsabilidade pelo abuso é dos perpetradores [21]; porém, como o abuso espiritual consiste no uso impróprio de uma autoridade espiritual que, em âmbito católico, é sempre apoiada pela Igreja, nunca se trata de uma questão entre dois indivíduos, mas envolve sempre uma responsabilidade eclesiástica.
Os fiéis são ensinados a confiar na Igreja e em seus representantes. Frases como “quem obedece não erra” ou “a voz do bispo é a voz de Deus” são frequentes na cultura católica [22].
Narcisismo, egoísmo, clericalismo, personalidade manipuladora, egocentrismo e outras características são apresentadas como atributos-chave [23].
Existem também sistemas abusivos na Igreja. Existem instituições, comunidades, estatutos e culturas católicas que facilitam os abusos [24]. A cultura católica tende a absolutizar a autoridade espiritual de seus representantes e de seus ensinamentos. Identificar a voz dos representantes eclesiais com a de Deus ou o ensinamento ordinário da Igreja com o de Deus é um abuso.
Por exemplo, em um ambiente eclesial que professa uma ideia rígida de obediência, mesmo que o superior não seja movido pelo egoísmo, ele pode abusar de sua autoridade espiritual e prejudicar gravemente seus súditos. Nesse caso, por trás do abuso espiritual não há um indivíduo perverso, mas um sistema abusivo. Não existem apenas indivíduos abusivos, mas também estruturas, práticas, instituições e ensinamentos abusivos. Em síntese, o abuso espiritual pode ser causado tanto por indivíduos quanto por sistemas abusivos.
1. Cf. La Civiltà Cattolica, 4.038, p. 449.
2. Cf. F. Lombardi, “Verso l’incontro dei vescovi sulla protezione dei minori”, in La Civiltà Cattolica 2018, IV, pp. 532-548; Id., “Dopo l’incontro su ‘La protezione dei minori nella Chiesa’”, ibid., 2019, II, pp. 60-73; Id., “Protezione dei minori. I passi avanti del Papa dopo l’incontro di febbraio 2019”, ibid., 2020, I, pp. 155-166; e, por fim, o livro monográfico “Abusi”, da coleção “Accènti” da La Civiltà Cattolica (junho 2018). Para um enquadramento geral, ver G. Cucci – H. Zollner, “Chiesa e pedofilia. Una ferita aperta. Un approccio psicologico-pastorale”, Milão: Àncora, 2010.
3. A. Cencini, A. Deodato, G. Ugolini, “Abusi nella Chiesa, un problema di tutti. Oltre una lettura difensiva o riduttiva” in: La rivista del clero italiano, 2019, 4, pp. 254-255.
4. Cf. Montero, Orphanopoulos Carolina. “Vulnerabilidad. Hacia una Ética Más Humana”. Madri: Dykinson, 2022.
5. Cf. ibid.
6. Langberg, Diane. 2020. “Redeeming Power: Understanding Authority and Abuse in the Church”. Grand Rapids: Brazos Press, 2020, p. 19.
7. Inácio de Loyola. “Ejercicios Espirituales. Introducción, Texto, notas y Vocabulario por Cándido de Dalmases”. Santander: Sal Terrae, 1985, n. 97.
8. Lannegrace, Anne 2018. “Dérives sectaires et abus de pouvoir, une approche psychologique”. In Dérives Sectaires Dans Des Communautés Catholiques. Organizado pela Conferência dos Bispos da França. Paris: Secrétariat general de la Conférence des évêques de France, pp. 35-57.
9. Às vezes, alguns realizam o exercício do próprio poder, nas próprias “faculdades de e sobre”, certamente com carisma; outros, com força e violência, ou por traços de caráter propriamente de orgulho ou como cobertura compensatória de um ego frágil, quando a delirante grandiosidade do ego carece ainda mais de adulação e sujeição. De acordo com a teorização psicanalítica sobre a origem e a evolução, com quaisquer formas patológicas do ego anexadas (e aqui ver Helnz Kohut), um ego grandioso é a compensação de um ego frágil, determinado por sua vez por uma inadequada correspondência das figuras de cuidado das necessidades fisiológicas e emocionais da criança: a falta de empatia e sensibilidade dos genitores leva a uma fragmentação do ego que, em parte, pode gerar formas patológicas expressadas pela necessidade de grandiosidade e exibicionismo.
10. LG 18.
11. Fernández, Samuel. “Towards a Definition of Abuse of Conscience in the Catholic Setting”. Gregorianum 102, 2020, pp. 557-74.
12. Johnson, David, and Jeff VanVonderen. The Subtle Power of Spiritual Abuse. Bloomington: Bethany House, 1991, p. 20.
13. Johnson, David, and Jeff VanVonderen. The Subtle Power of Spiritual Abuse. Bloomington: Bethany House, 1991, p. 20-21.
14. Blue, Ken. Healing Spiritual Abuse: How to Break Free from Bad Church Experiences. Illinois: InterVarsity Press, 1993, p. 12.
15. Linn, Matthew, Sheila Fabricant Linn, and Dennis Linn. Healing Spiritual Abuse and Religious Addiction. London: Paulist Press, 1994, p. 12.
16. João Paulo II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles laici, n. 20.
17. H. Zollner, A. Deodato, A. Manenti, G. Ugolini, G. Bernardini, Abusi sessuali nella Chiesa? Meglio prevenire, Milão, 2017, p. 42.
18. GS 17.
19. Fernández, Samuel. “Towards a Definition of Abuse of Conscience in the Catholic Setting”. Gregorianum, 102, 2020, pp. 557–74.
20. Conferência dos Bispos da França. Résolutions Votées par les Évêques de France le 8 Novembre 2021. Lourdes, 2021. Disponível em francês aqui.
21. Conferencia Episcopal de Chile. Hacia Caminos de Reparación. Orientaciones para Autoridades Eclesiásticas. Santiago: CECh, 2020. Disponível em espanhol aqui.
22. Fernández, Samuel. “Reconocer las señales de alarma del abuso de conciencia”. In Abusos y Reparación. Sobre los Comportamientos no Sexuales en la Iglesia. Organizado por Daniel Portillo Trevizo. Madri: PPC, 2021, pp. 47–65.
23. Cf. Poujol, Jacques. Abus Spiritueles. S’affrancir de L’emprise. Paris: Empreinte, 2015.
24. Chartier-Siben, Isabelle. L’Arche: Walking with Our History, 2021. Disponível em francês aqui.
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O sistema abusivo na Igreja: consciência, poder e sexo. Artigo de Domenico Marrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU