14 Setembro 2022
Se não quisermos fugir da realidade e se quisermos admitir com consciência que as pessoas a quem nos dirigimos hoje, na maioria dos casos, são indiferentes ao problema de Deus, apáticas, distantes, alheias ou até incrédulas, é preciso permitir que, a partir de dentro da sua própria experiência de vida, principalmente imersa na normalidade do cotidiano, elas possam de algum modo conhecer Jesus e seu Evangelho.
A opinião é de Francesco Cosentino, teólogo e padre italiano, membro da Congregação para o Clero e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana. O artigo foi publicado em Settimana News, 09-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O jornal L’Osservatore Romano do dia 3 de setembro passado publicou uma ampla entrevista com o cardeal Zuppi, arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI), realizada pelo diretor Andrea Monda e por Roberto Cetera.
O leque de temas tratados, propostos em uma grade de perguntas bem concebidas e feitas de tal modo que os assuntos tratados não parecessem genéricos, mas, mais ainda, as reflexões aprofundadas do cardeal nos levam a voltar várias vezes ao texto.
De fato, vem à tona uma espécie de “manifesto” que, embora não se cale sobre alguns aspectos cruciais da atual crise de fé que afeta a Igreja italiana, ao mesmo tempo delineia, com linguagem pacata e palavras de esperança, horizontes novos para dizer de novo o Evangelho no nosso contexto atual.
Assim, das palavras do presidente da CEI emerge a postura de uma Igreja que dialoga com o ser humano do nosso tempo, que se põe à escuta das mudanças antropológicas e sociais em curso, sem preconceitos, que busca humildemente palavras novas para não ficar áfona sobre os principais aspectos da fé e da vida.
Mas, acima de tudo, se há um leitmotiv que percorre a entrevista em filigrana, ele pode ser rastreado em uma interrogação à qual o cardeal muitas vezes retorna: como ser cristão hoje?
Em primeiro lugar, Zuppi afirma que, sem nostalgias pelo passado e sem fugas para a frente, a Igreja deve compreender as mudanças antropológicas do nosso tempo e se perguntar: “Por que a beleza humana do ser cristão não atrai?”.
Depois, evocando o símbolo da água que sacia o povo no seu longo e cansativo caminho no deserto, Zuppi afirma que vivemos um tempo de desertificação espiritual, mas “também deve haver água”, porque o deserto também sempre expressa a sede e, por isso, a busca por água. E, então, “precisamos olhar para a sede, e não lamentar do deserto. Satisfazer essa sede significa explicar, e mais ainda mostrar, como é viver como cristãos hoje”.
O tema volta novamente, porque em tudo – até mesmo na importância dos temas éticos ou do compromisso político – a Igreja deve ter em mente a construção do “perfil atual do cristão, ou seja, do ser humano evangélico, que é o mesmo de sempre, mas que deve falar ao ser humano de hoje”.
E, no fim da entrevista, a interrogação é feita como elemento crucial do próprio caminho sinodal: “O que significa ser cristão hoje? O que a Igreja me pede para ser?”.
Pode parecer óbvio, mas as reflexões teológicas das últimas décadas concordam em identificar os motivos da crise da fé não só e não tanto nas profundas e rápidas mudanças da sociedade secularizada e nas suas inevitáveis consequências antropológicas e éticas, mas na constante e sórdida fraqueza do próprio cristianismo, muitas vezes pesado e apagado, reduzido a uma realidade epidérmica e exterior, de aparato e de tradição, tendencialmente devocional. Uma realidade na qual – como muitas vezes o Papa Francisco recorda profeticamente – assistimos à repetição às vezes mecânica de um alfabeto feito de palavras, de ritos, de liturgias, dentro de um sistema que parece obsoleto, intimista, pouco apaixonado e apaixonante.
Um mundo em que a conservação das “coisas” que expressariam uma suposta identidade cristã há muito tomou o lugar daquela alegria do Evangelho da qual o papa argentino fala como a primeira e essencial realidade com a qual é preciso entrar em contato, deixar-se surpreender, tocar e mudar.
Em uma palavra: existe um cristianismo reduzido a tradição cultural, a visão moral, a um conjunto de práticas devocionais que aplacam as angústias da alma, mas o risco é o de levar adiante um “cristianismo sem Cristo”.
O que, então, significa ser cristão? O renomado teólogo Hans Küng, no famoso best-seller “Ser cristão hoje”, respondia a essa pergunta com 20 teses, que vale a pena relembrar. Nas três primeiras, ele escreve:
“Cristão não é simplesmente alguém que se compromete a viver em uma dimensão humana ou social ou, em particular, religiosa. Cristão é acima de tudo e somente alguém que se compromete a viver a própria humanidade, sociabilidade e religiosidade remetendo-as a Cristo. O específico e peculiar do cristianismo é o próprio Jesus Cristo.”
Por isso, continuava: “Ser cristão significa: viver, agir, sofrer e morrer de modo verdadeiramente humano, seguidores de Jesus Cristo no mundo de hoje”. O seguimento de Jesus, reconhecê-lo como Senhor da vida e da morte, colocar-se atrás d’Ele, assumindo o seu estilo, os seus sentimentos, a compaixão do seu agir vêm antes do aparato religioso, da visibilidade das estruturas ou das normas morais. Hans Küng explicita isso ainda mais nas teses finais: “O elemento distintivo do agir cristão é o seguimento de Jesus”.
Karl Rahner também retornava frequentemente a esse tema em muitos dos seus ensaios. Uma de suas entrevistas concedida à revista suíça Civitas é de grande atualidade, embora sendo do início dos anos 1980. Nela, a quem o definia como um teólogo “antropocêntrico”, Rahner respondia: “Essa é uma afirmação totalmente sem sentido. Eu gostaria de ser um teólogo, que diz que Deus é o mais importante e que nós existimos para amá-lo de uma forma desapegada de nós mesmos”.
Se o principal problema do nosso tempo é o “esquecimento de Deus”, Rahner está convencido de que “a Igreja, até mesmo nos seus máximos representantes, ainda não se esforça de forma realmente radical para desenvolver aquela experiência mística de Deus no ser humano individual e, além disso para torná-la, por assim dizer, socialmente aceitável, compreensível para as grandes massas, como seria necessário”.
Nesse sentido, afirma o teólogo alemão, é sobretudo importante implementar uma “pregação de Jesus a partir de baixo”, capaz de apresentar de forma viva “a verdadeira, simples, autônoma, experimentável humanidade de Cristo”. Em segundo lugar, é preciso definir as prioridades sem hesitação:
“O aparato eclesiástico – escreve Rahner – com todos os sacramentos e os funcionários romanos, os bispos e as igrejas, até os impostos eclesiásticos etc. existe apenas para despertar um pouquinho de fé, esperança e amor no coração do ser humano... Se ela obtém isso, todo esse grande emprego de energias se justifica, mas, se não consegue, todo o resto é inútil. Em última análise, o mais importante é que o ser humano abandone a sua vida a Deus, sem nenhuma reserva, com responsabilidade e no amor ao próximo. Todo o resto é um meio para esse fim.”
A vida normal do cristão, de fato, é uma história simples, sem muitos eventos marcantes ou espetaculares. Rahner afirma ter vivido assim:
“Na minha opinião, a vida cristã normal se assemelha a isso, e essa também foi a minha tarefa. Deixei para trás uma vida de professor de escola que não conheceu nem ápices heroicos nem grandiosas reviravoltas... Por isso, não há muito a dizer, exceto: ‘Agarre o instante; tente fazer aquilo que também pode ser chamado muito simplesmente de seu dever! Por outro lado, viva constantemente de uma maneira nova o fato de que o mistério indizível, que chamamos de Deus, não apenas governa e vive, mas também teve a improvável ideia de se aproximar de você com um amor totalmente pessoal. Volte o seu olhar para Jesus Cristo, o crucificado; só assim você pode aceitar a sua vida, aconteça o que acontecer’”.
Diante das numerosas mudanças da nossa época, que determinam, como afirma o Papa Francisco, uma “mudança de época”, e diante dos numerosos desafios que dizem respeito à crise da fé, o cardeal Zuppi encoraja um caminho eclesial e sinodal que, vencendo tanto a tentação do lamento quanto a de uma resignada saída de cena, volta a se interrogar sobre o que significa ser cristão hoje, sobre como agir e viver como cristão na sociedade de hoje, sobre quais palavras é preciso encontrar para anunciar novamente a fé cristã.
Isso só é possível por meio de uma espécie de “terapia de choque”, talvez dolorosa, mas necessária: não continuar reiteradamente praticando registros eclesiais, pastorais e espirituais por inércia e como se nada estivesse acontecendo, mas ter a coragem de renunciar talvez até a muitas das nossas atividades e das nossas práticas pastorais e sacramentais, para voltar a anunciar a Jesus, o Crucificado Ressuscitado.
Se não quisermos fugir da realidade e se quisermos admitir com consciência que as pessoas a quem nos dirigimos hoje, na maioria dos casos, são indiferentes ao problema de Deus, apáticas, distantes, alheias ou até incrédulas, não precisamos em primeiro lugar apresentar a essas pessoas todo o peso do aparato, todas as normas morais, todas as rubricas dos ritos religiosos, mas, pelo contrário, é preciso permitir que, a partir de dentro da sua própria experiência de vida, principalmente imersa na normalidade do cotidiano, elas possam de algum modo conhecer Jesus e seu Evangelho, talvez por meio daquelas que Rahner chamava de “fórmulas breves” da fé: um anúncio simples, direto, mistagógico, voltado para Jesus e para a esperança que as suas palavras emanam.
No fundo, trata-se de um primeiro e novo anúncio que, no entanto, nas nossas comunidades cristãs, expostas demais ao emprego de múltiplas energias para levar adiante as coisas de sempre e garantir a continuidade do existente em termos de liturgias e de sacramentos, ainda não encontra espaço suficiente. Tampouco pastores e operadores leigos que possam se dedicar a isso com liberdade e com o tempo necessário que tal trabalho exige.
No entanto, partimos daqui, porque “não há nenhuma doutrina, nenhuma estrutura de valor moral, nenhuma atitude religiosa e ordem de vida que possa ser separada da pessoa de Cristo e das quais se possa dizer, então, que são a essência do cristianismo. O cristianismo é Ele mesmo” (R. Guardini. L’essenza del cristianesimo. Bréscia: Morcelliana, 1980, p. 83).
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Ser cristão hoje. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU