09 Setembro 2022
"Aqui, no Brasil, parece-me que existe uma situação que vê o tradicionalismo anticonciliar e fascista ao lado do imobilismo repetitivo das paróquias. A maioria dos párocos, de fato, não faz oposição aberta ao convite para viver uma Igreja em saída, mas procede na repetição do que sempre foi feito. O quadro, em muitos casos, piora, quando presenciamos, por exemplo, a aliança de párocos com políticos municipais e estaduais. Obviamente, para um bom propósito, a fim de receber apoios significativos na festa dos padroeiros, subsídios e homenagens diversas. Essa submissão, por vezes marcada pelo uso criminoso do dinheiro público, é compensada pelo silêncio cúmplice e pela lealdade eleitoral", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 08-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Apesar de envelhecer, insisto quase compulsivamente na leitura dos documentos da Igreja Católica, porém agora isso já se tornou um ofício cada vez mais tristemente repetitivo. São documentos romanos, papais, episcopais, europeus e latino-americanos: um oceano de palavras que comecei a ler, com entusiasmo, nos anos setenta, a temporada italiana da Evangelização e Promoção Humana e da Evangelii nuntiandi.
Isso aconteceu dando continuidade ao estudo das grandes constituições do Concílio Vaticano II e obviamente do evento e do documento de Medellín, tradução do Concílio na América Latina. Mais recentemente a Laudato Si' do Papa Francisco consegue me seduzir, mas, tendo perdido o entusiasmo juvenil, o resto da imensa biblioteca magistral me parece um conjunto cemiterial, no qual exércitos de palavras, exortações e conceitos já há tempo cadavéricos transitam de um documento para outro, sem nenhum contato com a realidade.
Talvez seja uma questão de fadiga senil. Ou, talvez, seja realmente a incapacidade de aceitar que as propostas inspiradas pelo Espírito na verdade percorrem gerações e gerações antes de serem aceitas. Por que se surpreender, então, quando continuamos a esquecer e trair, desde o início, o próprio Evangelho e a pessoa de Jesus? Ou quando apagamos da memória a prática profética redescoberta em Medellín e desse tesouro fica apenas a repetição verbal da fidelidade aos pobres? Ou quando resta apenas a fórmula de Aparecida, repetida até o desgaste, mas sem nenhuma conexão com mudanças eclesiais concretas: "passar de uma pastoral de mera manutenção do existente para uma pastoral decididamente missionária"?
Hoje essa distância entre palavras e práticas, entre documentos e efetivas conversões pastorais, se repete com o tema da sinodalidade, tema que é objeto de estudos, reflexões, comentários, na maioria das vezes repetitivos e desvinculados de decisões e de eventos que possam traduzi-lo.
Parece-me que muitas paróquias obedeceram mais uma vez ao chamado de reunir os fiéis para refletir sobre a urgência de caminharmos juntos como irmãos e irmãs, um novo povo a serviço do Reino. Mas a continuidade da supremacia hierárquica do pároco e a centralidade inoxidável da Igreja paroquial, em torno da qual tudo gira, fragilizam esse esforço.
Não tivemos sucesso em sair da órbita paroquial para nos familiarizarmos com as ruas e os caminhos, e hoje estamos falando de um caminho a ser feito juntos, paralisados como estamos no espaço fechado das comunidades e das paróquias.
Pergunto-me mais uma vez se, como Igreja, não estamos tentamos nos manter à tona nas águas da crise ou se, equivocando-me na leitura, esqueço que - em relação a Jesus e ao seu Reino - cada geração, valorizando o passado, deve em qualquer caso recomeçar o caminho de busca de sentido e verdade.
O Papa Francisco enfrenta explicitamente esta crise e quando perguntado se vê sinais de renovação espiritual, de vida nova e fresca na Igreja, ele responde:
“É muito difícil ver uma renovação espiritual usando esquemas muito antiquados. Precisamos renovar a nossa forma de ver a realidade, de avaliá-la. Na Igreja europeia vejo mais renovação nas coisas espontâneas que estão nascendo: movimentos, grupos, novos bispos que lembram que há um Concílio às suas costas. Porque o Concílio que alguns pastores lembram melhor é o de Trento. E não é bobagem o que estou dizendo. O restauracionismo veio para amordaçar o Concílio. O número de grupos de restauradores - por exemplo, nos Estados Unidos há muitos - é impressionante. Um bispo argentino me disse que lhe pediram para administrar uma diocese que havia caído nas mãos desses restauradores. Eles nunca aceitaram o Concílio. Há ideias, comportamentos que nascem de um restauracionismo que basicamente não aceitou o Concílio. O problema é justamente este: que em alguns contextos o Concílio ainda não foi aceito. Também é verdade que leva um século para um concílio se enraizar. Ainda temos quarenta anos para fazê-lo criar raízes, então!" [1].
Aqui, no Brasil, parece-me que existe uma situação - difícil de quantificar estatisticamente - que vê o tradicionalismo anticonciliar e fascista ao lado do imobilismo repetitivo das paróquias.
A maioria dos párocos, de fato, não faz oposição aberta ao convite para viver uma Igreja em saída, mas procede na repetição do que sempre foi feito. Talvez entendamos bem que a Igreja deve estar sempre em saída, senão adoece. E que uma Igreja acidentada é melhor do que uma Igreja doente de fechamento, mas essa conversão é certamente difícil permanecendo inalterada a instituição paroquial.
O quadro, em muitos casos, piora, quando presenciamos, por exemplo, a aliança de párocos com políticos municipais e estaduais. Obviamente, para um bom propósito, a fim de receber apoios significativos na festa dos padroeiros, subsídios e homenagens diversas.
Essa submissão, por vezes marcada pelo uso criminoso do dinheiro público, é compensada pelo silêncio cúmplice e pela lealdade eleitoral. E aqui, numa perspectiva invertida em que a Igreja se entrega desarmada nas mãos do poder político, encontramos a lógica do padroado, quando era o poder monárquico que nomeava os bispos, submetendo-os aos interesses políticos da coroa, prática que o Concílio de Trento tentava superar.
Se ainda não foi digerido nem mesmo o Concílio de Trento, imagine-se o Vaticano II com Medellín!
O caro irmão e amigo Claudio Bombieri acrescenta uma importante análise da atual conjuntura:
"Durante a pandemia, muitas reflexões sugeriam que, após o resultado positivo de inúmeras experiências eclesiais em que os leigos haviam tomado a iniciativa de receber a comunhão e celebrar mesmo sem a Missa presencial, teríamos finalmente vivido uma sinodalidade sem centralidade clerical. Mas o retorno à normalidade revela que a pausa da pandemia não produziu as mudanças esperadas. Voltamos à normalidade de uma Igreja clerical, insossa, esvaziada de pessoas e motivações. Mostramo-nos refratário também à lição da desgraça”.
No entanto, gostaria de concluir com palavras de esperança. E faço minhas as palavras do meu amigo - grande biblista - Sandro Gallazzi:
“O verdadeiro sínodo está em caminhar junto com Jesus que vai ao centro do conflito e lá será elevado. O contrário do sínodo é o Sinédrio, ficar sentados juntos, mas dentro de casa. E desejar que todas as casas sejam nossas e amaldiçoar quem bate a porta na nossa cara. E continuar a referir-se à casa de onde deveríamos sair, as nossas tradições e as teologias já defuntas. Siga-me! Seja meu acólito! Não ao redor do altar, mas em direção ao Calvário”.
[1] Antonio Spadaro, "Papa Francisco em conversa com os diretores das revistas culturais europeias dos Jesuítas", La Civiltà Cattolica, Quaderno 4128, pp. 521 - 529, Volume II, 18 de junho de 2022.
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Sinodalidade: o risco da retórica. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU