03 Setembro 2022
"As pesquisas indicam para o próximo domingo uma vitória do 'rechazo', o que não tem abalado o otimismo dos defensores do 'apruebo', que apontam inconsistências nas pesquisas e contam com a energia das ruas e a continuidade do espírito pró mudança observado no plebiscito de entrada", escreve Felipe Calabrez, professor de Relações Internacionais, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas, ao comentar as expectativas em torno do plebiscito chileno sobre o projeto de nova Constituição, que será voltado neste domingo, 04-09-2022.
No próximo domingo o Chile irá às urnas para o que parece ser um acerto de contas com seu passado e um referendo sobre seu futuro. Um acontecimento histórico que se dá em um presente marcado por uma intensa disputa de forças políticas e sociais.
Desde o estalido social que eclodiu em outubro de 2019 parece haver no ar a sensação de que algo se rompeu. A explosão social que sacudiu o país deixou a impressão de suspensão da normalidade e colocou em disputa as possibilidades para o futuro. Tendo como estopim o reajuste das passagens de metrô em Santiago, que desencadeou forte reação dos estudantes, os protestos canalizaram um amplo conjunto de insatisfações antigas, trazendo à tona diversas pautas de movimentos sociais organizados, como o fim do sistema privado de aposentadorias, o sistema de financiamento estudantil que endivida os estudantes e o modelo de sociedade patriarcal, fortemente desafiado por movimentos feministas que, vale dizer, adquiriram grande protagonismo no processo.
Após violenta reação policial, que ampliou a organização e o contra-ataque dos manifestantes, o governo Piñera recua e propõe um acordo social. Criticado por uma parte da esquerda e dos movimentos sociais, o Acordo de Paz e a realização de um plebiscito sobre uma nova constituição é pactuado entre as forças políticas com aceitação da esquerda institucional, sendo assinado inclusive pelo então deputado Gabriel Boric.
Em 27 de setembro de 2020 realiza-se o chamado Plebiscito de entrada, quando 78% dos eleitores aprovam a formação da Convenção Constitucional, que é formada com a missão de enterrar a Constituição de Pinochet, legado de uma sangrenta ditadura e que serviu de enquadramento institucional e normativo para o autoritarismo como forma política e para o neoliberalismo como modelo econômico e social, por meio do chamado estado subsidiário. A dificuldade dos governos da concertación em produzir avanços e desmontar um modelo privatista que privilegia formas financeiras de acumulação de capital em detrimento da garantia de direitos sociais e acesso da população a bens públicos é historicamente atribuída às amarras dessa constituição, e este ponto é fundamental para compreendermos o que hoje está em jogo no Chile.
A Constituição pinochetista fora usada pela direita como barreira aos avanços democráticos, sociais e econômicos no país. E a maioria do povo chileno já a rechaçou em outubro de 2020, processo que foi seguido pela formação de uma Convenção Constitucional que, mesmo contando com certas armadilhas, como a manutenção da regra de 2/3 para aprovação das normas – dispositivo da constituição de 1980 – produziu uma das mais avançadas propostas de Constituição, garantido um Estado social provedor de bens públicos, plurinacional, reconhecendo os direitos dos povos indígenas, formas mais diretas de participação social, descentralização política, entre outros tantos pontos. Vale ressaltar também que a composição da Convenção Constitucional também foi bastante inovadora, garantindo paridade de gênero, muito espaço para convencionales independentes, de fora dos partidos políticos tradicionais, além de ter sido presidida por uma mulher indígena.
A questão constitucional no Chile, portanto, carrega um significado que parece ir além da evidente importância do texto que oferece o marco institucional legal para o desenho do Estado e exercício de governo. Ela possui um espírito político e que é, nesse momento, facilmente notado nas ruas de Santiago, diante da intensa campanha polarizada entre “Rechazo” e “Apruebo”.
De um lado, os partidos tradicionais da direita, centro e mesmo parte da centro esquerda, que ficaram sem condições de defender uma constituição legada pela ditadura e rechaçada por 78% dos chilenos, agora adotam como estratégia a defesa do rechaço a essa proposta e a futura elaboração de outra. “Vote com amor e alegria por uma outra constituição, melhor que esta” – diz em um programa de TV uma defensora do “rechazo”.
Do outro lado, os tradicionais partidos da esquerda e todos os partidos da “nova esquerda”, forjados na luta feminista e estudantil, e que hoje compõem o governo Boric, defendem o enterro de um modelo neoliberal, privatista e autoritário e a adoção de um estado social, com ampliação dos direitos sociais.
As pesquisas indicam para o próximo domingo uma vitória do “rechazo”, o que não tem abalado o otimismo dos defensores do “apruebo”, que apontam inconsistências nas pesquisas e contam com a energia das ruas e a continuidade do espírito pró mudança observado no plebiscito de entrada. Contra si possuem a força dos grandes meios de comunicação, o poder do dinheiro da desinformação, com a propagação de fake news que têm disseminado o medo do desconhecido e de uma hipotética perturbação da ordem. “Medo de virar uma Venezuela” foi o argumento de um motorista de aplicativo em Santiago na última quarta-feira.
Observa-se no Chile uma polarização política, onde a Nova Constituição é bastante associada às esquerdas e ao próprio governo Boric, que tem enfrentado dificuldades para promover avanços ao ritmo que se espera e visto sua popularidade cair com certa rapidez. Dissociar as contradições do governo atual da proposta constitucional e convencer os indecisos sobre os avanços que ela traz pode ser decisivo para uma vitória do “apruebo” no próximo domingo.
Seja como for, o resultado de domingo tem bastante a dizer sobre o que se passa no Brasil de hoje e toda a América Latina deveria estar atenta ao resultado e desdobramentos do processo político chileno.
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Chile vai às urnas: a disputa entre o “Rechazo” e o “Apruebo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU