Quando falamos sobre a tragédia que há anos ocorre no Mediterrâneo, já o fazemos agora de forma abstrata. Os mortos são apenas números, números que se acumulam e que, ao se amontoarem, deveriam pesar na consciência coletiva, mas não é assim.
A entrevista é de Mattia Insolia, publicada por Domani, 19-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Acostumamo-nos à tragédia dos migrantes que morreram no mar com a mesma facilidade com que nos rendemos ao que não podemos mudar. Algumas pessoas, no entanto, continuam a lutar, a fazer o que podem para que esses números, os mortos listados como se não fossem nada, não subam de novo e de novo.
Essas pessoas não apenas salvam a vida dos migrantes, mas também de nós mesmos e da humanidade no sentido mais profundo do termo. Entre estas, Caterina Bonvicini que escreveu um livro sobre suas missões com as ONGs, Mediterraneo (Einaudi, 2022). Uma narração honesta do que acontece às portas da Europa, intercalada pelas fotos de Valerio Nicolosi, que também já embarcou várias vezes.
Mediterraneo (Foto: Divulgação)
Primeira sensação, uma vez desembarcada?
Cansaço. Eu não percebi isso no navio, mas quando voltei à terra, desmoronou sobre mim. Em uma missão você não pode se dar ao luxo de se sentir cansado, deve estar sempre alerta: vidas dependem de sua atenção; certa vez ficamos acordados por 72 horas. É como se seu corpo não se permitisse a liberdade de se cansar enquanto você está no navio.
Entre as primeiras coisas que você conta no Mediterrâneo estão as mordidas que vocês encontram nos tornozelos dos migrantes.
Nossa imaginação é banal. Pensamos nos migrantes que morreram no mar e os imaginamos afogados em um naufrágio, mas essa não é a única maneira de morrer. Acontece, sim. Os migrantes às vezes caem dos botes de borracha e morrem sozinhos no meio do mar ou, justamente, em naufrágios, mas não é a única maneira. Alguns se afogam no próprio barco, e aqui chegamos às mordidas nos tornozelos.
O que acontece?
Nos botes se acumulam uns 20 centímetros de uma mistura de água do mar, combustível, que escapa do tanque, e excrementos, eles não têm banheiros: fazem suas necessidades ali mesmo, de pé, parados. Forma-se então essa mistura na qual eles viajam por dias, e se acontecer de um deles desmaiar ou se deitar, não consegue se levantar novamente: são muitos, apertados demais. Eles então acabam com o rosto nessa mistura que tem alguns centímetros de altura, mas o suficiente para se afogar. Então, a única esperança que eles têm é abrir espaço entre os corpos dos outros. E para fazer isso, eles mordem os tornozelos de quem está perto.
Quantos anos eles têm?
São de todas as idades, muitas vezes muito jovens. Uma amiga de Sos Méditerranée me contou que encontrou, justamente poucos meses atrás, os cadáveres de dois garotos, com 14 e 19 anos. Estavam inchados de água, desfigurados. Ela pulou no bote para recuperar os corpos, mas o mar estava agitado e o navio não conseguiu se aproximar. Esperavam melhores condições, e ela permaneceu no bote, aguardando por meia hora, com os dois cadáveres.
Quando são salvos, do ponto de vista psicológico, como estão?
Depende. Alguns estão apenas felizes por terem se salvado, outros estão assustados. Muitas vezes eles estão cansados e no navio acabam desmoronando: um minuto antes pode haver uma tremenda confusão, no seguinte o silêncio é incrível. Muitas vezes eles têm perguntas. As crianças choram, gritam. E pode acontecer que, de um momento a outro, fiquem tristes. Eles olham fixo para o mar, chorando silenciosamente. Eles pensam em quem deixaram para trás, quem morreu na travessia, o que passaram nos campos de concentração líbios.
No livro você fala sobre o cheiro do desespero: como é o cheiro do desespero?
Fezes, urina, suor, vômito e gasolina. O fedor era horrível, mas no navio você nem percebia.
Você fica cansado depois da viagem, mas não durante a viagem. Seu corpo pediu uma pausa?
O cérebro, em uma emergência, não faz você sentir determinadas coisas. A mente está tão envolvida com o que está acontecendo que não permite que os sentidos se concentrem em mais nada. Meus pés ficaram queimados pela gasolina, e eu só percebi isso depois de três dias.
Você pode me contar sobre seu primeiro resgate?
Ao todo, participei de oito resgates. No primeiro eu estava na ponte e foi fácil: 49 pessoas em um pequeno barco de seis metros.
Teve algum complicado?
Sim, três.
Do que você mais se lembra?
O pânico.
Seu?
Meu, deles. Isso valia para todos.
Você teve medo?
Sim. Os migrantes aterrorizados se jogavam no bote, se lançavam nele. Eles estavam assustados e nós éramos sua única salvação, uma salvação na qual mal podiam acreditar. Ao cair um pisou no acelerador, e nosso bote disparou: estávamos prestes a cair na água. Um caiu sobre uma mulher grávida, e ela começou a gritar, a se contorcer.
Você sente a responsabilidade por suas vidas, naqueles momentos?
Eu estava amarrando um colete salva-vidas numa criança. Ao nosso redor, os migrantes gritavam, tentavam subir no bote pulando, se jogando. E pensei: agora ele vai escorregar das minhas mãos, agora o menino vai escorregar das minhas mãos e cair no mar.
Você voltou a pensar naquela criança?
Sim, com frequência.
Existe alguém que marcou mais?
O resgate de duas crianças: um menino e uma menina. Hoje vivem na França, mas por um tempo ficaram na minha casa, junto com a mãe, que também foi salva no Mediterrâneo. Eles fazem aulas de judô, eu e meu marido pagamos, e dias atrás eles ganharam uma competição. Pense, eles estavam no jornal local! Aquelas crianças, sem as ONGs, teriam morrido, mas hoje têm uma casa, praticam esporte. Eles estão vivos. A Ocean Viking salvou mãe e filha. Eu estava em uma missão com eles, estava no navio, e a mão da mulher, a bordo de um bote danificado, fui eu que a segurei. Eu a segurei e a puxei do mar. A filha estava com ela, ela tinha cinco anos na época, mas o menino não; não o deixaram embarcar, ele havia ficado na Líbia.
Em que condições estavam?
A mãe desmaiou assim que saiu da Líbia, fez toda a viagem em estado inconsciente e teve que ficar dois dias na enfermaria do navio. Sua filha estava bastante bem. Ela estava feliz por estar a salvo, e ela sempre sorria. Estava preocupada com sua mãe, no entanto. Ficou com ela na enfermaria, cuidando dela, durante toda a primeira noite.
O menino, o que aconteceu?
Quando soube que ele tinha ficado na Líbia, movi mares e montanhas. No final, depois de muitos telefonemas, buscas intermináveis, ele apareceu no Sea Watch. Incrível! Assim os três se juntaram. Ficaram na minha casa por mais ou menos um mês, e nos unimos muito durante esse período, éramos como uma espécie de família. Depois partiram para a França, e hoje moram lá.
No livro você também fala sobre a rotina nos navios. Se trabalha muito?
Muito, especialmente se fazem muitos exercícios. Você tem que estar pronto para qualquer eventualidade, não se espera uma emergência para aprender a lidar com ela. Éramos soldados, na prática, com a diferença de que estávamos ali para trazer a paz.
Vamos falar sobre os campos de concentração líbios agora.
Muitos se matam para não retornar à Líbia. Alguns são resgatados quando estão em sua terceira ou quarta travessia porque foram primeiro levados pelos líbios e levados de volta. E contam que amigos ou familiares se jogaram no mar ou cometeram suicídio para não voltar à Líbia.
O que acontece nesses lugares?
Eles são torturados, as torturas são filmadas, os vídeos enviados para suas famílias: se querem que parem, têm que pagar. Enquanto isso, eles são obrigados a trabalhos forçados.
Quantos desses campos existem?
Não sabemos, muitas são prisões privadas: uma realidade submersa. E nós, embora cientes do que está acontecendo, continuamos a subsidiá-los.
Existe sadismo nos carcereiros líbios?
Sim, eles muitas vezes matam por diversão. Ocorre uma cesura ética pela qual eles são livres para exercer seu sadismo sem restrições. Por outro lado, isso é o que acontece em todas as guerras: pense em Ruanda. Mas para além do sadismo, as razões são muitas. Éticas, religiosas, raciais.
Depois de vivenciar tudo isso, como os migrantes fazem para seguir em frente?
Não sei. Como possam conviver com a memória da tortura, continuando a se perguntar, entre outras coisas, o que fizeram de errado para merecer isso, não entendo.
Na política: os governos mudam, mas nada muda.
Salvini e Meloni enchem a boca, mas a esquerda faz praticamente o mesmo jogo, só que em silêncio. A direita usa isso para propaganda, usa o ódio como ameaça, a esquerda não o faz mas, ainda assim, de fato, nada mudou.
Alguns se alegram com a notícia de um naufrágio. Como você explica isso?
As pessoas estão tão permeadas pela narrativa da direita que não veem mais nada. Certa vez, em um jantar com amigos, uma convidada, ao saber que eu havia embarcado com as ONGs, me cobriu de insultos: ela me chamou de assassina, traficante. Uma coisa louca.
O que você fez?
Eu me levantei e fui embora.
O que acontece nessas cabeças?
Acho difícil de entender. É que a narrativa da direita é tão bem construída, as ONGs, os acordos com os traficantes e tudo o que se segue, que é fácil acreditar nela. E além disso, temos que dizer: há muito racismo.
Caterina, por que você embarcou?
Era 2018. Apoiava as ONGs e levava roupas e comida para as associações, mas quando soube o que estava acontecendo, dos naufrágios, dos mortos, não pude deixar de dizer a mim mesma que não era suficiente. Então decidi partir.
Como você continua com sua vida depois do que viu?
Depois de um tempo, tudo volta ao normal. E também escrever, as amizades nascidas nas ONGs me ajudaram.
Por acaso você sonha com o que você viu?
Nunca. Sonho com o mar, mas nunca com o que vi nos navios.
Você vai participar de novo?
Sim, vou embarcar em alguns dias. Eu sinto que tenho que fazer isso.
Caterina, onde está a humanidade?
Difícil de dizer. Nas pessoas que conheci nos navios. Em pessoas que ajudam os outros. Que não desanimam. Ali, nelas, está a humanidade.