03 Agosto 2022
Aos 79 anos, o escritor, jornalista, advogado e ex-político Sergio Ramírez retorna ao exílio, “um estado de espírito”, como ele mesmo define, que já viveu quando iniciava sua vida adulta. Então, refugiou-se na Costa Rica para se proteger da ditadura de Anastasio Somoza. Agora, faz isso na Espanha para ficar a salvo do mandado de prisão emitido pelo presidente Daniel Ortega. O mesmo homem com quem lutou na guerrilha sandinista e de quem foi vice-presidente no primeiro Governo, após a derrubada do déspota.
Em 2018, o governo de Ortega e sua vice-presidente e esposa, Rosario Murillo, reprimiram os protestos dos cidadãos com tiros, prisões, desaparecimentos e exílios forçados. Em apenas três meses, ao menos 355 pessoas foram assassinadas por agentes do Estado, segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Desde então, o autoritarismo vem crescendo por meio da supressão da separação entre os poderes do Estado, bem como com a aprovação de diversas leis dedicadas a punir a oposição política.
O golpe definitivo para o que restava do regime democrático ocorreu com as eleições presidenciais de 2021: sete candidatos foram presos, junto com dezenas de políticos e políticas, jornalistas, profissionais independentes, empresários e membros de governos anteriores.
Em meados de julho, conversamos com Sergio Ramírez, durante o festival literário Semana Negra, de Gijón [Espanha].
A entrevista é de Patricia Simón, publicada por La Marea, 02-08-2022. A tradução é do Cepat.
Como está se sentindo no exílio?
O exílio retira de você afetos que são invisíveis até você perdê-los. Você os tem em seu interior, mas não os vê: sua casa, seu escritório, a praia que deseja frequentar no final de semana, a cidade natal que você não sabe quando poderá novamente visitar, os amigos que não pode mais visitar... Tudo isso o exílio retira de alguém.
Aqui, na Espanha, cabe um processo de reconstrução da vida que começa abrindo meu próprio espaço para o trabalho literário. E, a partir daí, como faz o coração infartado, cabe ir reconstruindo os tecidos sanguíneos para poder bater novamente.
E quando acredita que poderá voltar à Nicarágua?
Assim que possível, e falo isso com muita esperança. Sei que será muito mais cedo do que tarde. E desfrutaremos esse retorno porque significará que na Nicarágua houve uma importante mudança política e social que conduzirá o país a um espaço de liberdade e democracia. Acredito que essa seria a única forma em que poderíamos viver todos juntos na Nicarágua.
Quais são os pontos fracos do regime nicaraguense, para você acreditar que logo poderá cair?
A grande fragilidade do regime nicaraguense é a acumulação interminável, incessante, de poder. Justamente, o que considera sua grande força: Ter eliminado a autonomia e independência das instituições, ter concentrado o poder militar, policial e de segurança em apenas uma mão. O fato de que na Justiça, na Promotoria, com os procuradores, tudo seja feito por meio de uma chamada telefônica.
Toda semana, um deputado apresenta uma lista com 70, 80, 90 associações, entidades privadas, ONGs que ficam ilegalizadas. E parece que é uma lista enviada pela cúpula e que ele apenas lê. De fato, a Assembleia Nacional já cassou quase 1.000 organizações não governamentais e entidades privadas.
Na Nicarágua, um juiz recebe a sentença preparada, um promotor a ordem de processar alguém que, por sua vez, a polícia recebeu a ordem de perseguir ou prender. Um agente de migração recebe a ordem de confiscar o passaporte de alguém, um cônsul de impedir que alguém entre no país e uma companhia aérea de não deixar que uma pessoa entre em um avião... Ordens, ordens, ordens. Na Nicarágua, o Estado desapareceu e foi substituído por uma só vontade.
A concentração excessiva de poder gera fraqueza porque suprime a base de sustentação do poder. Além disso, para que seja duradoura, tem que se basear em um consenso mínimo da sociedade, e na Nicarágua não há nenhum. Houve uma ruptura com a Igreja Católica, já existem dois padres presos, que não foram levados para a prisão acusados de subversão, mas, sim, de estupro, agressão, com a invenção de tais formas de acusações. As Irmãs de Madre Teresa de Calcutá foram expulsas do país. Seus centros de assistência social foram confiscados.
O líder dos empresários e dos bancos está preso. E há uma inimizade com a classe média, que agora está migrando em massa para os Estados Unidos, para a Costa Rica. E ocorre o isolamento internacional como reação à brutalidade do regime e como resposta do próprio regime, que se distancia de qualquer crítica, mesmo que seja daqueles que poderiam ser seus aliados, como os presidentes do México e da Argentina. Sem falar do rompimento com a Espanha e a União Europeia, e a fantasia de pensar que o mundo pode girar apenas em torno da Rússia e do Irã.
Quais foram os sinais de autoritarismo de Daniel Ortega e Rosario Murillo, antes da repressão aos protestos de 2018?
Há duas etapas muito diferentes. A primeira, na qual Ortega se consolida entre sua própria força política apelando à revolução, após a derrota eleitoral de 1990. Apresenta-se como o único líder capaz de unir as bases do sandinismo. É uma liderança muito precária, mas não há mais ninguém que possa se encarregar de reunir os restos desse partido.
A segunda etapa foi a aliança com sua esposa. Quando sua filha Zoliamérica Narváez o acusa de estupro, Murillo a chama de mentirosa, abandonando-a e apoiando seu marido em troca de uma parte do poder.
E a terceira é a aliança com a direita que representa Arnoldo Alemán, ex-presidente que foi preso por lavagem de dinheiro e corrupção. Ortega consegue seu apoio em troca de libertá-lo graças ao fato de já controlar os juízes. Em troca, Alemán o apoia na reforma constitucional que reduz a porcentagem de votos necessários para ser eleito presidente no primeiro turno ao teto eleitoral de Ortega.
Depois, sua aliança com a Igreja Católica, representada pelo cardeal Obando y Bravo, seu grande inimigo, e que então faz o seu casamento e lhe oferece a comunhão todos os domingos. E, por fim, seu grande pacto com a empresa privada e o grande capital. Ortega nunca fez uma reforma tributária, os bancos jamais pagaram impostos. O acordo era: vocês façam o dinheiro que quiserem, enquanto eu me encarrego do tema político.
Contudo, em 2018, o regime ultrapassa todos os limites com sua repressão, termina o pacto com a empresa privada, com a Igreja Católica, com a morte do cardeal Obando y Bravo, e com o ex-presidente Alemán, porque não lhe serve mais. De fato, sua esposa agora está presa acusada de sedição. Tudo isso faz parte do isolamento vivido pelo regime.
E diante desta concentração de poder e crescente autoritarismo, por que os cidadãos não se revoltaram até 2018?
Na Nicarágua, houve uma grande ingenuidade coletiva em acreditar que Ortega era atraente para a democracia, que apoiá-lo significaria suavizar e equilibrar suas posições. Pelo contrário, nunca esteve em seus planos seguir o jogo de seus aliados, mas usá-los.
Muitos analistas defendem que o plano do regime é o de que, quando Ortega morrer, Murillo o substitua. É viável?
Tudo está direcionado para que sua esposa herde o poder e que, a médio prazo, seja substituída por seu filho Laureano Ortega, cantor de ópera e empresário. Até agora, o Exército, a Polícia, as forças paramilitares e os empresários – isso é muito importante – os apoiaram. Também é preciso ter presente que vem crescendo uma força emergente de empresários que dirigem negócios em torno da família Ortega, os maiores empresários do país, e que controlam a mineração, a energia, o gás, a eletricidade...
E mesmo assim, você tem esperança de que logo acabem caindo.
É que é um esquema que tem pés de barro.
Uma das associações mais reprimidas, desde os protestos de 2018, foi a do jornalismo. Mas, mesmo do exílio, há muitos jornalistas dedicados a informar sobre as violações de direitos fundamentais que ocorrem na Nicarágua.
Hoje, o jornalismo de resistência é feito de fora do país. As pessoas na Nicarágua sabem o que está acontecendo em seu país graças às informações produzidas por jornalistas do exílio, graças a correspondentes e cidadãos que enviam vídeos e dados de forma anônima. Divulgam informações pelas redes sociais e o regime não pode cortá-las porque não pode arcar com o custo social de um apagão informativo.
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“A grande fragilidade do regime nicaraguense é a acumulação interminável de poder”. Entrevista com Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU