18 Julho 2022
“Francisco pode afirmar que a Igreja, apesar da contradição e da cumplicidade, sempre foi indígena. A verdadeira Igreja em Turtle Island, um nome indígena para a América do Norte, não é a das escolas residenciais, mas a Igreja anticolonial muitas vezes ignorada e até mesmo perseguida que cresceu entre os povos indígenas desde o início”, escreve Damian Costello, diretor dos estudos de pós-graduação na Comunidade de Aprendizado Indígena NAIITS e diretor do grupo Indigenous Catholic Research Fellowship, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 18-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Obviamente, o Papa Francisco está vindo para o Canadá, dos dias 24 a 30 de julho, para enfrentar o envolvimento da Igreja Católica no sistema de abusos em escolas residenciais e o dano que isso infligiu nas comunidades First Nations.
Muitos povos indígenas querem que Francisco peça desculpas pelos que aconteceu nas terras indígenas e se comprometa à ação concreta que promova a cura e as relações corretas.
Essa talvez seja a parte mais fácil. O trabalho que não vemos – e talvez o mais difícil que enfrenta Francisco – é com o restante de nós, os não-indígenas.
Nós ainda estamos lutando com a realidade que a “questão indígena” é a questão canadense e estadunidense. Ou que nossa nação existe, gostemos ou não, devido às relações com os povos indígenas.
Desde a primeira tentativa de assentamentos, os povos não-indígenas não teriam sobrevivido na América do Norte sem a ajuda crucial dos indígenas. Nós fizemos tratados com as comunidades indígenas e por isso as nossas comunidades se tornaram viáveis. Nós talvez tenhamos sobrecarregado os deveres das comunidades indígenas e se abstido dos nossos, mas esse relacionamento ainda existe.
Por mais de 500 anos, esse relacionamento tem sido unilateral. Nós temos feito os povos indígenas entrar em nossas sociedade e culturas e existir em nossos termos. É tempo para nós fazermos o mesmo e reciprocamente. Com a vinda ao Canadá para enfrentar o legado do sistema de escolas residenciais, Francisco pode modelar essa reversão.
A maioria de nós teme assumir nosso relacionamento com as comunidades indígenas de forma séria, como se nós estivéssemos trancados em um paradigma decadente. Nós tememos perder muito se mantivermos nossas promessas: terra, dinheiro... O maior de todos, nós tememos perder a moral altiva que nós lemos em nossas histórias nacionais.
Papa Francisco junto a delegados indígenas das Primeiras Nações do Canadá durante uma reunião no Vaticano (Foto: Vatican News)
Francisco pode nos ajudar a superar nosso medo e ver tudo o que temos a ganhar por meio de um relacionamento autêntico. É disso que trata o conceito de tratado, de acordo com o reverendo Ray Aldred, um teólogo Cree e diretor do Programa de Estudos Indígenas da Escola de Teologia de Vancouver. Em sua palestra de 27 de abril “Indigenizar o Canadá: reconciliação como abraço de uma nova identidade”, Aldred explicou que um tratado não é o estabelecimento de linhas na areia separando as partes em conflito, mas uma espécie de cerimônia de adoção, ou “tornar parentes”.
Aldred aponta para a teologia do Alce Negro, líder indígena Sioux que está em processo de beatificação, em “The Sacred Pipe” (1953), que diz que a criação de parentes é “um reflexo daquela relação real que sempre existe entre o homem e Wakan-Tanka, o Criador”. Ao se tornarem parentes dos povos indígenas, argumenta Aldred, os recém-chegados seriam incluídos na relação dos povos indígenas com a terra, todos os seres que a habitam, e aprenderiam a viver em harmonia.
Robin Wall Kimmerer revela isso em seu livro best-seller “Braiding Sweetgrass”. Ao honrar as responsabilidades para com as comunidades indígenas e aprender respeitosamente com as formas indígenas de conhecer, os recém-chegados podem começar a entrar em um “pacto moral de reciprocidade” com todo o mundo natural. Essa aliança leva ao florescimento de humanos e não-humanos, onde “as pessoas e a terra são um bom remédio um para o outro”.
Em vez de medo e perda, Francisco pode nos mostrar essa bela visão de possibilidades. Ao reconhecer o relacionamento e construir padrões de expiação por nossas falhas, podemos superar nossas limitações culturais, como nossa tendência de reduzir a terra a um recurso, como fazemos da economia o árbitro final na tomada de decisões e nossa desconexão do relacionamento com toda a vida ao nosso redor.
Podemos passar de imigrantes em uma terra estrangeira para nos tornarmos, nas palavras de Kimmerer, “naturalizados no lugar”.
À primeira vista, isso pode parecer uma tarefa impossivelmente alta. Mas olhe ao redor e você verá um número crescente de exemplos de como as organizações da igreja estão iniciando essa jornada compartilhada de relacionamento correto. Os jesuítas em Dakota do Sul devolveram 2,12 km² aos Lakota em 2017 e iniciaram um processo de Verdade e Cura na Red Cloud Indian School, um antigo internato, liderado por Maka Black Elk. As Irmãs de São José, de Brentwood, Nova York, estão encontrando maneiras de usar seu campus de mais de 1 km² para fazer parceria com a nação indígena Shinnecock.
Dakota do Sul (Foto: TUBS | Wikimedia Commons)
Há muito trabalho a ser feito do lado do Vaticano – abordando significativamente o legado da Doutrina da Descoberta, por exemplo – mas Francisco deve estar confiante nos bens do papado.
O Papa João Paulo II começou essa reversão no cenário global com suas visitas à América do Norte e à Austrália na década de 1980. “Cristo, nos membros de seu Corpo, é ele mesmo indígena”, proclamou João Paulo II durante sua visita ao Canadá em 1984. Ele também se permitiu ser manchado, ou cerimonialmente purificado com a fumaça de uma erva sagrada, um ato revolucionário que afirmou a espiritualidade indígena dentro de uma Igreja que já participou de sua perseguição.
Francisco pode levar isso adiante e afirmar que a Igreja, apesar da contradição e da cumplicidade, sempre foi indígena. A verdadeira Igreja em Turtle Island, um nome indígena para a América do Norte, não é a das escolas residenciais, mas a Igreja anticolonial muitas vezes ignorada e até mesmo perseguida que cresceu entre os povos indígenas desde o início.
Muitos conhecem a história da Virgem de Guadalupe, a mãe de Jesus que apareceu como indígena a outro indígena que trouxe a mensagem para a Igreja colonial. Menos conhecida é a história de seu contemporâneo, Cacique Taino Enriquillo, um católico devoto que liderou uma bem-sucedida rebelião de 15 anos contra a ocupação colonizadora do que hoje é o Haiti e a República Dominicana.
Um futuro indígena está surgindo em todo o mundo e Francisco pode nos mostrar que somos chamados a fazer parte dele, destacando o testemunho dos cristãos indígenas.
O Alce Negro teve uma visão de Cristo na Dança do Fantasma, que tem o remédio para curar todas as feridas da terra, mas permanece conosco para sempre na Eucaristia. A Eucaristia é o tratado do Criador conosco, a grande cerimônia de criação de parentes que promete elevar-nos à vida divina, o que Aldred descreve em seu artigo “A Terra, Tratado e Espiritualidade: identidade comunal inclusiva da terra” como a modelo de Espiritualidade do Tratado.
Haverá toda uma gama de respostas, mas os povos indígenas estarão ouvindo Francisco. Que o Espírito abra os corações de todos nós para abraçar nossa identidade como Pessoas do Tratado e a promessa que ela traz para o futuro.
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Visita do Papa Francisco ao Canadá: tempo para abraçar o futuro indígena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU