Moradores da Comunidade Boa Esperança, no município de Manicoré (AM), vivem uma dualidade: enquanto parte participa de projetos de desenvolvimento sustentável, outra encontra no garimpo sua fonte de renda.
A reportagem é de Bruna Martins, publicada por ((o))eco, 11-07-2022.
Ao chegar no porto da Comunidade Boa Esperança, localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Amapá, no município de Manicoré (AM), somos recepcionados pelo barulho de ferramentas, quebrando o silêncio das águas, e a imagem de uma grande estrutura de balsa de garimpo sendo construída por moradores da comunidade. Boa Esperança, que historicamente possuía o extrativismo vegetal e a agricultura como fonte de renda, vive hoje uma dualidade: enquanto parte dos moradores participa de projetos de desenvolvimento sustentável, outra encontra no garimpo uma importante fonte de renda.
Mapa localizando a região de Manicoré (AM). (Foto: FamilySearch)
No estado nortista, que acolhe parte da maior bacia hidrográfica do mundo, a Amazônica, a principal forma de se transportar é por meio de barco, através da profusão de rios que entranham toda a superfície da região. Assim seguimos o caminho para chegar à Boa Esperança: do porto de Manicoré, com diversas embarcações e flutuantes atracadas à beira, até a comunidade, em uma viagem subindo cerca de 5,6 km do rio Madeira. Em um percurso de aproximadamente meia hora, em companhia dos profissionais da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), que trabalham em prol da conservação e cadeias de produção sustentáveis, fomos em direção à comunidade, que recebe um dos seus projetos. No percurso, somos arrebatados pelas belas paisagens do rio e das árvores nas suas extremidades, no entanto, o que realmente chama a atenção são as mais de 60 balsas de garimpo que aparecem durante todo o trajeto, escancarando um contraste na região.
Homens com suas famílias, jovens e crianças são vistos nas balsas de extração mineral, que se tornaram um ambiente familiar, onde eles riem e conversam. Quando passamos, olham com apreensão para os barcos com pessoas de fora segurando câmeras que os acompanham. Com as dragas em atividade, o rio, que já é barroso, fica em uma coloração mais amarelada, ironicamente uma cor que lembra o ouro que todos eles sonham encontrar.
Estrutura de balsa de garimpo sendo construída por moradores da comunidade Boa Esperança, em Manicoré (AM). (Foto: Bruna Martins | ((o))eco)
Durante os últimos dois anos e meio em que o mundo lidava com as consequências da pandemia, as comunidades ribeirinhas no interior do Amazonas enfrentaram restrições e desafios particulares. Em 2020, normas de combate à disseminação da Covid-19, como o Decreto nº 42.061, suspenderam a circulação de barcos no estado. Segundo Marilson Rodrigo, 41 anos, Coordenador Regional da FAS e responsável pelo projetos da organização no rio Madeira, essa foi a virada de chave para que agricultores desistissem de suas plantações e caíssem nas graças do garimpo ilegal.
“Em função de alguns barcos deixarem de fazer os trajetos por conta da pandemia, eles não levaram produção, então a produção de alguns agricultores ficou na beira do rio, sem poder vender porque não tinha transporte. Somada à extração do ouro, que não para de se comercializar, e ainda não tem declaração, muitas pessoas se viram motivadas a ir para o garimpo e logo diminuiu a agricultura”, conta o coordenador.
Esse foi apenas um dos motivos. Marilson explica que o aumento dos preços dos insumos de produção – além das fortes chuvas que acometem a Bacia Amazônica nos últimos anos, que alagam a terra e impossibilitam a plantação e o roçado – também possuem sua parcela de culpa.
Mais de 60 balsas de garimpo são vistas em atividade em trecho do rio Madeira, próximo à RDS Rio Amapá. (Foto: Bruna Martins | ((o))eco)
Consequentemente, a dinâmica econômica das comunidades ribeirinhas localizadas nas beiras do rio Madeira mudou bastante nos últimos dois anos. A forma de sustento dessas pessoas, que precisavam levar seus produtos para vender em outras comunidades ou nas cidades, foi prejudicada. Com isso, observou-se uma queda drástica nas produções. Manicoré, município a 331 km de Manaus que recebe a plantação dos ribeirinhos em feiras e carrega a fama de “terra da melancia”, quase não produz mais a fruta.
De acordo com os dados recolhidos pela FAS, em 2019, o número de famílias que realizaram a produção de melancia na RDS Rio Amapá chegou a 23, com uma renda bruta de R$ 110.160,00. Em 2021, apenas 7 famílias realizaram o plantio, e a renda total da safra caiu para R$ 81.440,00. Marilson conta que a tendência é diminuir ainda mais.
Para essas pessoas que precisaram encontrar outra fonte de sustento, o garimpo apareceu trazendo uma oportunidade.
A garimpagem ilegal é consolidada como padrão histórico da atividade nos rios amazônicos, por não sofrer quase ou nenhuma ação dos órgãos reguladores que deveriam atuar no combate e controle da ilegalidade. Um exemplo disso é o episódio de novembro de 2021, quando mais de 300 balsas foram identificadas lado a lado em outro trecho do Rio Madeira, no entorno da comunidade Rosarinho, no município de Autazes (AM), demonstrando a convicção da impunidade referente à atividade.
De acordo com análise do MapBiomas sobre o garimpo no Brasil, os estados da Amazônia Legal concentram 93,7% (cerca de 101 mil hectares) da área garimpada brasileira. Mais de 50% são potencialmente ilegais, por ocorrerem dentro de Terras Indígenas (TI) e Unidades de Conservação (UC), segundo Nota Técnica sobre o rio Madeira da mesma organização. O Amazonas, em específico, é o 9º estado do país com maior área garimpada, com 242 hectares em 2020.
A área de garimpos terrestres na bacia do rio Madeira, que vai além do Amazonas, banhando também Rondônia e partes dos países Bolívia e Peru, deu um salto de 3.753 hectares em 2007 para 9.660 em 2020, uma expansão de 5.907 hectares que é recorde histórico da série de dados.
Esses dados são ilustrados pelos comentários das pessoas da comunidade, que relembram como antes da pandemia da Covid-19 o garimpo não era tão forte como é atualmente.
A reportagem de ((o))eco procurou a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) do Amazonas para saber se a pasta conhecia a situação encontrada no rio Manicoré. Em resposta, a Sema respondeu que “a atividade garimpeira não está sendo realizada dentro da referida Unidade de Conservação (UC). Ocorre em área de gestão federal, na calha do rio Madeira, cabendo ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) tomar as devidas providências”. A reportagem também entrou em contato com o Ibama, mas não obteve resposta até o fechamento do texto (caso o órgão responda, será incluída uma atualização).
A secretaria afirmou em nota ainda, que apoia a RDS Rio Amapá por meio de projetos e iniciativas de educação ambiental e conservação, e no acompanhamento constante de reuniões do Conselho Gestor da reserva. “A última reunião do referido Conselho ocorreu no dia 23 de junho, tendo como pauta o acordo de pesca da RDS. Na ocasião, a pauta do garimpo não foi citada pelos comunitários”, esclarece o texto da Sema (leia na íntegra).
A reportagem foi até a comunidade Boa Esperança para conhecer o projeto “Solar Community Hub” (SCH – Centro Comunitário Solar, em tradução livre), lançado no dia 15 de março de 2022 pela FAS, em parceria com a empresa de tecnologia Dell. Lá foi instalado um contêiner de transporte conectado à internet, que oferece atendimento de saúde por meio de telemedicina, monitoramento ambiental, acesso a habilidades de alfabetização digital e treinamento para jovens e adultos, entre outras atividades de educação.
Em um ambiente onde a agricultura e extrativismo perdem força para o garimpo, o projeto chegou como uma possibilidade, especialmente para os jovens.
William Hipy, 21 anos, é morador da comunidade Vista Alegre, também na RDS Rio Amapá, e frequenta Boa Esperança para participar do projeto. Ele é estudante de história e ficou sabendo do processo de seleção para se tornar monitor ambiental. Hoje ele atua nessa área e, de forma tímida, porém apaixonada, conta como é poder trabalhar no projeto.
“Foi uma oportunidade para minha vida, como estudante. Uma porta de entrada para eu continuar meu sonho e através desse trabalho estou muito feliz na parte de monitoramento”, relata.
A palavra “sonho” é citada várias vezes pelo rapaz. Ao ser questionado sobre que sonho seria esse, ele explica: “Meu sonho é continuar na FAS como monitor e algum dia assinar minha carteira e seguir em frente assim, subindo. Se Deus quiser, terminar minha faculdade de história e ingressar na área ambiental na nossa região”.
Morando no interior do Amazonas, as pessoas tradicionalmente encontram seus trabalhos na terra, no rio e na floresta. No entanto, para a juventude, isso não é mais atrativo. Por ser um trabalho manual e pesado, muitos perdem o interesse, e para quem mora dentro da floresta amazônica, rodeado de rios, as oportunidades não chegam no primeiro barco. Para conseguir outras alternativas, elas teriam que sair de sua comunidade, ir até Manicoré ou Manaus para estudar ou trabalhar longe da família, coisa que William não almeja, como ele mesmo diz.
O sonho de William Hipy é ter a oportunidade de melhorar sua qualidade de vida, sem precisar sair de sua comunidade ou se maltratar com trabalho pesado. (Foto: Bruna Martins | ((o))eco)
“No interior o trabalho é mais na parte de agricultura, fazendo farinha, plantando açaí ou banana e, para falar a verdade, eu não gosto muito. Eu gosto muito do interior e da minha comunidade, mas sempre falei, desde pequeno, que não quero viver daquele trabalho, não que não seja um trabalho digno, é um dinheiro que você vai conseguir com seu próprio suor e eu respeito muito, mas eu quero procurar uma forma de viver melhor, sem me maltratar; Eu quero estar aqui no meu interior, mas quero outras formas de crescer na vida com mais facilidade de trabalho. Eu não penso em sair e trabalhar em uma cidade, eu penso diferente. Quero morar aqui, minha família mora toda aqui, eu quero ficar perto da minha família. Tô fazendo faculdade online, tenho acesso a internet no interior, e só penso em crescer ajudando minha comunidade”, conta.
William representa uma juventude que mora na área rural do Amazonas e busca melhorar sua condição de vida, mas perto da comunidade que o acolheu durante toda a vida. O seu sonho é realizar isso, ter a carteira assinada. Organizações como a FAS trazem essa oportunidade, ao mesmo tempo em que os engajam na pauta ambiental. Enquanto conversávamos sobre isso, olhávamos para a paisagem do rio em frente à comunidade, onde quatro balsas de garimpo realizavam a extração de ouro, mostrando os dois mundos que convivem em Boa Esperança.
O projeto da FAS é coordenado por Fabiana Cunha, Gerente do Programa de Educação para a Sustentabilidade da organização. Ela explica que escolher Boa Esperança para receber o projeto foi uma atitude estratégica, por ter uma localização de frente para o rio, o que facilita o impacto também nas outras comunidades da região, além de possuir muitos jovens estudantes. Para ela, é uma tentativa de manter a juventude longe do garimpo.
“Ouvir o apelo das comunidades e oportunizar para que os jovens tenham essa possibilidade foi um dos principais motivos para que o SCH fosse implementado na região. Por fim, um dos desafios do projeto é possibilitar que os jovens possam sonhar com um futuro longe do garimpo”, explica a coordenadora.
Marilson Rodrigo, coordenador regional da FAS, acrescenta sobre a dificuldade que as pessoas que vivem na região têm para receber assistência, o que facilita a permanência das atividades ilegais.
“Não podemos ignorar que a criminalidade está levando os jovens. Vamos falar da realidade social que o Brasil enfrenta, a criminalidade chegou nas comunidades da Amazônia. Em uma capital tem todo o aparato de saúde, segurança, de assistência social para cuidar disso, e no meio rural? Se nem a educação chega como deveria chegar, imagina a segurança… São desafios que a gente tem com a juventude da Amazônia profunda”, pondera Marilson.
Comunidade Boa Esperança, Manicoré, no Amazonas. (Foto: Bruna Martins | ((o))eco)
Luziete Mar, de 24 anos, representa bem a relação antagônica entre sustentabilidade e garimpo ilegal existente na região. Ela entrou no projeto como monitora ambiental e agora é supervisora geral. Seu marido, por outro lado, trabalha em uma balsa no meio do rio, extraindo ouro.
“Ele optou ir para o garimpo por uma questão financeira, aí eu falo ‘você trabalha em um canto e eu trabalho em outro’. Cada um respeita e ele sempre me apoia nos meus trabalhos, por mais que ele esteja fazendo algo do tipo errado, fazendo a mineração de ouro. Por mais que seja proibido, é uma forma da gente receber dos dois lados para a gente sobreviver mesmo”, ela explica.
O marido é um ano mais novo, tem 23 anos, e Luziete contextualiza que ele trabalhava em uma empresa em Manaus, mas durante um tempo houve muita divulgação de ouro e, por isso, ele foi atraído pela atividade e montou sua balsa, que está em atividade desde o ano passado.
A presença do garimpo nas comunidades no decorrer do rio Madeira tornou-se algo natural. Em qualquer situação em que o tema venha à tona, várias pessoas mencionam como o tio, pai, irmão ou outro familiar está envolvido. Não é algo a se esconder, até porque a atividade é compreendida por todos como uma forma de sobrevivência financeira, em especial diante das crises sanitária e econômica que assolaram o mundo. Em uma região onde chega pouca assistência, é a alternativa que encontraram.
Para ser líder da comunidade Boa Esperança, é preciso assumir muitos papéis, e a Maria Ana, de 55 anos, aceitou todos eles. Ela é presidente da Associação de Moradores, líder comunitária e também da igreja de Boa Esperança. Com seu marido e filhos, ela trabalha com a extração de açaí e produção de farinha. Carismática e hospitaleira, ela me chamou para almoçar junto com sua família. E enquanto servia um prato com carne cozida, macaxeira e bastante farinha da própria produção, explicou como a presença do garimpo é positiva para a venda dos produtos dos agricultores e extrativistas, porque possibilita a circulação de dinheiro.
“Quando eles param o garimpo, fica ruim para nós, porque quando o garimpo tá bem de ouro, a gente também vende bem. Nós temos a feira, todo primeiro sábado do mês em Manicoré, quando o dinheiro não circula, a gente chega lá e terminamos de vender meio-dia. Quando tá bom e o dinheiro circula, a gente chega lá e 8h da manhã já vendeu tudo”, descreve a líder comunitária.
Maria Ana, de 55 anos é líder comunitária em Boa Esperança. (Foto: Bruna Martins | ((o))eco)
Maria Ana esclarece ainda que a maioria dos meninos que trabalham nas balsas de garimpo não são os donos das embarcações, são apenas a mão-de-obra. “Eles vão lá e ganham uma porcentagem do valor na semana”, explica.
Monitores ambientais do projeto da FAS em parceria com a Dell. À direita, Luziete Mar, supervisora geral do projeto. (Foto: Bruna Martins | ((o))eco)
Apesar de ajudar na circulação de dinheiro, a presença do garimpo no rio Madeira é perigosa para os moradores.
O mercúrio é utilizado na atividade garimpeira para iniciar a aglutinação química do “pó de ouro” (característica do ouro amazônico), criando a chamada “amálgama de ouro”. A utilização do metal pesado é comum em áreas de garimpo, e causa poluição nos rios e nos solos. “O garimpo de ouro, além de acarretar problemas como a descaracterização da morfologia original do terreno, a supressão da vegetação e o assoreamento dos cursos d’água, pode gerar rejeitos contendo mercúrio metálico”, descreve trecho do artigo Garimpo e mercúrio: impactos ambientais e saúde humana, publicado em 2006 na revista científica Universitas: Ciências da Saúde.
Ainda não há estudos que permitam comprovar impactos do garimpo com mercúrio nas comunidades da RDS Rio Amapá. No entanto, alguns moradores já reclamaram que, em época de seca do rio, que é quando o garimpo é mais intenso, muitas pessoas ficam doentes, além das ilhas de areia que se formam no rio.
A moradora da comunidade Água Azul, também da RDS Rio Amapá, Raimunda de Souza, de 26 anos, expõe as mudanças vividas pela comunidade. “Ano passado, aqui se criou várias ilhas de areia devido ao garimpo e nunca tinha acontecido, ficou realmente muita areia aí devido à quantidade de balsa que ficou ano passado. Tem ano que dá doença né, diarreia, vômito, é mais nas crianças em época de seca, mas do ano passado até agora ainda não deu”, conta.
A comunidade Boa Esperança representa a dualidade de quando dois mundos opostos se encontram: um projeto de sustentabilidade em um container equipado de tecnologia, montado de frente para o rio Madeira, onde só no limite daquela paisagem trabalham quatro ou cinco balsas garimpeiras.
A ilegalidade e as consequências da atividade são de conhecimento dos moradores que vivem na região, assim como as dificuldades sofridas nos últimos anos de pandemia, a falta de assistência e a limitada gama de oportunidades para a juventude. E, nessa impunidade que é a realidade do garimpo nos rios amazônicos, as pessoas vão para o meio do rio buscar seu sustento para o dia de hoje. Enquanto o Estado se mantém distante, o futuro se torna uma preocupação para depois.
É como pondera o jovem monitor ambiental, William Hipy: “A gente que trabalha nessa área sabe que é ilegal, traz danos para o meio ambiente e vai causar impacto, mas eu não posso dizer ‘é errado, não faz!’ porque às vezes é a única maneira de eles tirarem seu sustento para própria sobrevivência”. A reflexão mostra uma dicotomia que vai muito além de um duelo simplista entre bandidos e mocinhos e dá vislumbres de quão complexa se tornou a questão do garimpo na Amazônia.
Foto: Bruna Martins | ((o))eco
*A reportagem de ((o))eco viajou à convite da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).