11 Julho 2022
"Talvez não tenhamos percebido que 24 de fevereiro foi o divisor de águas das nossas vidas. Somos obrigados a fazer o exercício que esperávamos nos poupar: pensar sobre a guerra. Para não despencar no meio dela", escreve Lucio Caracciolo, jornalista e analista geopolítico italiano, diretor da revista Limes, em artigo publicado em La Stampa, 09-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muitos de nós, ocidentais, estamos cansados da Ucrânia, mas a Ucrânia não está cansada de nós. De Kiev lamenta-se o desencanto sinuoso da nossa opinião pública, prenúncio do desengajamento dos tomadores de decisão, hipersensíveis ao humor dos eleitores. A narrativa midiática da guerra como uma sequência de horrores fora de qualquer contexto e profundidade histórica, acompanhada de uma comunicação pública que, para acalmar os medos, muitas vezes acabou por omitir dados da realidade, contribui para o efeito de distanciamento primeiro, estranhamento depois. Alguns estão pensando em considerar apenas como "várias e eventuais" as tragédias que estão ocorrendo a poucas horas de voo de casa - e alguns minutos de míssil? - com o drama ucraniano e suas possíveis extensões por pelo menos uma geração.
A cortina não cai sobre um confronto de pesos pesados no meio da Europa como se fosse um drama da temporada. Nós italianos não podemos nos permitir isso, pois já abrigamos uma grande comunidade ucraniana em crescimento forçado e entre os atlânticos não nos destacamos por credibilidade militar. Podemos não ter notado, mas no confronto em curso estamos com Kiev, que armamos e financiamos de forma efetiva. Contra Moscou, que de fato nos rotula de "país hostil". Marca estendida também aos que apoiam a Rússia por sua inclinação político-cultural. E aos indiferentes. Na guerra, o inimigo não se deixa comover por tais detalhes. Se houver um alvo mais fácil de atingir do que outros por ser incapaz de retaliação, Putin o fará.
Nas frentes diplomática e econômica, somos extraordinariamente ativos. A Itália foi o primeiro país do mundo a traçar um roteiro para a paz, um esboço de quatro pontos discutido com estadunidenses, alemães e franceses. Não atual, passível de revisão, mas ainda assim, um ponto. Hoje arquivado, amanhã talvez recuperável como trilha de diálogo. Com algum atraso percebemos que não podemos nos permitir ficar isolados no âmbito euro-atlântico, onde cada sujeito busca seu próprio clube de referência.
O Euroquad informal em construção com França, Alemanha e Espanha, no qual se distribuem igualmente apertos de mão por cima da mesa e pontapés por baixo, é a base para recomeçar a afirmar o peso da Itália, potencialmente maior do que nós próprios pensamos (e este, a propósito, continua sendo o verdadeiro problema). A emergência ucraniana é um teste decisivo. Se perdermos este trem, seremos confirmados a ser um país à disposição alheia. Há pressa. Não apenas porque os russos estão avançando.
O estado ucraniano está tecnicamente falido. A moeda local (grívnia) está em queda livre, apesar do banco central aumentar a taxa de juros para 25% (sic). A inflação está se aproximando de 20%. As receitas fiscais tendem a zero. O Tesouro de Kiev precisa de 5 bilhões de euros por mês para evitar a falência. As ajudas ocidentais, das quais participamos com 110 milhões a fundo perdido enquanto prometemos emprestar mais 200, cobrem dois quintos das necessidades. A Ucrânia em breve terá uma necessidade urgente de gás da Europa, o que não conseguirá porque não teremos o suficiente nem para nós.
É imperativo estancar o sangramento e abrir a perspectiva de reconstrução. Entrelaçando diplomacia e economia na visão geopolítica fundada na persistência de um sujeito ucraniano neutro, mas ancorado ao Ocidente, provavelmente amputado em pelo menos um quarto do seu território, mas com acesso ao mar e ligado ao coração da Europa. Não a verdadeira paz; trégua longa.
É também um jogo de espelhos. A Itália se empenhou para conferir à Ucrânia o status de candidata à União Europeia. Gesto simbólico de que Kiev sentia grande necessidade. Draghi com grade esforço teve que persuadir Scholz e Macron, que não estavam muito entusiasmados. Mais um exercício de terapia ocupacional pró-europeia - estou fazendo, portanto, não importa o que - para permitir que aqueles que não podem tê-lo exibam um papel e justifiquem o salário dos delegados e tecnocratas de Bruxelas? Sim. Mas isso não é tudo. O objetivo é estender a abolição tarifária que permite à Ucrânia exportar gratuitamente para o mercado europeu por muitos anos. A este respeito, o candidato ucraniano já é membro.
Para explorar a inércia, o governo ucraniano convidou a Confindustria a explorar as oportunidades de um mercado que, apesar da destruição, continua dotado de estruturas e recursos atraentes, bem como mão de obra qualificada a custo muito baixo. Kiev está em condições tais que não se preocupa muito com sutilezas, de modo que se liberaliza a todo vapor para atrair investimentos estrangeiros. Uma operação arriscada, enquanto os embates continuam. Mas uma oportunidade para os mais rápidos, dispostos a arriscar hoje para colher amanhã. O objetivo geopolítico por ser lido entre as linhas: inserir a Ucrânia no espaço europeu. Não é tempo de pontes. Se o teu país é cortado pela cortina de aço, é possível ficar de um lado e esperar viver com o outro uma trégua geladíssima.
Apesar de tudo, Roma aceita a aposta por falta de alternativas. De fato, se a Ucrânia acabasse por afundar, haveria dois cenários. Primeiro, domínio de Moscou: na melhor das hipóteses, os ucranianos russificados poderiam contar com os capitais chineses para iniciar a reconstrução. Com os inevitáveis laços e lacinhos. O pior de todos os cenários possíveis, visto de Washington. Derrota humilhante com a qual nos adaptaríamos mal e mal a conviver, com olhar romano.
Segunda hipótese, puro caos: um país fragmentado, disputado e dividido entre a Rússia e outros vizinhos, um buraco negro disponível para máfias, terroristas e outros abutres. Considerando as crises latentes dos Bálcãs, além do Adriático a Itália faria fronteira com um império inimigo em expansão e/ou com uma extensão da Caoslândia. Semelhante à nossa frente sul, ao longo do Estreito da Sicília. Com discretas possibilidades de sermos engolidos na dupla espiral.
Talvez não tenhamos percebido que 24 de fevereiro foi o divisor de águas das nossas vidas. Somos obrigados a fazer o exercício que esperávamos nos poupar: pensar sobre a guerra. Para não despencar no meio dela.
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Moscou e Washington. A Ucrânia que virá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU