O povo curdo sem direitos

Foto: Roger Blackwell | Flickr CC

04 Julho 2022

 

"Infelizmente, é impossível ficar ao mesmo tempo do lado de nações que oprimem e dos povos que são oprimidos. Por isso é ilusório basear relações internacionais na oximórica intenção de 'desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos', apesar das Nações Unidas", escreve o matemático e lógico italiano Piergiorgio Odifreddi, ex-professor da Universidade de Turim e da Cornell University, em artigo publicado por La Stampa, 02-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

O artigo da Carta das Nações Unidas declara que o objetivo da organização é "desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos". Quem o escreveu provavelmente não era muito versado em lógica, ou mesmo apenas em bom senso, porque as palavras "nações" e "povos" não são de forma alguma sinônimas. Pelo contrário, como é óbvio, muitas vezes povos diferentes vivem na mesma nação e, da mesma forma, um único povo vive em nações diferentes.

 

Os curdos, por exemplo, são e se sentem como um povo, mas para sua infelicidade vivem principalmente na Turquia, Irã, Iraque e Síria. Sua autodeterminação levaria, portanto, à formação de um Curdistão unido, à custa das quatro nações mencionadas, mas nenhuma delas aceita ser desmembrada no território para satisfazer um artigo de uma carta, que porém todas elas assinaram. Também porque, caso contrário, o Iraque e a Turquia perderiam cerca de 20% de sua própria população, o Irã 10% e a Síria 5%.

 

Curdistão (Foto: U.S. Central Intelligence Agency | Wikimedia Commons)

 

Pelo contrário, todas as quatro nações consideram como "terroristas" os curdos que lutam por sua própria autodeterminação, política ou militarmente, e os perseguem e bombardeiam há décadas.

 

É por isso que uma grande diáspora curda vive em outros lugares: em particular, cerca de 100.000 curdos estão na Suécia e na Finlândia, onde há tempo receberam asilo e encontraram uma nova pátria. "Encontraram", porque agora a Turquia impôs uma virada nas políticas de acolhimento dos dois países ex-neutros, em troca da aceitação de não pôr veto à sua entrada na OTAN.

 

Em particular, o acordo trilateral assinado às pressas há alguns dias afirma que "como membros potenciais da OTAN, a Finlândia e a Suécia estendem seu total apoio à Turquia contra ameaças à sua segurança nacional". Além disso, "a Finlândia e a Suécia considerarão imediata e completamente os pedidos de deportação e extradição de suspeitos de terrorismo".

 

Nem é preciso dizer que, no dia seguinte, Erdogan imediatamente reapresentou seu pedido para mandar de volta à Turquia 33 "terroristas" que haviam recebido asilo na Suécia e na Finlândia: "Reapresentado", porque ele já o havia apresentado antes, mas as duas nações o haviam recusado até agora.

 

Até ontem Erdogan era considerado um pária e mantido à distância pela União Europeia, mas agora que desempenhou um papel decisivo para permitir o alargamento da OTAN para os dois países nórdicos, é possível apostar que a Turquia em breve entrará também na Europa. Por outro lado, há um mês já havia reproposto seu pedido de adesão, congelado há vinte anos, com o excelente argumento de que não há motivos para que a Ucrânia deva entrar apenas porque foi invadida pela Rússia: "Temos que esperar até que alguém nos invada também?”, perguntou sarcasticamente o ditador.

 

Áreas habitadas por curdos do Oriente Médio e da União Soviética em 1986 (Foto: U.S. Central Intelligence Agency | Wikimedia Commons)

 

Paradoxalmente, a referência à Ucrânia não é acidental. Também naquele país há povos que lutam há anos pela autodeterminação e sofreram da Ucrânia o mesmo tratamento que Turquia, Iraque, Irã e Síria reservaram aos curdos (ou, aliás, que Israel reservou para os palestinos, a Inglaterra para os irlandeses e a China para os tibetanos). Podemos não gostar, mas escolhemos por nos comportar com eles da mesma forma que ditadores como Erdogan: negando o direito à autodeterminação daqueles povos, em palavras sancionado na Carta das Nações Unidas, e afirmando ao contrário o dever da preservação da integridade territorial das nações que os hospedam malgré soi.

 

Infelizmente, porém, os direitos dos povos e os deveres das nações são incompatíveis entre si, e é preciso escolher entre eles. Os conservadores estão do lado da Turquia, Ucrânia, Israel, Inglaterra e China, e preferem manter a todo custo as fronteiras, quase sempre arbitrárias, que as velhas guerras ou algum cartógrafo imperial traçaram no passado. Os reformistas, por outro lado, estão do lado dos curdos, dos donbassianos, dos palestinos, dos irlandeses e dos tibetanos, e preferem reformar aquelas fronteiras e determinar racionalmente zonas homogêneas por natureza e cultura, muitas vezes à custa de lutar as novas guerras do presente e do futuro.

 

 

Infelizmente, é impossível ficar ao mesmo tempo do lado de nações que oprimem e dos povos que são oprimidos. Por isso é ilusório basear relações internacionais na oximórica intenção de "desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos", apesar das Nações Unidas.

 

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