01 Julho 2022
Após o memorando entre os países do norte da Europa e a Turquia: "O acordo coloca em discussão o direito de asilo e repudia também aqueles que lutaram contra o ISIS".
A entrevista é de Dario Olivero, publicada por Repubblica, 30-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
As fotos dos mártires que morreram na guerra pelo Curdistão, de um lado, e, do outro, a imagem da assinatura do memorando que efetivamente anula esses sacrifícios”. Se fosse para começar com uma imagem, se fosse a primeira página de uma graphic novel, Zerocalcare, cartunista italiano, depois de pensar bastante sobre isso, temendo a retórica ("mas eu juro que não há retórica nesse contexto", diz ele), seria essa. Não é a continuação de Kobane Calling, não tem nada a ver com aquilo sobre o que se está trabalhando agora: é apenas a melhor maneira para Michele Rech, o nome de batismo do cartunista romano, de falar sobre seu estado de espírito e daquele da comunidade curda diante da atual mudança no cenário internacional.
A Suécia e a Finlândia comprometeram-se a deixar de apoiar o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), considerado uma organização terrorista pela Turquia, Estados Unidos e União Europeia, o movimento islâmico gulenista, cujo líder, Fethullah Gulen, vive em exílio nos Estados Unidos, a milícia curda YPG (Unidade de Proteção popular), que lutou contra o ISIS na Síria ao lado dos EUA e do Ocidente, e seu braço político, o Partido da União Democrática (Pyp). Graças a esse compromisso e ao da extradição de refugiados políticos dos países nórdicos para Ancara, a Turquia derrubou o veto à sua entrada na OTAN.
Consequência da nova ordem estratégica que aos poucos vai se moldando a partir da guerra na Ucrânia. Zerocalcare não quer falar sobre Rússia ou Ucrânia ou qualquer outra coisa no cenário político atual. Mas dos curdos sim, em relação aos curdos não mede esforços. E é um bom começo. Porque, independentemente de onde se olhar, a questão é a mesma, o tabuleiro de xadrez, aliás, o dominó é idêntico.
Qual é a primeira reação de Zerocalcare, que gosta de falar sobre aqueles lugares e continuará falando?
Política ou como narrador?
Ambas, mas a política primeiro.
De grande preocupação. Esse memorando estabelece princípios muito graves. Questiona, por um lado, o direito de asilo. E, além do PKK, compromete-se a não apoiar mais nem mesmo parceiros confiáveis que nos ajudaram na guerra contra o ISIS e congela a discussão sobre a presença do Partido dos Trabalhadores Curdos nas listas internacionais do terrorismo. Leva de volta anos todo o processo de autodeterminação do povo curdo.
Uma vitória diplomática de Erdogan…
… E a premissa para uma invasão do norte da Síria pela Turquia. São todos passos preliminares que garantem o projeto de Erdogan. E isso não só anula o sacrifício de homens e mulheres que durou anos, mas também é um desastre do ponto de vista geopolítico: onde a Turquia chega, a Sharia retorna e as áreas que agora estão experimentando o progresso social, a abolição dos casamentos arranjados, o papel central das mulheres, desaparecerá nas áreas administradas por grupos jihadistas que poderiam controlar aquele território.
Mapa para situar a região (Arte: IHU)
Como acontece num conflito que se revela cada vez menos local, não lhe chama a atenção que uma decisão relativa ao extremo norte da Europa se reflita diretamente na área mesopotâmica?
Está tudo conectado: aparentemente os curdos não têm nada a ver com o que está acontecendo na Europa, mas de repente eles se tornam uma moeda de troca. Isso dá a noção de como se brinca na pele de quem está longe e mora em lugares que muitos nem sabem identificar no mapa.
Anteriormente você falava sobre sua preocupação como narrador. Qual é?
O fato de estarmos em um momento em que a opinião pública está tão polarizada que é difícil demover minimamente qualquer ideia: é como se houvesse um alinhamento total sobre todas as decisões da OTAN. E é incrível a tranquilidade e a facilidade com que se julga - e vejo isso sobretudo nas redes sociais - um acordo feito na pele alheia. Portanto a minha preocupação é conseguir contar essa situação para esta opinião pública.
Mapa mostra território reivindicado pelos curdos (Fonte: Wikimedia Commons)
Você fala de acordo na pele alheia. Você não acha que o mesmo poderia ser dito do povo ucraniano se algum dia fosse alcançado um acordo, que só poderia ter um grande custo em termos não apenas de vidas humanas perdidas, mas também de território?
Creio que expliquei várias vezes o quanto sou avesso à invasão russa, mas esse acordo sobre os curdos é uma barbárie. Somos vítimas de um alinhamento que ficou preso à Guerra Fria. Se nos preocupamos com a democracia, aquela dos curdos não é apenas democracia, mas em alguns aspectos também é mais avançada que a nossa. Então, por que não apoiar o seu experimento? Se olharmos para os interesses políticos e ideais e para as experiências em que apostar para dar estabilidade àquelas regiões, teríamos que olhar para eles. Percebo que seria uma escolha aparentemente fraca na frente diplomática, mas seria forte do ponto de vista político.
É evidente que os interesses estratégicos vão em uma direção muito diferente da diplomacia. Poderia ser muito mais simples que tenhamos vivido 70 anos de paz na Europa pensando que era uma conquista definitiva e esquecendo que a guerra é uma das condições da história humana?
Nunca pensei que a guerra fosse algo ultrapassado. Estava apenas nos poupando, mas não outras partes do mundo. É tudo um dominó, é impensável que os conflitos permaneçam locais. As guerras produzem refugiados, migrações, tensões, acordos e desestabilização.
E a política, ou melhor, a esquerda?
Eu sou o último que pode dar lições. Tenho dificuldade para entender o que é a esquerda: chamar-se esquerda? Usar determinados símbolos? Fazer referência à própria história? À justiça social? Sinto-me perdido em tudo isso.
A última fase da Covid criou lacerações gigantescas no tecido social e sobretudo na esquerda, provocando uma mudança nas relações. Paramos de ouvir uns aos outros e declaramos um estado de jihad mútua. E o levamos para fora e depois do Covid. Agora o sentimento comum não existe mais. Sinto-me mal por não ter espaços de elaboração coletiva em que nos reconheçamos.
Mapa mostra onde estão os curdos, que territórios ocupam hoje e quais as organizações que governam (Fonte: Aljazeera)
Mas antes da Covid e mesmo imediatamente depois, parecia que a política houvesse florescido em torno do grande tema das mudanças climáticas e o interesse pelo planeta estava no centro do debate público. Depois veio a guerra...
A guerra é uma grande oportunidade para se livrar de coisas incômodas, começando pela questão ambiental.
Traímos os curdos novamente?
Como diz um provérbio deles: 'Os curdos não têm Estados amigos, só têm as montanhas'.
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A ‘nova Otan’ e o jogo na pele dos curdos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU