30 Junho 2022
“Sou a favor da descriminalização do aborto porque o pensamento ocidental disse em seus melhores expoentes que a missão do legislador não é impor a moral, mas buscar o bem comum. Se isso foi dito em uma sociedade confessional, vinda do cristianismo, quanto mais valerá para uma sociedade plural e laica”, escreve o jesuíta espanhol José I. González Faus, em artigo publicado por Religión Digital, 26-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Uma das coisas mais sérias ditas por Simone Weil é que a Declaração dos Direitos Humanos é papel molhado se não estiver acompanhada por outra declaração, dos Deveres Humanos. Temo que isso esteja ocorrendo. E um exemplo disso pode ser o direito ao aborto, que retornou à pauta sobre a mesa pela decisão da Suprema Corte dos EUA.
Adianto que embora eu não acredite que exista um “direito” ao aborto (como explicarei mais adiante) sou totalmente a favor de uma “descriminalização” do aborto. Nesse caso, seria possível falar de um direito meramente “legal” e local (dependendo do país). Mas é claro que aqueles que invocam o direito ao aborto referem-se a um direito que costumávamos chamar de “natural” ou moral e, portanto, universal.
Sou a favor da descriminalização do aborto porque o pensamento ocidental disse em seus melhores expoentes que a missão do legislador não é impor a moral, mas buscar o bem comum. Se isso foi dito em uma sociedade confessional, vinda do cristianismo, quanto mais valerá para uma sociedade plural e laica! Com o exemplo que se dava então, descriminalizar a prostituição não significa que haja o direito de se prostituir ou de contratar prostituas, mas apenas que era o melhor para o bem comum (este exemplo pode não se aplicar mais hoje e, portanto, é atacado por muitas feministas; mas o que importa agora não é o conteúdo do exemplo, mas o modo social de proceder).
Dito isso, repito que defendo a descriminalização do aborto por razões de bem comum; e não irei a Madri para manifestar neste domingo, por mais que os bispos e e-mails me convidem a fazê-lo: os abortos seriam evitados muito mais fornecendo meios de comunicação do que promulgando leis. E também temo que essa tão alardeada manifestação, com tantos ônibus reunidos de toda a Espanha, não seja para defender o direito à vida, mas para atacar o governo. Por que não montam outra manifestação para protestar contra muitas coisas que acontecem nos Centros de Internação de Migrantes (CIEs, Centro de Internamiento de Extranjeros)? Quiçá desta eu participaria...
Dito tudo isso, quero proclamar que não acredito que haja direito ao aborto. Refiro-me a um direito que não é meramente positivo, mas natural e universal, como disse antes. Pois bem, se no final, como alguns dizem, se constatar que a razão definitiva dada pela Suprema Corte dos Estados Unidos para negar o direito ao aborto é que esse direito “não está contido na Constituição dos Estados Unidos”, estaríamos diante de um caso particular de um determinado país, do qual as consequências morais universais que se pretendem extrair não puderam ser extraídas. E a única coisa que se pode deduzir é que, quando eram crianças, os autores de tal enredo não deveriam ter recebido esse “progresso adequado” em seus boletins escolares...
Não acredito que haja o direito de eliminar uma vida com destino humano. Também sei, por ter lidado com eles, que mulheres que se dizem de esquerda, ateias ou crentes, compartilham dessa opinião mesmo não tendo audiência em nossa mídia.
Outras vozes protestam indignadas porque isso pode colocar em risco a vida de muitas mulheres. E acontece que este protesto acontece no mesmo dia em que 18 jovens morrem em Melilla (a somar às centenas de mortes em pequenas embarcações) por exercerem um direito muito natural, como o direito de emigrar do próprio país quando não se pode viver nele. Parece que algumas mortes são apenas notícias e outras são canalhices. E deve-se acrescentar que, na forma individualista como hoje administramos os direitos humanos, verifica-se que o mais ameaçado são os direitos de quem não tem voz e, portanto, não pode se defender: os direitos das crianças, dos bebês, de muitos seres humanos do mundo pobre.
A importância do caso que estamos tratando não é apenas a questão do aborto. É que parece ser um exemplo de como estamos degradando o sagrado sujeito dos direitos humanos, transformando-o em uma legitimação de nossos próprios desejos ou caprichos. Se o homem é um lobo para o homem, o direito é algo meu, que defenderei como a presa que um animal encontrou. Se o homem é “o ser supremo para o homem”, o direito é o apelo ao enorme respeito, que só vai querer resolver os conflitos dialogando.
Por outro lado, hoje, os mesmos que proclamam que não há direito ao aborto, defende ferrenhamente o direito de portar armas, ainda que depois ocorram todas as matanças que vimos nos últimos dias (e recordemos aqui as últimas palavras de Francisco: nenhum país tem o direito de possuir armas nucleares!). O “sacrossanto direito de propriedade” é o mais falseado e absolutizado, porque em verdade tem uma extensão reduzida, mas se dá uma extensão ilimitada. Porém, quem se atreve a tocar nisso? Porque não é precisamente uma zona erógena, mas uma zona supersensível.
Há também quem nos fale dos direitos “dos animais”, sem saber que direitos são propriedade apenas de seres pessoais e que a gravidade do pessoal é tão grande que uma pessoa pode ter deveres para com realidades desprovidas de personalidade. Mas uma coisa é dizer que uma pessoa tem a obrigação de não maltratar os animais (é por isso que eu aspiro a abolição da chamada “Festa Nacional da Espanha” por muitos atrativos que esta pode ter), e outra que os animais são sujeitos de direitos. Nem a Terra tem direitos e ainda assim o ser humano tem deveres muito sérios para com a Terra. Que, a propósito, tanto Putin quanto Biden estão seguindo os movimentos: porque agora vão construir gasodutos para levar o gás russo para a Ásia e o gás americano para a Europa (já que também se fala da Alemanha voltar ao carvão), e o que será a última facada fatal na terra, que romperá todas as aspirações e obrigações ambientais. Voltei a falar do direito de todo catalão a ser independentista: mas isso não serve para camuflar um “direito de decidir” inexistente que, do ponto de vista internacional, não é reconhecido por todos os juristas e, do ponto de vista nacional de vista, não é reconhecido hoje (e espero que seja um dia) pela Constituição espanhola.
Todas essas alusões pretendem colocar sobre a mesa a questão que me parece muito importante hoje: estamos desfigurando e prostituindo toda a questão dos direitos humanos, transformando-a em uma falsa justificativa de nosso próprio egoísmo? Porque, se for assim, estamos colocando em sério risco tanto a convivência humana quanto a chamada “casa comum” (que só merecerá esse nome se realmente houver convivência entre todos). Isso era o importante.
Voltando ao tema do aborto com o qual abrimos essas reflexões, gostaria de evocar novamente um antigo artigo de Gustavo Bueno, ateu convicto e confesso, que declarou anos atrás no jornal “Nueva España” que ele, como materialista e homem da esquerda, era contrário ao direito ao aborto. Mais tarde explicou em entrevista ao “El Mundo” (11-07-2009): que o problema do aborto não é uma questão de moralidade, mas de estupidez. Com a quantidade de meios que existem para não engravidar, quem engravida só pode ser por burrice (teria que se acrescentar ao que escreveu Gustavo: “ou porque é vítima” como é o caso de muitas prostitutas). Assim, o mal chamado direito ao aborto torna-se o “direito de transar irresponsavelmente”. E não é ruim às vezes dar outro nome às coisas, para ver se isso nos faz pensar um pouco.
Porque, como diria Graham Greene, talvez esteja aí “the heart of the matter” (“o cerne da questão”).
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Direito ao aborto? Artigo de José I. González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU