“Entrelinhas pontilhadas” parece ser o lamento de uma geração que ainda não decidiu quem quer ser, que achou que podia não escolher e que o tempo para se definir podia ser adiado ao infinito, apenas para depois se dar conta de que o tempo voou e foi habitado por um nada indefinido.
O comentário é de Paolo Benanti, frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e acadêmico da Pontifícia Academia para a Vida. Em português, é autor de “Oráculos: entre ética e governança dos algoritmos” (Ed. Unisinos, 2020).
O artigo foi publicado em Settimana News, 19-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estas linhas são uma reação muito pessoal minha ao assistir a série da Netflix “Entrelinhas pontilhadas”, de Zerocalcare, que eu vi toda de uma vez só. Não são um comentário: não pretendo que algumas das coisas que escrevo estejam realmente nas intenções do autor ou na estrutura da obra.
(Foto: Divulgação)
A obra de Zerocalcare é romana. Com isso, quero dizer que ele fala de um contexto urbano plural e diferente, que também é a matriz da minha vida. Aqui, não quero nem tocar nas inúteis e estéreis polêmicas de quem, para não pensar na dura verdade da obra, se apega à língua ou à dicção... enquanto o dedo aponta para a lua, alguns olham para os fonemas e as terminações das palavras.
Uma advertência: eu vi toda a série e vou falar sobre isso. Se você não a viu, aqui eu vou dar spoilers. Se você não quer spoilers, não siga em frente.
Toda a série gira em torno de um relato que descreve a condição dos chamados NEETs. Esse acrônimo que se refere a “Not in Education, Employment or Training” é um indicador socioeconômico utilizado para identificar aquela parte da população jovem (entre os 15 e os 37 anos) que não está nem empregada nem inserida em um percurso de instrução ou formação. Em 2010, na Itália, mais de dois milhões de jovens eram NEETs (o percentual mais elevado da Europa).
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A última crise econômica atingiu duramente os jovens adultos italianos, tornando mais difícil a passagem deles para o trabalho e condenando-os a serem NEETs. Uma série de estudos específicos sobre a Itália mostra que o status ocupacional, as formas de viver o tempo cotidiano e a satisfação de vida e de saúde dos jovens estão associados. A percepção e a satisfação da saúde dos jovens adultos NEETs caracteriza-se pela inatividade, mal-estar, insatisfação e uma dimensão incerta do futuro.
“Entrelinhas pontilhadas” nos faz perceber e viver a condição de crise à qual relegamos uma geração. Terminado o percurso de instrução – superior ou até mesmo ultraespecializado, com o doutorado como para Alice, abre-se um presente sem tempo. Um tempo-não-tempo em que a definição de si mesmo, incluindo a profissionalização (e aqui não é secundário lembrar que, em alemão, por exemplo, profissão e vocação têm a mesma raiz em Beruf e Berufung, ou seja, aquilo que eu sou é dito e encarnado por aquilo que faço), não define quais figuras ou, melhor, quais silhuetas emergiram daquela folha de papel branco, ou seja, daquelas possibilidades gerais que caracterizam a infância e se transformam assim que entramos na idade adulta.
“E então nós caminhávamos devagar porque achávamos que a vida funcionava assim, que bastava rasgar ao longo das margens, pouco a pouco, seguir a linha pontilhada daquilo a que estávamos destinados e tudo tomaria a forma que tinha que ter. Porque tínhamos 17 anos e todo o tempo do mundo” (Zerocalcare).
“Entrelinhas pontilhadas” é um profundo lamento de uma geração de jovens condenados a não serem adultos e a não se definirem. Certamente, não só por culpa daqueles que já são adultos, mas também pelos medos e pelas obsessões que caracterizam a chamada geração Y, isto é, os nascidos entre o início dos anos 1980 e o fim dos anos 1990.
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De acordo com inúmeros estudos sociológicos, as características dessa geração e daqueles que fazem parte dessa geração são difíceis de gerir, acham que tudo lhes é devido, têm traços narcisistas e egoístas, e são dispersivos e preguiçosos. Jovens que muitas vezes se encontram na condição de ter tudo o que gostariam de ter, mas igualmente de serem infelizes, e isso porque há quatro fatores que influenciaram o crescimento daqueles que fazem parte dessa geração e que tiveram consequências bem específicas.
O primeiro fator são as estratégias falimentares de educação familiar, que se caracterizaram pelo fato de que, sendo filhos de um bem-estar econômico generalizado, cresceram ouvindo que eram especiais e que “podiam ter tudo o que quisessem da vida, só pelo fato de o quererem”. Isso teve o efeito de não os preparar para a vida real. As cenas com a professora que produz frustração em Zero pela ideia de ter decepcionado as suas expectativas, não sendo realmente especial como todos lhe diziam, talvez seja uma encarnação magistral de tudo isso.
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Por isso, “Entrelinhas pontilhadas” parece ser o lamento de uma geração que ainda não decidiu quem quer ser, que achou que podia não escolher e que o tempo para se definir podia ser adiado ao infinito, apenas para depois se dar conta de que, como canta Tiromancino, o tempo voou e foi habitado por um nada indefinido: a cena da ex-estudante de tutoria que tem uma vida e trabalha, ou seja, não é uma NEET, gera uma crise em Zerocalcare, que se descobre, apesar de si mesmo, ainda NEET.
“Em vez disso, debaixo dos nossos olhos, temos apenas estes papéis sem sentido, que eu sei que estão muito longe da forma como imaginávamos. Eu não sei se isto ainda é uma batalha ou se foi assim mesmo que descobrimos que é possível se virar com estas formas irregulares, aceitando que nunca nos farão jogar no time dos ordenados e pacificados. Mas se mesmo assim pudéssemos nos apertar ao redor do fogo e lembrar que todos os pedaços de papel são bons para se aquecer... E, às vezes, esse fogo te basta, outras vezes, não” (Zerocalcare).
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O que vem à tona é o grito de quem não consegue fazer o que Marco Paolini intima aos jovens em “Aprile ’74 e 5 Rugby”:
“Eu estou falando de juventude, estou falando de adolescentes, de rapazes que tinham pressa de se tornar adultos.
Adulto é o particípio passado do verbo ‘adolescere’, aquele que acabou de crescer. Hoje, eu conheço mais adúlteros do que adultos, adúlteros de si mesmos, obviamente.
O que vou contar a vocês nesta noite é a história de um grupo de rapazes que tinham pressa de entrar em um mundo adulto que envelheceu sem ser adulto. O meu, o nosso país hoje é isso. É o mais velho do planeta, e o olhamos sem nem sequer perceber o que temos debaixo dos nossos olhos. Sim, temos debaixo dos nossos olhos a mudança da paisagem, mas não a lemos em nós, por quê? Porque nós não podemos nos sentir velhos.
Segundo os italianos, envelhecemos aos 83 anos. Como a expectativa de vida é de 81, segundo os italianos nós envelhecemos depois de mortos!
Eu gostaria de pedir aos meus coetâneos, em primeiro lugar, que ‘saiam do armário’: declarem-se adultos. Renunciem a essa ideia de juventude que nos é vendida cotidianamente, porque há uma confusão genética monstruosa.
Adulto é aquele que jogou com as possibilidades e tem que viver com aquilo que tem: o resto que se dane. Aquilo que você é em potência quando é jovem, você não tem depois. Se você não entende isso, se você impede a quem vem depois que o ultrapasse, porque você, embalado pelo sonho dessa eterna juventude, rouba constantemente tudo o que é produzido por quem vem depois de você, vestindo-o de várias maneiras ao seu redor, você está criando um bloco monstruoso, que nos impede de ler a realidade.
Declarem-se adultos, assumam as responsabilidades.”
“Porque, se algo tem que acontecer, acontece. Toda essa pressa para fazer as coisas acontecerem, foi o capitalismo quem inventou” (Tatu).
Há uma música do Pink Floyd, “Mother”, que mostra que a mãe sobre a qual se canta no texto tem ansiedade demais para permitir a autonomia ao filho. Quando ele pede garantias, ela as fornece, mas ao mesmo tempo o priva da liberdade de escolher. Para a criança/adolescente, não há escolha a não ser a rebelião. Todo o álbum “The Wall” fala da rebelião contra a mãe e a sociedade.
Eis as palavras da música do Pink Floyd:
“Silêncio agora, bebê, não chore. Mamãe fará com que todos os seus pesadelos se tornem realidade. Mamãe vai incutir todos os seus medos em você. Mamãe vai mantê-lo seguro bem aqui debaixo da sua asa. Ela não vai deixar você voar, mas talvez deixe você cantar. Mamãe vai manter seu bebê aninhado e aquecido. Ooooh, bebê, ooooh, bebê, oooooh, bebê, é claro que mamãe vai ajudá-lo a construir o muro.”
Esse conflito resolvido com as figuras parentais, caminho para uma vida de equilíbrio, falta a Zero. A mãe, a quem se deve satisfazer (o pai nunca aparece), ou que deve ficar orgulhosa, ou a quem nunca se deve decepcionar, porém, é a solução e a tábua de salvação que recupera e ajuste os fracassos do filho: a cena do carro e do torcicolo é magistral.
A tecnologia e os seus efeitos desempenham um papel fundamental nisso. Filhos da disseminação do digital que cria uma forte dependência porque permite que o nosso corpo libere dopamina, a mesma que se cria ao fumar, beber ou apostar. A tecnologia, porém, pode ser utilizada por todos, principalmente pelos adolescentes.
Isso significa que, em um período de alto estresse como o da adolescência, os jovens recorrem à tecnologia para fazer com que o seu corpo produza dopamina, e isso os torna dependentes, tanto que, ao longo da sua vida, continuarão recorrendo à tecnologia nos momentos de estresse. Tudo isso repercute sobre as suas capacidades relacionais, tornando-os incapazes de criar relacionamentos de verdade com as pessoas, mas apenas relações superficiais nas quais não confiam.
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“E também nós somos estúpidos. Porque insistimos em fazer uma comparação com a vida dos outros, que nos parecem todas perfeitamente recortadas, empaladas, ordenadas, e talvez só sejam tão perfeitas porque nós as vemos de longe” (Zerocalcare).
Tudo é marcado por um senso de impaciência devido ao fato de crescer em um mundo de gratificações instantâneas, sem nunca ter que esperar nada, mas obtendo tudo aquilo que querem com apenas um clique. Isso cria neles um grande sentimento de frustração, no momento em que devem obter resultados que exigem paciência, como muitas das coisas importantes da vida (por exemplo, o amor ou as gratificações no ambiente de trabalho).
São esses os fatores que determinam a sua insatisfação: não é culpa deles, mas da época em que cresceram e em que vivem que os faz conviver continuamente com um sentimento de frustração e infelicidade.
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Sem desespero excessivo nem autopiedade, Zerocalcare, em “Entrelinhas pontilhadas”, consegue dizer e representar tudo o que milhares de pessoas vivem hoje e viveram no passado. Entre dezenas de currículos enviados por dia, o icônico MSN, os possíveis cenários diante de uma escolha que sempre parece ser a mais importante da própria vida, tanto quando é, quanto quando é completamente diferente, Zerocalcare compartilha experiências vividas como criança, como adolescente e como alguém com quase 30 anos.
Falar da morte em tempos de pandemia é difícil. Falar da morte quando estamos no auge da vida é ainda mais difícil. Sempre é. Mas é ainda mais quando somos jovens, em plena adolescência, quando olhamos mais para o futuro do que para o passado. Para aquilo que ainda não é, e não para aquilo que já foi. Para aquilo que poderia ser, e não tanto para aquilo que poderia não ser. Dentro da transformação do crescer, o encontro com o sentido da morte é crucial.
“É uma coisa que dá medo, mas também é bonita. É a vida” (Zerocalcare).
A viagem que aparece nos três últimos episódios da série é o tema profundo desse crescimento no tempo vazio marcado entre o fim dos anos 1990 e a primeira década dos anos 2000.
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Alice morreu, suicidou-se. O problema, porém, não é apenas a perda, mas dramaticamente o porquê de viver. Essa pergunta, uma pergunta de objetivo, toca o coração de cada espectador. O problema não é Zero, nem o Secco nem a Sara. O problema é a vida de cada um de nós. Se Alice está de luto por uma decisão de não viver, nós temos o problema de viver sem uma decisão, e isso é um pouco como morrer, é um luto para os nossos desejos e as nossas paixões.
A metamorfose profunda do crescer, considerando a mudança física, psicológica, social e relacional determinada pelo início da puberdade, leva cada um a conhecer sensações e emoções que têm características de luto, mais precisamente de luto de si mesmo, ou seja, todas as experiências cognitivas e emocionais que a perda acarreta.
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Talvez nós, espectadores, pudéssemos ter narcotizado o nosso luto (Narciso tem em si a raiz de narcose, para imitar um discurso com o Tatu feito em Biella), mas Zero não nos permite esquecê-lo. Eu acho que algumas das críticas que se leem por aí, no fundo, são uma reação a essa verdade incômoda que aqui vem à tona: nas nossas vidas quietas, calmas, provincianas, que narcotizam os desejos reprimidos, Zero leva à raiz o grito de precariedade, de solidão, de insegurança e de inadequação.
Nesse nível, só há duas possibilidades opostas e radicais: ou rejeitar tudo ou se deixar acompanhar na descoberta do significado da morte. Isso permite evitar as remoções individuais e coletivas, que é um dos aspectos mais trágicos da vida contemporânea, e permite uma recaída positiva na relação consigo mesmo e com a própria dimensão social.
“Você é faixa preta em como se esquivar da vida” (Tatu).
Estar narcotizado, de fato, é estar convencido de que o amor faz mal e de que é preciso sempre fugir da vida com classe. Para não sofrer, para não carregar sobre si o peso da vida, então é preciso apenas pensar em ser folhas de grama. Mas isso não é suficiente para nós.
“Mas você não percebe como você é bonito? Que você não carrega o peso do mundo sobre as suas costas, que você é apenas uma folha de grama em um gramado? Você não se sente mais leve?” (Sara).
“As pessoas são complexas: têm lados que você não conhece, têm comportamentos movidos por razões íntimas e insondáveis de fora. Nós vemos apenas um pedacinho muito pequeno daquilo que elas têm dentro e fora. E, sozinhos, não movemos quase nada. Somos folhas de grama, lembra?” (Sara).
No fim, no discurso com Pietro, aparece também o tema do Além e da fé. “Deus está morto, Marx também, e eu também não me sinto muito bem”, dizia Eugene Ionesco em meados do século passado. Cinquenta anos depois, se Deus não morreu, é provável que não esteja se sentindo muito bem.
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“Para mim não é importante que você esteja aqui sempre, mas preciso saber que, quando você está comigo, você está realmente aqui, entende?” (Alice).
Em suma, Zero não nos dá respostas aqui também, mas faz a pergunta. Abre-se a porta, mas não se passa por ela. A morte e o luto abrem o tema do Além, mas não garantem que ele seja atravessado.
Gostei muito da delicadeza de Zero sobre o assunto: não se oferecem soluções por telefone para um encontro que deve ser pessoal e profundo. Para mim, basta a porta aberta.
Vem à minha mente um velho livro de Enzo Biagi. O título, “Cara Italia”, prometia um Grand Tour entre algumas excelências geográficas do nosso país. E Roma não podia deixar de entrar. No capítulo XII (o último): “Uma humaníssima ‘caput mundi’'”. Que começava assim: “‘Ou Roma ou Orte’, dizia Mino Maccari, que odiava a retórica. Quanta ênfase, e quantas rupturas de bolso, em nome das glórias passadas”.
Ainda Biagi: “Não é verdade que os romanos são cínicos, mas viram muitas coisas e se defendem da autoridade: a eclesiástica, a política.” Os romanos são dotados de um humor pérfido e despreocupado: conseguem encontrar uma chave irônica para banalizar qualquer situação de suposta emergência.
Em suma, para concluir, “Entrelinhas pontilhadas” não é nada cínico: é romano. E, como todo habitante da capital italiana que deve sobreviver ao trânsito, à política, a uma administração que talvez piore a vida, o cinismo e a ironia forçada sejam a única arma para não sucumbir.