10 Junho 2022
Hoje as neurociências e as inteligências artificiais se aproximam e se tocam. No entanto, a pessoa e o computador ainda estão distantes de um modo qualitativamente insuperável: uma existe, o outro funciona.
O comentário é de Paolo Benanti, frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e acadêmico da Pontifícia Academia para a Vida. Em português, é autor de “Oráculos: Entre ética e governança dos algoritmos” (Ed. Unisinos, 2020).
O artigo foi publicado em Avvenire, 09-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Inspirados pelos progressos na modelagem linguística em larga escala, os pesquisadores da DeepMind, empresa inglesa de inteligência artificial controlada desde 2014 pela Alphabet, controladora do Google, aplicaram uma abordagem análoga para a construção de um bot generalista.
O bot, chamado “Gato”, é um passo na direção de uma inteligência artificial geral (GAI)? O que isso nos diz sobre a inteligência artificial? E sobre o ser humano?
O Gato funciona como uma policy generalista multimodal, multitarefa, multi-embodiment. A mesma rede neural com os mesmos pesos pode jogar os videogames Atari, criar legendas para imagens, responder em chats, empilhar caixas gerenciando um braço robótico e muito mais.
Estamos diante do primeiro passo para alcançar uma inteligência como a humana? A resposta curta é não. Por pelo menos dois motivos.
O primeiro diz respeito à natureza dessas máquinas que, de fato, retomam a “máquina de Turing”, uma máquina ideal que manipula os dados contidos em uma fita de comprimento potencialmente infinito, de acordo com um conjunto prefixado de regras bem definidas. Em outras palavras, trata-se de um modelo abstrato que define uma máquina capaz de executar algoritmos e dotada de uma fita potencialmente infinita na qual pode ler e/ou escrever símbolos. Em síntese, podemos dizer que a consciência não é um problema Turing-computável e, como tal, não pode ser replicado por uma máquina de Turing.
Há depois um segundo motivo. A inteligência artificial, para John McCarthy, é “a ciência e a engenharia para criar máquinas inteligentes, particularmente programas de computador inteligentes. Ela está relacionada à tarefa semelhante de utilizar os computadores para compreender a inteligência humana, mas a inteligência artificial não deve se limitar a métodos biologicamente observáveis”. Os prodigiosos resultados de previsão que essas máquinas obtêm, ocorrem com uma total ausência de um modelo causal da realidade, mas em modalidade associativa.
Os instrumentos que criamos funcionam sobre um fluxo de dados – as observações da realidade – ao qual tentam adaptar uma função matemática, como um estatístico que tenta ajustar uma linha a um conjunto de pontos.
O Gato nada mais é do que um instrumento desse tipo, muito, muito poderoso. Mais do que uma pessoa, é uma emulação da nossa capacidade cerebral de processar inputs externos em esquemas que podem parecer coerentes.
Mas o coração do mistério que somos continua além e invisível. Se entendermos como os sentidos podem ser processados pelo cérebro, o “quem” os processa – você e eu – está em outro lugar. Se o Gato é multifuncional, como a área cortical dos sentidos, ele não se aproxima sequer remotamente de um sujeito humano, muito menos de uma pessoa.
Hoje as neurociências e as inteligências artificiais se aproximam e se tocam. No entanto, a pessoa e o computador ainda estão distantes de um modo qualitativamente insuperável: uma existe, o outro funciona.
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Existir ou funcionar? Artigo de Paolo Benanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU