21 Junho 2022
Por que é tão difícil descarbonizar a economia? Entraves institucionais, cinismo das elites, síndrome do Titanic ou ainda bomba demográfica, Gaël Giraud oferece sua análise para entender essa inércia e, possivelmente, superá-la.
Graduado pela École Normale Supérieure (ENS) e pela Escola Nacional de Estatística e Administração Econômica (ENSAE), Gaël Giraud é economista-chefe da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e diretor de pesquisa do CNRS. Seus trabalhos centram-se especialmente na moeda, na regulação dos mercados financeiros, no papel da energia no crescimento e na teoria dos jogos. Entre os seus livros estão Ilusão financeira (São Paulo: Loyola, 2015) e Vingt propositions pour reformer le capitalisme (Flammarion, 2012 [2009]), editado em parceria com Cécile Renouard.
A entrevista é de Alexia Soyeux, publicada por Socialter, 15-06-2022. A tradução é do Cepat.
Poderia recordar os perigos ligados à destruição da biodiversidade?
Ninguém sabe, porque vai depender da reação da humanidade. Os trabalhos que desenvolvemos na Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e no âmbito da Cátedra de Energia e Prosperidade sugerem que o cenário business as usual – onde não introduziríamos uma taxa de carbono de nível e placa ajustada à escala do desafio, onde não faríamos esforço extra – nos levará a desastres de proporção planetária.
Mas deve ficar claro desde já que tais catástrofes já aconteceram. Um exemplo relativamente desconhecido – e que estamos descobrindo hoje graças ao trabalho do historiador americano Mike Davis – é que em 1890 houve um grande efeito El Niño [fenômeno climático excepcional], que afetou o Brasil, a África, a Índia e a China, e cujas consequências (inundações, secas etc.) foram completamente negligenciadas pelas administrações coloniais da época. Resultado: quase 50 milhões de mortos em poucos anos. Isso explica, em grande medida, a razão do “atraso” dos países do Sul em relação aos países europeus. O que é fenomenal é que as administrações ocidentais foram capazes de deixar isso acontecer e apagá-lo da nossa memória.
Nossa maior tarefa é não repetir esse tipo de façanha mórbida. Mas ela já começou. O Iemen está a caminho da destruição; colunas de migrantes fogem de Honduras, Guatemala; o Chifre da África está mergulhando na violência em parte sob os golpes do aquecimento global... Os colapsos atuais não dizem respeito apenas aos humanos. Junto com nossos animais, representamos 97% da biomassa de vertebrados da Terra: o restante já foi dizimado. Os colapsos regionais só podem ser evitados com massivos investimentos das finanças públicas, com uma descarbonização real (na França, as emissões aumentaram 3,2% no ano passado) e uma redução radical da pegada material do nosso consumo, especialmente dos mais ricos.
O colapso “previsto” pelo relatório Meadows parece difícil de evitar, já que, de qualquer maneira, nada está acontecendo...
O primeiro relatório Meadows, de 1972, não levava em conta as mudanças climáticas: não se tinha na época a mesma quantidade de informações que temos hoje. Incluiu a poluição, a saturação dos sumidouros de absorção dos nossos resíduos e a escassez de recursos naturais. Ele apontou 10 cenários para o planeta. Dois levavam a um colapso global: um na década de 2020, o outro na década de 2050-2060. Depois, o físico australiano Graham Turner fez [em 2014] o que se chama de backtesting sobre as trajetórias de Meadows e mostrou que esses dois cenários são os mais próximos das trajetórias atualmente seguidas pelo planeta.
A escassez de recursos naturais já é uma realidade. O cobre, por exemplo, é um metal fundamental por seus usos industriais – para os quais atualmente temos pouquíssimos substitutos – e cujas infraestruturas ligadas às energias renováveis são ainda mais gananciosas que as dos hidrocarbonetos fósseis. Nos próximos anos, precisaremos, portanto, de ainda mais cobre do que hoje. Seu pico de extração pode chegar antes de 2060 em nível global: isso não significa que não haverá mais cobre depois, mas que não poderemos mais aumentar a quantidade anual disponível, ou apenas com um custo exorbitante em termos de água e energia. Esse tipo de perspectiva tende a confirmar o lado sombrio do relatório Meadows se, entretanto, não fizermos esforços em pesquisa e desenvolvimento para reduzir nossa dependência do cobre e de todos os minerais críticos.
De fato, em escala global, a parcela de emissões fósseis permanece em torno de 80% e as emissões de gases de efeito estufa estão aumentando. Como explicar tanta falta de ação e negação?
Há um primeiro fator que está do lado da indústria. É muito difícil hoje para uma empresa se esforçar e mudar para um modelo de produção verde se seus concorrentes não o fizerem, pois inevitavelmente terão uma vantagem competitiva temporária capaz de matar a indústria virtuosa. Enquanto continuarmos a gerenciar as relações entre empresas pela concorrência, haverá um prêmio para o vício, para a indústria marrom. Do lado dos bancos, vemos o mesmo problema na concessão de créditos verdes. Enquanto não tivermos implementado um green supporting factor [fator de apoio verde] – ou seja, um bonus em termos de exigência de capitais de fundos próprios para os bancos que concedem créditos verdes e um malus para aqueles que concedem créditos marrons –, será muito difícil para um banco financiar apenas o verde.
O segundo fator é que uma parte das elites é afetada pelo que poderíamos chamar de “síndrome do Titanic”. Digo a mim mesmo que já é tarde demais para mudar a trajetória do transatlântico e que vamos bater no bloco de gelo, então cuido de preservar o acesso aos botes salva-vidas para mim e minha família sem me preocupar com o resto do transatlântico. E no tempo que ainda resta, continuo a viajar de avião todas as semanas e a poluir num contexto em que os 10% mais ricos do planeta são responsáveis por 43% das emissões. Um verdadeiro cinismo aguarda certas elites financeiras que dizem a si mesmas que, mesmo que isso signifique ter de enviar seus filhos para a Escandinávia, sempre conseguirão garantir o acesso a água potável, oxigênio limpo, energia e minerais.
Em um país como a Nigéria, os expatriados vivem em vilarejos construídos do zero por multinacionais. No seu interior, os seus habitantes dispõem de piscina, cinema, sala de concertos; limpam carros com motor a combustão com água potável e pagam um psiquiatra para tratar do conjunto depressivo de expatriados. Do outro lado das muralhas de 4 a 5 metros, ladeadas por torres de vigia, cães policiais e arame farpado, os nigerianos estão ficando sem água para beber... Esta “bunkerização” de algumas elites é uma reedição fantasiosa da “fuga de Varennes” que negligencia completamente o fato de que os guetos ricos são estreitamente dependentes do seu hinterland [do interior] e das categorias populares que ali trabalham, e que as mudanças da biodiversidade também afetam a Suécia.
Isso lembra o ponto de vista de Bruno Latour segundo o qual uma parte das elites teria abandonado a ideia de um mundo comum...
Nem todos, é claro! Conheço muitos industriais que entenderam que a transição energética é o business de hoje e de amanhã. Mesmo os hidrocarbonetos fósseis podem ser “quebrados” para produzir hidrogênio sem emissões de CO2.
Há também a questão “tabu” da bomba demográfica: como vamos administrar esse imenso crescimento e tentar restaurar uma forma de igualdade?
Não penso que seja uma questão tabu – pelo menos não deveria ser. O cenário médio das Nações Unidas de evolução demográfica prevê 9 bilhões de habitantes no planeta em 2050 e 11 bilhões no final do século. Isso vai dificultar consideravelmente a resolução da equação ligada à transição ecológica. Naturalmente, surge a questão de saber se não seria melhor limitar os nascimentos em áreas onde as taxas de fecundidade permanecem altas. A África Subsaariana é a única região do mundo que experimentará um forte crescimento demográfico nas próximas décadas. Hoje, cerca de 1,2 bilhão de pessoas vivem na África e haverá pelo menos mais 1 bilhão de pessoas nos próximos trinta anos.
Os Estados da África Subsaariana estão muito conscientes dessa dificuldade. Ainda assim, não é tão fácil como se pensa mudar uma curva demográfica. Todo mundo tem o exemplo chinês em mente. Entretanto, se a China conseguiu reduzir sua taxa de natalidade para 1,7 filho por mulher, não é certo que isso se deva essencialmente à política do filho único. Por quê? Porque a Tailândia experimentou exatamente a mesma evolução de sua taxa de natalidade, sem nenhuma política antinatalista. Por outro lado, a Índia esterilizou 8 milhões de pessoas sem nenhum impacto em sua taxa de natalidade! É muito provável que o que permitiu a queda da taxa de natalidade chinesa é que em menos de quarenta anos Pequim conseguiu tirar 700 milhões de pessoas da pobreza extrema.
Por outro lado, o fato de que a transição demográfica na África Subsaariana tenha desacelerado ou mesmo diminuído é em grande parte devido aos planos de ajuste estrutural implementados na década de 1980. Esses últimos contribuíram para destruir boa parte dos serviços sociais que anteriormente eram fornecidos pelos Estados. Devemos continuar a promover a educação das meninas, como a Agência Francesa de Desenvolvimento se esforça para fazer, mas tendo em mente que inverter a curva de crescimento demográfico implica fundamentalmente resolver o problema da pobreza.
Quando lemos seus trabalhos, entendemos que a energia é o principal fator de crescimento, ao passo que para muitos economistas este é um tema que sequer é tratado. Por que não conseguimos integrar a energia e os recursos naturais nos modelos econômicos?
Em primeiro lugar, há razões técnicas: a construção analítica da chamada “economia neoclássica” é amplamente incompatível com a consideração dos recursos naturais. Essa economia é construída para justificar a redução da participação dos salários no PIB a favor do capital. Salários e capital deveriam ser os únicos ingredientes do PIB, aumentados por uma variável “mágica” chamada “progresso técnico”.
Se você desconstruir isso, então o núcleo da análise convencional entra em colapso: a teoria do gotejamento, a relevância dos planos de ajuste estrutural, incluindo aquele que foi imposto à Grécia desde 2010... Muitos economistas acreditam que são incapazes, com ou sem razão, de romper com esse paradigma de uma economia estática, em equilíbrio, sem moeda e sem recursos naturais, e de reescrever uma teoria dinâmica, monetária, ou os serviços ecossistêmicos dos quais nos beneficiamos, os recursos minerais e energéticos que extraímos desempenham um papel fundamental.
Então devemos criar novos indicadores de riqueza?
Sim, o PIB é um indicador muito ruim. Deve ser complementado por uma medição da pressão antrópica exercida sobre os ecossistemas na forma de uma dívida ecológica que tenha o mesmo peso das dívidas monetárias. Devemos também revisar nosso arcabouço analítico e contábil, porque se a economia depende muito da biosfera, então ela deve, por exemplo, verificar as duas primeiras leis da termodinâmica. No entanto, todos os modelos neoclássicos violam alegremente essas duas leis, e é por isso que muito do que nós, economistas, dizemos sobre os impactos das mudanças climáticas e o colapso da biodiversidade provavelmente derruba os físicos de suas cadeiras.
Quando os físicos ouvem William Nordhaus [o último “Prêmio Nobel” de economia] dizer que um aumento de 6°C no final do século representa uma perda de 10% do PIB real do mundo, eles se perguntam em que mundo vivem esses economistas. A maioria dos nossos modelos atuais tem pouco a ver com o mundo real. Uma economia é, na realidade, um metabolismo gigantesco, uma estrutura dissipativa (no sentido de Ilya Prigogine) mantida em desequilíbrio pela energia e pela matéria que retira permanentemente do seu ambiente e pelos resíduos que descarta. Exatamente como uma galáxia, um ciclone, uma máquina de Carnot ou qualquer organismo vivo. Enquanto adotarmos esse ponto de vista circular e termodinâmico, permaneceremos incapazes de pensar nos atuais colapsos econômicos e como escapar dos seguintes.
No que deposita sua esperança?
Tenho esperança na capacidade de conversão da humanidade. Mesmo que seja óbvio que as mediações levarão muito tempo para convencer a esfera das finanças de mercado a não optar pelo cenário da bunkerização. Certamente será difícil, mas espero que o maior número de pessoas perceba em breve que um mundo guetizado será necessariamente muito desagradável, inclusive para aqueles que viverem dentro do bunker. Tudo deve ser feito para acelerar uma transição ecológica participativa e equitativa, com a participação de todos, onde aprendamos coletivamente a nos adaptar ao aquecimento que já começou e onde uma minoria de passageiros clandestinos não fuja de suas responsabilidades refugiando-se atrás de fortalezas.
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“Parte da elite sofre da síndrome do Titanic.” Entrevista com Gaël Giraud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU