12 Mai 2022
Entre os colegas de Renato Freitas houve quem cometesse plágio, comemorasse a morte de crianças e colocasse a vida de outros em risco. Mas quem a Casa optou punir? A indagação é de Rosiane Correia de Freitas, em artigo publicada por Plural Curitiba, 11-05-2022.
(Foto: Reprodução | Facebook)
O vereador Renato Freitas (PT) teve o parecer pela cassação de seu mandato aprovado nesta terça (10) em votação no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara de Curitiba. Supostamente está sendo punido por ter entrado numa igreja católica durante um ato pelas vidas negras. No papel e nos discursos de seus colegas que votaram pela cassação, Freitas quebrou o decoro por ter colocado em risco a liberdade de culto. Mas a verdadeira razão para a cassação não estava presente ontem, nas declarações de votos, nem na extensa papelada do processo conduzido contra o parlamentar.
O caso contra Renato Freitas não começou quando ele pisou na Igreja do Rosário. Freitas selou seu destino muito antes, quando chamou seus colegas representantes de igrejas evangélicas da cidade de trambiqueiros e os acusou de lucrar com a miséria alheia. Ao fazer isso, defendeu os jovens periféricos, um dos grupos sociais mais afetados pelas ações da Câmara. Foi em maio de 2021, durante um dos períodos mais duros da pandemia de Covid na cidade.
Como seus demais colegas, Freitas tomou posse em janeiro, após ser eleito numa disputa adiada pelas montanhas de corpos deixados pelo coronavírus e pela pandemia que afetava outros milhares de brasileiros lotando ambulatórios e UTIs em todo país. A “nova Câmara” trouxe várias novidades: a Casa havia ganho uma bancada de mulheres de oito componentes, um feito não inédito, mas incomum. E havia eleito três negros, entre eles a primeira mulher.
E como sua representante com maior número de votos, a Câmara também recebeu duas integrantes de uma inédita bancada do partido Novo, uma sigla que se promete uma mudança na “velha política”.
Por causa da pandemia, muito do ano legislativo de 2021 foi diferente do que a Casa entende por normal, a começar pelas sessões virtuais. Mas muito continuou exatamente igual. Os vereadores, cercados pelos desafios imensos impostos a cidade pela Covid e pela grave crise econômica, permaneceram encastelados em suas casas confortáveis.
Freitas entrou na igreja para expressar seu inconformismo com a morte de Moïse Kabagambe:
Nesse período a Casa não fez nada para impedir que as crianças e jovens das escolas municipais da cidade fossem tratadas como cidadãos de segunda classe, condenadas a um ineficiente ensino remoto e a ausência de medidas para que pelo menos as crianças em situação mais delicada pudessem retornar às escolas.
Debaixo do nariz dos vereadores, a prefeitura permitiu que as escolas privadas contratadas para fornecer vagas para a educação infantil de 0 a 3 anos abrissem as portas para seus estudantes particulares, mas mantivessem aqueles cujas mensalidades o erário pagou fora de sala de aula, prejudicando crianças e pai trabalhadores da cidade.
A Câmara nada fez quando curitibanos doentes foram amarrados em macas para serem submetidos a intubação sem sedação.
Mas mais grave ainda, os parlamentares ficaram muito à vontade com o mau comportamento dos colegas. Ignoraram solenemente a falta de decoro de um dos seus que insistiu em entrar no prédio da Câmara sem máscara em plena onda de contaminação da Covid. Obviamente isso colocava em risco não só os outros parlamentares, mas dezenas de funcionários públicos e a população que frequenta a Casa.
Com exceção de fofoca, o episódio não gerou em nenhum parlamentar reação nenhuma. O vereador, é claro, não se desculpou. Qual o problema de colocar a vida dos outros em risco, não é?
Em outro episódio, uma parlamentar do Novo, colega da vereadora Indiara Barbosa, que na sessão do Conselho declarou que o partido “cortou na própria carne” aqueles que se recusam a se comportar direito nesse ambiente da “nova política”, apresentou um parecer contendo extensos trechos de plágio. Ironia das ironias, o parecer era contrário a um projeto de Carol Dartora (PT) que instituía cotas raciais nos concursos públicos do município.
O que fez a parlamentar? Pediu desculpas? Admitiu o erro? (Para ser justa, a vereadora reapresentou o parecer retirando os trechos plagiados, mas sem admitir o erro, nem se desculpar por ele). Não, acusou a imprensa (no caso, este jornal) de ser uma “máquina destruidora de reputações” e seguiu em frente, confiante de seus colegas não se incomodariam. E não se incomodaram. Apesar de plágio ser crime previsto no Código Penal. Mas tudo bem, não é mesmo?
Em outro momento, os vereadores voltaram a se calar e não ver nada de errado quando uma colega aproveitou o uso do microfone durante uma sessão ordinária da Casa para proclamar que “bandido bom é bandido morto”. Mas a morte de quem a vereadora Flavia Francischini (PSL) estava comemorando? Era de um bandido perigoso? Não. Os “bandidos” em questão eram duas crianças, de 2 e 7 anos, uma delas morta com um tiro na cabeça. Não é surpresa que Francischini não sofreu nenhuma repercussão pelo comentário.
Fossem estudantes jovens, esses parlamentares teriam sido prontamente punidos. Porque as escolas e universidades, a despeito de serem criticadas pelos parlamentares, são melhores que seus pares do legislativo em cumprir regras. Mas os vereadores, que querem botar dentro das escolas a polícia, a guarda municipal, detectores de metal e tratar estudantes como aprendizes de bandidos, não são tão afoitos quando se trata de “cortar na própria carne”.
Mas afinal, que crime tão hediondo cometeu Renato Freitas para romper com essa camaradagem confortável de seus colegas? Bom, Freitas questionou, entre outras coisas, a influência religiosa no tratamento de jovens viciados em drogas. E ousou agir com a arrogância e impulsividade dos jovens, numa Casa que fede a formol e segredos escondidos em armários.
O parlamentar entrou numa igreja construída por negros depois que a missa havia sido concluída e ocupou o púlpito por alguns minutos para dar voz a indignação e tristeza dos jovens e negros com a morte sem sentido do congolês Moïse Kabagambe, que foi trabalhar honestamente e não voltou para casa.
Renato pediu desculpas à Casa, à Igreja. A própria Cúria pediu que ele não fosse cassado. Mas para o jovem, especialmente o jovem periférico, não há segunda chance. Ele já havia se comportado mal outras vezes, destacaram os integrantes da comissão durante a sessão que o cassou. Não por ter cometido um crime ou ter colocado a vida de ninguém em risco, ou comemorado a morte de uma criança. Mas por ousar criticar seus colegas. Isso sim é imperdoável.
Na Comissão, o vereador Denian Couto declarou que é parte do trabalho do parlamentar sofrer pressão, que constitui a única frase proferida por ele com a qual concordei. A questão é que, no fim das contas, entre a pressão de ser chamada de racista e a pressão para permanecer exatamente tudo como está, a Câmara, vimos, cede a essa última.
E assim a História de Curitiba agora terá um capítulo em que vereadores e vereadoras perpetuaram a violência institucional contra jovens e negros porque isso era muito mais confortável do que aceitar como parte da cidade milhares de jovens cuja arrogância e impulsividade o vereador Renato Freitas representa. Cortar na carne? Só naquela carne que, sabemos, é muito mais barata.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Curitiba. Uma Câmara que não tem medo de ser chamada de racista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU