06 Mai 2022
“Devemos salvar os territórios dilacerados e envenenados, salvar vidas. Mas, para isso, é preciso estar pronto para pagar um preço.”
Publicamos aqui a nota da associação italiana Laudato si’, publicada em Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 04-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com o passar dos dias, a guerra na Ucrânia não só se mostra pelo que todas as guerras realmente são – semeadura de ódio e violência, destruição de vidas, famílias, humanidade, cultura e natureza –, mas também escancara diante dos nossos olhos o abismo nuclear, sem que se manifeste a gravitas necessária para frear uma escalada até dois meses atrás impensável e, afinal, previsível, enquanto sua natureza de confronto entre superpotências ficava cada vez mais clara.
O encontro do secretário da ONU com Putin e a reunião dos países da Otan na base de Ramstein certamente não definiram uma direção oposta à progressão do confronto. Em vez disso, vemos a proliferação de enormes interesses em torno dos aparatos militares e da produção bélica, a disputa por matérias-primas estratégicas e mercados, junto com uma excitação super-homística que brinca com a pretensão de dominar o poder técnico de armas cada vez mais destrutivas.
Saímos da guerra investindo na paz, não financiando a guerra. Para isso, devemos identificar propostas que experimentem caminhos novos, não resignados: estar em campo, manifestar, educar para a paz, afirmar palavras e símbolos radicalmente diferentes daqueles que estão ganhando corpo nas mentes de quem, devido a retóricas que olham para o passado, corre o risco de não ver a semeadura de sofrimento, nem a concretude de um cenário que pode pôr fim à vida civil e democrática na Europa como a conhecemos desde os tempos da guerra fria.
Mantendo-nos fora dos pertencimentos ideológicos e sempre do lado das vítimas, devemos nos perguntar não “quem pode vencer” a guerra, mas como desativá-la; devemos nos perguntar “quem podemos salvar?”. Podemos e devemos salvar as mulheres, os homens, as crianças submetidos a uma brutal agressão, os refugiados e também aqueles que, sendo russos, não são responsáveis por isso; devemos salvar os territórios dilacerados e envenenados, as áreas ao redor das usinas nucleares civis, das quais Chernobyl representa a advertência mais terrível; devemos salvar as nossas próprias existências, postas em risco por aquela que o Papa Francisco chamou de “loucura da guerra”, também nuclear.
Mas, para isso, é preciso estar pronto para testemunhar a paz – como fizeram milhares de pessoas na marcha Perugia-Assis do dia 24 de abril passado – e também para pagar um preço, começando a adotar estilos de vida e de consumo de energia baseados não em energias fósseis ou nucleares, mas em fontes renováveis de dimensão territorial baseadas na suficiência.
É preciso superar a univocidade do marco geopolítico a que os governos se referem, para afirmar com clareza, sem ambiguidade, que a ecologia integral é o único horizonte em que os conflitos podem encontrar uma recomposição real. Sem a percepção e o cuidado das interconexões entre a sociedade humana, o conjunto dos seres vivos, o mundo da natureza e todo o universo, toda nova guerra corre o risco de se tornar global, até desencadear, por uma lógica intrínseca, o poder incontrolável e incomensurável da energia nuclear, tornando irreversível a destruição da vida sobre a Terra.
Aos alinhamentos pré-estabelecidos, antepomos um diálogo aberto: a luta pela supremacia entre superpotências faz recuar dramaticamente os compromissos e os recursos que finalmente começavam a ser orientados para políticas de justiça social, participação democrática, conservação dos bens comuns, combate à catástrofe climática, fim da guerra – também esta tragicamente real – que há mais de um século estamos movendo contra a natureza.
Nunca como hoje é evidente a urgência de um repensar global, que nos permita parar antes da catástrofe: basta pensar que o setor militar, além de ser por natureza uma máquina de morte, é de longe o maior produtor de gases de efeito estufa, e que todos os anos consumimos o equivalente aos recursos de dois planetas e meio.
O Papa Francisco escreve: “Quando apagamos o rosto do outro, então podemos fazer estalar o rumor das armas. Quando mantemos o outro, o seu rosto, assim como a sua dor diante dos nossos olhos, então não nos é permitido desfigurar a sua dignidade com a violência”.
No tempo que nos resta antes de uma crise irreparável, devemos reafirmar a centralidade dos territórios, a inviolabilidade das vidas que os habitam e rejeitar os conceitos estratégicos ofensivos que a Itália também adotou no âmbito da Otan, obrigando-nos – sem nunca declarar – a conviver com bombas atômicas nas bases de Ghedi Torre e Aviano.
A presença desses armamentos, em contraste com o Tratado de Paz de 1947 e com o Tratado de Não Proliferação de 1968, não é apenas ilegal, mas também está colocando a Itália em sério risco de se tornar um alvo prioritário na escalada da ameaça atômica, que cada vez mais se configura como um confronto por procuração entre as duas maiores superpotências nucleares.
Então, é necessário pedir e exigir que as nações que não estão formalmente em guerra, como a Itália e todos os Estados-membros da União Europeia, atuem imediatamente pelo cessar-fogo em vez de alimentá-lo e para colocar a desnuclearização do mundo em pauta. Essa abordagem é evidentemente uma alternativa ao envio de armas aos beligerantes e ao aumento dos gastos militares, assim como aos contínuos ataques à nossa “casa comum”, cuja beleza e generosidade estão sendo erodidas – como ocorreu, mais recentemente, na inacreditável decisão do governo [italiano] de destinar como base militar o Parque Natural de San Rossore, uma área protegida há mais de 40 anos.
Quando tudo parece pender para a “loucura da guerra”, torna-se ainda mais necessária a radicalidade de um compromisso pelo bom senso, pela paz, pela capacidade de mansidão, também na linguagem. O desarmamento mundial, o fim das guerras, a igualdade social, o cuidado, o trabalho digno e a educação para todos, a liberdade de migrar, a fraternidade universal, a proteção da biodiversidade, a defesa do clima não são sonhos para idealistas, são objetivos políticos tão possíveis e praticáveis quanto inevitáveis.
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Ecologia integral: um horizonte para a resolução de conflitos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU