Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe. Artigo de José Geraldo de Sousa Junior

Foto: Marc Sendra Martorell | Unsplash, licença comum

30 Abril 2022

 

"O perfil dos processos políticos autoritários ora em curso e seu esforço por solapar os fundamentos da democracia guarda similaridades em diversos países, sugerindo sua elaboração por uma matriz comum", afirma José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), ao comentar o livro "Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe", de Roberto Bueno, em artigo publicado por Jornal Estado de Direito, 27-04-2022.

Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe. Roberto Bueno. São Paulo: Editora Max Limonad, 2021. (Foto: Reprodução)

Eis o artigo.

 

São fortes e enunciativas as designações do Professor Roberto Bueno, organizador da obra.

 

"Este livro  – diz ele – foi concebido, escrito e organizado em tempos de radical crise que se abate sobre o Brasil e também sobre a América Latina e o Caribe, embora a gestação do colapso imposto à periferia ocorra em centros de poder globais. Estes são tempos em que recrudesce o autoritarismo em alta densidade sob a organização da classe privilegiada que ocupa os mais altos postos de poder e na burocracia do Estado, superando a fase de concepção e desenho do fenômeno neofascista para dedicar-se a sua implementação a partir do coração do império ocidental, os EUA, cuja decadência se expressa precisamente neste recurso do capital às estruturas do neofascismo que, paradoxalmente, alimentam as vias de resistência popular tanto no núcleo duro do império como na periferia.  A abordagem deste fenômeno e suas decorrências em diversas áreas da vida humana foi o objetivo do organizador desta obra coletiva e proposto para todos os(as) autores(as) no sentido de contemplar tal perspectiva em seus textos desde o recorte metodológico escolhido em suas áreas de especialidade, tanto do ponto de vista histórico como de sua aplicação prática”.

Esse é o sentido e alcance dos textos e das leituras dos autores e autoras convocados para compor a obra, na medida crítica que transparece do seu Sumário:

 

Apresentação, Roberto Bueno

Prefácio – As Razões da América Latina, Maria Cecília Pedreira de Almeida

Prefácio – Os Desafios para a Democracia na América Latina, Delamar José Valpato Dutra

Prefácio – Os Povos Indígenas como Prova das Contradições e Limites do Discurso Institucional Brasileiro, Luís Filipe Trois Bueno e Silva

Posfácio – Por uma Assembleia Popular Instituinte: uma constituinte especificamente política é a melhor solução para nossa crítica, Willis Santiago Guerra Filho

Estudo Introdutório – A recolonização da América Latina: o grande saque imperial, Roberto Bueno

Capítulo I – Determinaciones del Estado dependentiente y razones de las rupturas políticas, Jaime Sebastián Osorio Urbina

Capítulo 2 – A lógica neoliberal e a desconstrução da democracia, Roberto Bueno

Capítulo 3 – Ontologia e soberania: reflexões sobre Agamben e Negri, Miroslav Milovic (in memoriam)

Capítulo 4 – La economia política de lo público y lo privado em la transición al socialismo em Cuba, Jaime Gabriel García Ruiz

Capítulo 5 – Fórmula e formação: deficiências deialéticas para a revolução brasileira, Clarisse Gurgel; Frederico Duarte Irias

Capítulo 6 – Necesidad y possibilidad de la democracia em América Latina del siglo XXI, Edgardo R. Romero Fernández

Capítulo 7 – Civilização e barbárie: sobre resistência e desobediência na América Latina, Caio Henrique Lopes Ramiro

Capítulo 8 – Democracia racial y formas de blanquitud, Ángel Octavio Álvarez Solis

Capítulo 9 – La guerra contra el terrorismo, Rodrigo Karmy Bolton

Capítulo 10 – El pueblo que deviene em población y la emergencia del movimiento feminista en las democracias actuales, Natalia Paz Morales Cerda

Capítulo 11 – O direito de existir como pessoa no mundo do trabalho: o eterno retorno do direito do trabalho, Alessandro Severino Valler Zenni

Capítulo 12 – Ativismo judicial e Estado de exceção: apontamentos a partir da politização da Lava Jato, Victor de Oliveira Pinto Coelho

Capítulo 13 – Autoritarismo líquido e exceção, Pedro E. A. P. Serrano

Capítulo 14 – Democracia y derecho al voto em el Perú: encuentros y desencuentros, Ada L. D. Paccaya; Dennis J. Almanza Torres

Capítulo 15 – Chile: la democracia desafiada, Claudia Heiss Bendersky

Capítulo 16 – Latinoamericanidade, lugares políticos, reencontro de humanidades, José Geraldo de Sousa Junior

Capítulo 17 – Por entre questionamentos às irregularidades: em busca do diálogo, Erika Ribeiro de Albuququerque

Capítulo 18 – A soberania econômica e o desmonte do Estado no Brasil, Gilberto Barcovici

Capítulo 19 – A produção intensificada da desigualdade social na América Latina pelos capitalistas financeiros rentistas, Joelma Lúcia Vieira Pires

Nota biográfica dos (as) autores (as)

 

Esse elenco e respectivos temas traduzem, diz o Organizador, “o objetivo declarado de refletir sobre as condições históricas e as consequências do avanço do neofascismo na América Latina e as formas de resistência que incluem os notáveis esforços no Caribe foram convidados especialistas de diversas áreas, do direito à história, da sociologia e à filosofia, da ciência política à economia. Embora com extensão insuficiente para a complexidade do tema proposto o planejamento deste livro contemplou especialistas originários de tradição intelectual e formação acadêmica a qual pertencem ademais dos(as) autores(as) do Brasil, do Chile, Cuba e México. Resta projetada a expectativa de que proximamente seja publicado segundo título com idêntica proposta a esta presente publicação com abordagens teórico-analíticas que contemplem as vicissitudes dos dias e dos tempos, e que, paralelamente, tomem por preocupação a dimensão normativa do ponto de vista filosófico-política, do que é exemplo o capítulo 7 intitulado “Civilização e barbárie: sobre resistência e desobediência na América Latina”, assinado por Caio Henrique Lopes Ramiro.

 

Os textos incluídos neste livro têm em comum a preocupação com o autoritarismo nas diversas formas que pode assumir historicamente. Ao longo do livro os autores(as) elaboram e analisam conceitos centrais da política nos países periféricos e como a dominação instruída a partir do imperialismo se concretiza na área econômica, sociológica, etc., especialmente em seu movimento de pressão e cooptação realizado na América Latina. Há diálogo interno entre os autores(as) sobre a emersão dos conceitos de ditadura e Estado de exceção, que aparecem horizontalmente em diversos capítulos que compõem o livro”.

 

O perfil dos processos políticos autoritários ora em curso e seu esforço por solapar os fundamentos da democracia guarda similaridades em diversos países, sugerindo sua elaboração por uma matriz comum. A sua elaboração e aprofundamento encontra expressão concreta nas políticas adotadas pelo decadente império norte-americano para a América Latina e Caribe, mas também por suas estratégias subterrâneas de dominação dos países da região. A preocupação e o ataque a esta tradição e seus referenciais antilibertários são calçados nos princípios de reconhecimento da soberania política popular, e este é um dos pontos da análise do capítulo 9 intitulado “La guerra contra el terrorismo”. Assinado por Rodrigo Karmy Bolton, o texto articula a crítica sobre a política externa imperialista com os seus instrumentos implícitos de controle e domínio global, caracterizados por seu perfil de interesses eminentemente econômico orientado a partir de seu complexo industrial-militar conduzido a concretizar guerras de dominação cuja lógica interna requer incessante acionamento.

 

Tal como é possível observar no livro, o eixo teórico e analítico em torno do qual oscilam os textos incluídos neste livro é a preocupação, explícita ou implícita, com a alienação de riquezas nacionais em detrimento do favorecimento de potências estrangeiras, a preocupação com a emasculação da soberania, virtualmente alienada em favor dos interesses da grande potência imperial que espraia a sua decisiva influência tanto através de pressões comerciais quanto militares. Estas últimas são hoje expressas por meios distintos do que os de antanho através de golpes militares. Hoje as pressões militares ocorrem por meios distintos, tendo a inteligência e o mundo digital como eixo coordenador do projeto de (re)colonização, alerta que aparece já no Estudo Introdutório deste e intitulado “A recolonização da América Latina: o grande saque imperial”, texto que tem por foco o que o título expressa com clareza, a saber, a pressão expropriatória realizada pelos EUA sobre a América Latina e Caribe, sem prejuízo de outras áreas do globo em que sobressaiam seus interesses econômicos e geopolíticos.

 

Como se nota no sumário, contribuo com um texto, originado de intervenção que fiz, com o mesmo título, no  XXIII Congresso Internacional de Humanidades (janeiro de 2021), realizado sob os auspícios da UnB (Instituto de Letras)  e da Faculdade de Historia, Geografía e Letras da UMCE (Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación) do Chile. Minha participação se deu na qualidade de Conferencia Inaugural do Congresso. O tema do Congresso:  Poder, Conflito e Construção Cultural nos Espaços Latino-Americanos

 

Eu pretendia fazer aqui uma síntese de meu ensaio, mas não resisto a aproveitar lisonjeado, a que o próprio Organizador, dileto amigo, preparou para a edição:

 

O livro é encerrado em seu capítulo 16 com texto de José Geraldo de Sousa Junior que evoca a cultura latino-americana que este livro sugere ser a chave para a afirmação da soberania latino-americana por intermédio da constituição de identidade cultural com reflexos políticos imediatos capazes de alavancar a unidade popular afirmada estavelemente sobre a diversidade mas não cristalizadamente. A riqueza da heterogeneidade cultural latino-americana precisa ser afirmada e defendida através de ancoragem em pontos de convergência políticos capazes de reunir o continente e marcar a homogeneização relativamente à política externa. Esta é via eficiente para consolidar a soberania nacional dos países da América Latina através do estreitamento das relações internacionais de bloco de poder continental.

 

Intitulado “Latinoamericanidade, lugares políticos, reencontro de humanidades”, o texto de Sousa Junior é sugestivo sobre aspectos culturais e políticos, pois à partida sugere a necessidade de “nos constituirmos um espaço comum latino-americano social e político”. Tal forja comunitária pressupõe menos a superação de dificuldades culturais e interesses comuns divergentes do que, em verdade, o empenho político popular e da superação e final derrota dos interesses da elite de cada um dos países da região cooptadas pelo poder imperial.

O sonho do desenvolvimento coletivo da América Latina esbarra no propósito imperial de dar continuidade ao projeto expropriatório que reclama a aplicação de métodos e estratégias para dar azo a drenagem incessante das riquezas da região, evitando destiná-la ao seu próprio povo. Enfrentar esta continuidade da política invasiva imperial pressupõe a formação da comunidade de afetos para a qual alerta Sousa Jr., que desperte para a aspiração comum para horizonte coletivo. Aponta o autor que dispomos de diferenças que nos separam enquanto povos latino-americanos, mas é preciso reconhecer este como um elemento característico da riqueza que potencializa a união da diversidade sob horizonte compartilhado e não da debilidade que fomenta a homogeneidade”.

 

Um registro final que insisto em fazer é sobre a participação de Miroslav Milovic na edição. Conforme Roberto Bueno, o Organizador, esclarece em nota, o “livro já se encontrava em avançada fase de produção quando ocorreu o falecimento do grande colega e excepcional intelectual Miroslav Milovic (1955, Iugoslávia), por motivos decorrentes da Covid-19, no dia 11 de fevereiro de 2021. Miroslav concluiu seu doutoramento em Filosofia na Universidade de Frankfurt em 1987, e um segundo doutoramento em Estado na Universidade Sorbonne, Paris IV, já no ano de 1990. Foi professor de Filosofia em seu país natal e também na Turquia, Espanha e Japão. Entre nós desempenhou funções docentes na Universidade de Brasília (UnB), inicialmente na Faculdade de Filosofia e, posteriormente, como professor Titular da Faculdade de Direito, ministrando aulas na graduação e pós-graduação”.

 

A referência é, pois, in memoriam. Mas não só, como está na Apresentação, aludindo a essa contribuição, “Milovic chama atenção para a leitura schmittiana de Agamben assim como para os ataques contra a cultura das democracias liberal-parlamentares e o conjunto de sua estrutura normativa, sendo notável a relativização de seu poder de controle sobre os fatos, a respeito do que Milovic é claro ao ancorado em Schmitt destacar que não é o caos não pode ser contido com normas, nem são elas exatamente que o introduzem, senão que está na esfera política e, segundo a gramática schmittiana, na decisão soberana, cujas fronteiras de ação são maleáveis, ora atuando sob a lei, ora sobre ela, não sendo raro que a exceção seja tornada a regra, confirmando assim a relevância da continuada análise sobre as formas de autoritarismo que os diferentes capítulos deste livro, de uma ou outra forma, se preocupam em desenvolver”.

Aproveito para me juntar ao preito saudoso do grande intelectual e colega. A seu respeito, logo do impacto de seu sacrifício na ara de um desgoverno necropolítico, que deixa algo de podre aqui (Hamlet, ato I, cena IV), não posso deixar de dar atenção ao risco de despolitização a que adverte Miroslav. Projetando essa ordem de preocupação, anoto o que diz em obra recente, o livro Política e Metafísica, de 2017, tecendo críticas aos processos de globalização, o quanto eles se desenvolvem como “forma de colonização do mundo”, até para advertir as opções que se colocam para o Brasil, nesse processo, afirmando que “o futuro do Brasil não é seguir os caminhos estabelecidos e metafísicos da globalização. Isso seria muito estranho”, pois, “um país tão grande ficar como uma pequena nota de rodapé na história“.

 

Claro que em seu pensamento filosófico, muito mais instigado por uma percepção sistêmica, racional ao impulso espiral dos grandes processos, hegelianamente falando, Miro se propunha pensar o Brasil num movimento dialético inscrito na historicidade. Não podia sequer imaginar que se pusesse intencionalmente numa vocação redutora para descer ao nível de rodapé, tangido pelo banal malicioso convertido em ação política. Quem poderia imaginar esse regresso? Esse suicídio histórico? Essa politização despolitizadora do social?

Penso que na obra que Roberto Bueno gestou e que agora vem a lume, há uma advertência próxima a que faz Miroslav. Mencionei isso em texto de homenagem. Ao ferir a questão da despolitização da modernidade como um sintoma de tipo de fenômeno profundo de nosso tempo, Miro apontava para o que considerava um fenômeno característico de nosso tempo, a despolitização, indicando a exigência de reinvenção da política como perspectiva de articulação das novas subjetividades.

 

Com ele é também sobre essa condição dramática que devemos estar mobilizados não só para discernir, mas  para agir. Lembra Miroslav, em aguda entrevista que concedeu ao sítio IHU Unisinos, para a EDIÇÃO 438 | 24 MARÇO 2014, na inteligente instigação de Márcia Junges e Ricardo Machado, afinal resumidas no título que indexa seus comentários: “Contemplar para compreender, entender a si mesmo para fazer o bem”, pois, para Miro, “agir no mundo requer, antes de tudo, saber o que é o mundo, o que é a própria natureza, para nos entendermos”. Por isso ele diz: “Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a consequência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou”.

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