Miroslav Milovic: o filósofo da diferença

Foto: Reprodução/Youtube

10 Julho 2021

 

"Nesse fragmento, Miroslav deixa um reacado a todos nós: não podemos fugir das nossas responsabilidades sociais, não podemos ser omissos em relação ao mundo a nossa volta. Paulo é o militante do cristianismo, nós precisamos encontrar nossas causas de militância, seja no direito, na política, na docência, na vida", escreve Rose Dayanne Santos Milovic, companheira de Miroslav Milovic e doutora em Direito na Università degli Studi di Roma, Itália.

 

Eis o artigo.

 

Resumo

Este artigo é dedicado à memória de Miroslav Milovic. O filósofo e professor, nascido em Čačak, na Iugoslávia, e vítima em 2021 da Covid-19 no Brasil. A ideia central é demonstrar que este filósofo deixa como importante legado os seus escritos que devem ser compreendidos como vetores de sua pedagogia militante. O tema da diferença é apresentado como um fio condutor do seu pensamento e como um ponto interdisciplinar entre a filosofia, a política e o direito. A diferença em Miroslav Milovic encontra o universalismo militante de São Paulo e a consequência é a criação do projeto Direito como potência. Assim, ficam explícitas as críticas ao positivismo jurídico e às políticas identitárias. Nos resultados, aparece a vitória da vida sobre a morte. Através dos escritos e da prática docente Miroslav Milovic se imortaliza. Na vida dos alunos e na minha, Miro fez a diferença.

 

Introdução

“Foi com a modernidade que paramos de pensar. O sistema precisa de pessoas para mantê-lo e não de pessoas que pensem” (MILOVIC, 2020). Essa frase era uma constante nas aulas do filósofo sérvio-brasileiro Miroslav Milovic. É preciso contextualizar e compreendê-la em sintonia com o projeto paulino do acontecimento. Isto é, de “abertura aos Outros”, da igualdade das diferenças que porta ao universal.

No Brasil, a consequência de não pensar na esfera política nos levou a trágica marca de mais de meio milhão de mortos na pandemia da Covid-19. O filósofo e professor titular da Universidade de Brasília (UnB) foi uma das vítimas do descaso e do irracionalismo político do Governo Federal. É em mémória ao meu companheiro, Miroslav Milovic, enunciador desses “tempos demoníacos no Brasil” (MILOVIC, 2020), que o presente texto é escrito.

O tema da diferença transpassa a obra de Miroslav Milovic. O questionamento sobre a inclusão dos Outros é tratada criticamente no decorrer da história da filosofia. Desde os autores gregos, aos cristãos até a modernidade. Se Heidegger identifica o esquecimento do ser na história da filosofia, para Miroslav Milovic na história da filosofia a marca é o silêncio sobre os Outros. Em síntese, é a ausência da diferença que constitui o discurso filosófico até a modernidade.

Por que a filosofia se identificou com o discurso da dominação, da identidade e esqueceu de tematizar os Outros, os excluídos, os marginalizados? Porque a filosofia esteve distanciada do social. A reflexão que o artigo busca desenvolver é mais ampla e trata dos perigos deste esquecimento do social e dos problemas de elencar a identidade como padrão na filosofia, na política e no direito .

Em que consiste a filosofia da identidade e a política da identidade? De forma sintética, na negação da diferença. Para utilizar um conceito do século XX, no extermínio da diferença. No passado, a imagem extrema dessa tragédia são os campos de concentração. Nesse ínterim, Miroslav faz uma diagnose da atual situação políticia e utiliza o campo como metáfora. Diz ele: “A gente pensa que somos da cidade, mas no último momento o campo é o espaço político. [...] Aqui fica mais claro o sentido da palavra biopolítica. É uma política sem a política. É uma consequência da despolitização moderna e da perda da liberdade” (MILOVIC, 2017, p. 92).

A biopolítica consiste na vida exposta a morte, na vida nua, como explica o filósofo Giorgio Agamben. A consequência das tragédias políticas é que as verdadeiras vítimas não sobrevivem para testemunhar. “Quem fala é quem sobreviveu. Mas quem sabe o que aconteceu não pode falar. Quem é a verdadeira e única testemunha não pode testemunhar” (MILOVIC, 2009, p. 109). Até porque, “a demolição levada a cabo, a obra consumada, ninguém a narrou, assim como ninguém jamais voltou para contar a sua morte” (LEVI, 1990, p. 47-48). Aos que sobreviveram resta apenas a possibilidade de transformar o luto em engajamento. Em uma militância.

No contexto atual, “muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos isola em uma situação solitária e é, nesse sentido, despolitizada. Acredito, no entanto, que o luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa” (BUTLER, 2018, p. 43). No Brasil, o luto individual se transformou em luto coletivo e, por conseguinte, em luta política. Um relato pessoal: um dos poucos momentos em que me sinto viva, na ausência do meu companheiro, é nas manifestações contra o Presidente Bolsonaro. De certa forma, no encontro dos lutos, há luta.

A hipótese deste artigo é demonstrar que a tragédia no Brasil ocorreu em decorrência da implementação da política da identidade. Fundada no discurso de Jair Bolsonaro, desde a campanha eleitoral, com pautas políticas contrárias às mulheres, aos negros, aos homossexuais, aos indígenas, aos universitários, aos cientistas e a todos que pensam diferente dele. Nisso consiste, o negacionismo da vida e da diferença. Na filosofia, Derrida criticou essa violência da identidade, quando afirmou: “Trata-se de um tempo que não está nem distante nem tampouco concluído onde « nós, os homens », queria dizer nós, europeus, adultos, homens, brancos, carnívoros e capazes de sacrifícios” (DERRIDA, 2010, p. 34).

O objetivo principal é demonstrar que o legado filosófico de Miroslav Milovic tem um papel fundamental como vetor para o presente e para as próximas gerações, pois consiste em uma pedagogia militante.

 

Fundamentação teórica

A importância da diferença na obra de Miroslav Milovic se verifica, inclusive, no diálogo que ele constroi em seus textos com outros filósofos e pensadores. Segundo ele: “afirmando a diferença Derrida quer mostrar as possibilidades do Novo. O ser humano foi criado para que o Novo exista no mundo, afirmava Santo Agostinho. Todavia, o ser humano nunca chegou até a possibilidade de superar a metafísica” (MILOVIC, 2021b).

Pensar a alteridade é fundamental para construir uma ética solidária e práticas políticas democráticas. A crítica de Miroslav à metafísica pode ser entendida como uma crítica ao sistema. Isto é, ao capitalismo. E a sua feição mais perversa: o neoliberalismo. “O sistema acaba com a vida”. Essa frase anunciada por Miroslav pode ser compreendida como um presságio da tragédia social vivenciada no Brasil na pandemia da Covid-19 e, consequentemente, das razões que o levaram a morte.

Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada no país para investigar o descaso com que a pandemia da Covid-19 foi tratada no Brasil estão sendo analisados casos de corrupção, omissão e proprina na compra de vacina. A saúde no sistema capitalista é uma mercadoria, mas se forem confirmadas as denúncias contra o Presidente da República ficará explícito que a vida no Brasil tem valor de troca e que, portanto, o Governo Bolsonaro lucrou com a morte de milhares de brasileiros. A política identitária do atual Presidente negou o diálogo e as recomenadações da Organização Mundial da Saúde (OMS), de vários médicos e cientistas. Induzindo a população a incorrer em práticas equivocadas e colocando em risco a vida dos outros. Nesse sentido, Miroslav alertava: “essa inabilidade do pensamento termina, no último momento, nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa se torna cúmplice dos crimes” (MILOVIC, 2006a).

Para contrapor os perigos das políticas identitárias e da filosofia da identidade será utilizado como interlocutor dos textos de Miroslav Milovic o pensamento de São Paulo. O livro escrito pelo filósofo francês Alain BadiouSão Paulo: a fundação do universalismo” marcou significativamente as ideias de Miroslav. No livro, Badiou deixou evidenciado que as epístolas de Paulo podem ser lidas como documentos e fontes históricas. A força das Cartas de São Paulo estão nas ideias por ele anunciadas não nas interpretações feitas pela Igreja ou pelas lentes religiosas. A feição universal da diferença extraida das epístolas paulinas pelo olhar comunista de Badiou encantou Miroslav Milovic. O resultado veio sob forma de publicação: Ius sive potentia: Paulo e Spinoza, texto escrito por Miroslav em 2018.

Na Carta aos Gálatas, Paulo anuncia a potência da diferença: “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl. 3.28). Nessa perspectiva, as diferenças não podem ser negadas ou destruídas, pois constituem a afirmação da nossa autencidade. “O motor da convicção universalista de Paulo é a diferença” (BADIOU, 2009). A repercussão política desse recado paulino é forte e pode ser representada pela metáfora do vazio nas palavras de Miroslav Milovic: “criticar a Identidade, afirmando a diferença, quer dizer também que o lugar da política e do direito tem que ficar vazio, para não criar as novas formas da ideologia” (MILOVIC, 2006b, p. 257).

O universalismo de Paulo é o motor da utopia da diferença em Miroslav Milovic. Então, surge a pergunta: quais as práticas e os resultados dessa aproximação teórica entre Paulo e Miroslav para construção de uma pedagogia crítica para o direito?

 

Desenvolvimento

“Do tensionamento das cartas paulinas com a filosofia contemporânea que se volta para sua leitura, proponho uma reinterpretação ontológica da relação entre lei e justiça, do direito como potência, em Paulo” (MILOVIC, 2019, p.357). Essa afirmação de Miroslav pode sintentizar as razões que promovem seu encontro com Paulo.

É importante recordar que vários filósofos e pensadores se ocuparam das epístolas de Paulo. Heidegger, por exemplo, “recorre à experiência da fé do cristianismo primitivo colocando-o contra sua moderna objetivação histórica. A escolha de Paulo, portanto, não é casual” (HEBECHE, 2005, p. 16). As cartas paulinas são pontos de partidas, mas não necessariamente levam ao mesmo ponto de chegada. Enquanto Heidegger busca “se livrar da metafísica dos universais” (HEBECHE, 2005, p. 51), Badiou com Paulo quer mostrar a universalidade da verdade, isto é, que não existem verdades parciais: “a materialidade do universalismo é a dimensão militante de toda verdade” (BADIOU, 2009, p. 107).

Miroslav busca através das epístolas de Paulo refletir sobre os pressupostos do direito. A tensão entre a lei e a justiça. Pensar o direito não como violência, mas como potência. Nisso consiste o Projeto do Direito como potência desenvolvido por Miroslav Milovic. “A justiça paulina, aqui anunciada no sentido de abertura para o Outro, é o sinal talvez da democracia possível. Estudar direito, no final das contas, significa entender seu próprio fundamento democrático” (MILOVIC, 2019, p. 362).

A crítica filosófica feita por Miroslav ao positivismo jurídico aparece como afirmação da nossa autenticidade e a possibilidade de mudança do mundo. O direito precisa se aproximar à justiça. Essa é a tarefa de todos, inclusive, dos estudantes do direito. Desistir do direito é desistir da nossa potência, do direito que pode nos afirmar no mundo. Nessa perspectiva, Miroslav vai além do dualismo (positivismo versus jusnaturalismo) e se mostra mais criativo que Walter Benjamin, para quem “a institucionalização do direito é a institucionalização do poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência” (BENJAMIN, 1986, 172). Se Benjamin desenvolve a concepção messiânica de justiça, o marxismo paulino de Miroslav é mais ousado, “porque de deus somos co-opérarios” (1 Cor. 3:9), isto significa que “ele não pode nos ajudar, mas nós precisamos ajudá-lo” (MILOVIC, 2019, p. 361). Nesse fragmento, Miroslav deixa um reacado a todos nós: não podemos fugir das nossas responsabilidades sociais, não podemos ser omissos em relação ao mundo a nossa volta. Paulo é o militante do cristianismo, nós precisamos encontrar nossas causas de militância, seja no direito, na política, na docência, na vida.

 

Resultados e discussão 

O projeto do Direito como potência anunciado pelo professor Miroslav é um convite à militância. Uma possibilidade de abertura ao social, de afirmação da diferença. Pensar o direito em seu potencial emancipatório e não como instrumento de dominação. Esse é o recado do filósofo-sérvio brasileiro, em especial, no texto publicado postumamente: “Direito ao corpo”. É díficil seguirmos este projeto sem a menta inovadora de Miroslav Milovic, mas certamente isso é o que ele quer de nós: Sejam vigilantes, permaneçam firmes na fé (1 Cor 16:13).

A imagem acima corresponde a uma entrevista realizada na casa de Miroslav Milovic pelo estudante de filosofia Igor Vinhal. Publicada em 23 de abril de 2006 no jornal Correio Braziliense. O título da matéria é “Pensem bem, senhores”. Esse fragmento nos remete ao começo do nosso artigo e a frase recorrente nas aulas: “Foi com a modernidade que paramos de pensar. O sistema precisa de pessoas para mantê-lo e não de pessoas que pensem” (MILOVIC, 2020).

Precisamos pensar. Essa é a mensagem filosófica de Hannah Arendt contra os regimes totalitários e é também a mensagem que Miroslav anunciava aos estudantes contra os perigos do tempo presente. Pensar significa transformar o mundo. O Brasil tornou-se o cenário da morte. O pior local para se estar na pandemia da Covid-19. O Governo conseguiu ser mais letal que o vírus. Embora as vidas dos nossos entes queridos não voltem, é preciso fazer justiça em memória das vítimas. É necessário acabar com a política negacionista de Bolsonaro. “Eles dizem que conhecem a Deus, mas negam isso com os próprios atos pois são cheios de ódio, desobedientes e incapazes de fazer qualquer obra boa” (Tito 1:16).

 

Considerações finais 

Com Miroslav Milovic, aprendemos a compreender a importância da diferença na política, na filosofia e no direito. Com Paulo, o universalismo da fé e o acontecimento da ressurreição como uma forma de reinvenção da vida. Nisso consiste a militância pedagógica de Miroslav Milovic: “O universal, talvez, só possa aparecer neste caminho da afirmação da diferença” (MILOVIC, 2019, p. 370). Assim como, para Paulo “o cerne da fé é a certeza de que a vida vence a morte” (1 Cor 15).

A docência é uma forma de praticar e respeitar a diferença. De inclusão dos Outros. A excelência de Miroslav Milovic como filósofo está na sua genialidade para tratar dos temas; como professor, no seu engajamento diário para despertar nos estudantes o interesse para pensar e transformar o mundo. Segundo Rubem Alves, “ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais.” Miroslav Milovic, portanto, permanece vivo em nós.

 

Referências

ALVES, Rubem. A alegria de ensinar. São Paulo: Ars Poética, 1994.

BADIOU, A.. São Paulo: A fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo, 2009.

BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação Willi Bolle. São Paulo: Editora Cultrix, 1986.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Trad. de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro, Record, 2018.

DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010

HEBECHE, Luiz. O Escândalo de Cristo “ensaio sobre Heidegger e São Paulo. Ijuí: Ed. UNIJUÃ, 2005.

LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

MILOVIC, Miroslav. Comunidade da diferença. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ijuí, RS: Unijuí, 2004.

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