A guerra não terá uma resolução pacífica nem será possível voltar atrás, afirma Miguel Mellino, professor da Università di Napoli L’Orientale
A guerra entre a Ucrânia e a Rússia já gerou mais de 4,3 milhões de refugiados, segundo dados do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – Acnur, aumentando o número de excluídos que são obrigados a abandonarem seus países em decorrência dos efeitos das guerras, da estagnação econômica e do novo regime climático.
Para além das implicações sociais visíveis geradas pela guerra, as inseguranças relativas à fome e à guerra nuclear, e as mudanças geopolíticas em curso, a conjuntura internacional recoloca em pauta a discussão sobre conceitos centrais do pensamento decolonial. “Parece importante revisar as ideias e conceitos que temos de imperialismo, decolonialismo, Estado-nação, modernidade capitalista ou os seus contrários, como modernidade colonial ou decolonial para produzir uma análise porque, neste momento, na constelação decolonial, não há uma posição política ou analítica dominante”, disse Miguel Mellino, doutor em Ciências Antropológicas e Análise de Mudanças Culturais pela Università degli Studi di Napoli L'Orientale, na conferência intitulada “Pulsão decolonizadora e desafios. Pós-colonial e decolonial na contramão da pandemia e da guerra”, ministrada virtualmente na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última terça-feira, 19-04-2022.
O comentário do professor da Università di Napoli L’Orientale ilustra as divergências entre acadêmicos, teóricos e analistas políticos que analisam e comentam a conjuntura internacional e expõem suas posições pró ou contra as partes envolvidas no conflito, e as dificuldades de tomar partido em defesa de um ou outro país em uma situação complexa e multifacetada. Entre os que analisam a guerra, destaca Mellino, “há uma parte que manifesta sobretudo sua solidariedade à resistência ucraniana e vê a Rússia como um imperialismo moderno ou como um colonialismo moderno. Outra parte, compreende a situação desse mesmo modo, mas tende a enfatizar que a expansão do capitalismo global e ocidental até o Leste Europeu gerou um estrangulamento e, portanto, a Rússia está em uma posição reativa. Então, temos que ver como entendemos bem essas coisas [conceitos] para elaborar um diálogo e análise”.
A complexidade desta guerra evidencia a necessidade de teorizar a partir das diferentes contingências e não a partir de um sistema teórico que filtre tudo que se passa na realidade e nas diferentes contingências. “Este é um vício da esquerda tradicional: ter um esquema através do qual filtrar tudo que se passa. É preciso teorizar desde dentro da contingência. E, teorizar a contingência, às vezes, significava colocar em questionamento a própria posição teórica”, observa.
Autor da tese “Da minoria à diáspora. Discurso étnico e percepção dos fenômenos migratórios na sociedade global”, Miguel Mellino também chama a atenção para as narrativas diferenciadas em relação aos refugiados ucranianos que estão migrando para os países da Europa ou para os EUA em comparação com as narrativas anteriores sobre os refugiados dos países do Oriente Médio e da África, que foram obrigados a saírem de seus países em decorrência de outras guerras, como a da Síria, a do Iêmen e a da Líbia. "Há uma construção narrativa que nos faz ver os refugiados ucranianos como parte do Ocidente, da Europa. Isso gera uma crise diferente em relação à situação dos refugiados da Síria, do Afeganistão, do Oriente Médio, da Palestina e da África. As crises geradas nesses casos foram administradas com muita violência por parte da Europa. Mas, para acolher os refugiados ucranianos, a União Europeia adotou uma disposição que permite a eles ter uma permissão de estadia em países europeus por três anos sem ter que passar por todos os trâmites para obterem uma solicitação de acesso. Eles receberam uma autorização de emergência que os autoriza a entrar legalmente ou se legalizarem em todos os países europeus durante esse período. Isso mostra a seletividade racial em relação aos refugiados e também nos mostra algo sobre o qual alguns autores têm insistido: que a linha da cor é algo subjetivo. Que a raça e o racismo não passam exclusivamente pela linha da cor, que é muito móvel. De um momento a outro, refugiados ucranianos passaram a ser ‘brancos ocidentais’. Mas, há três anos, eles não teriam sido considerados da mesma maneira. Teriam sido considerados eslavos”.
O conflito entre a Rússia e a Ucrânia e as dificuldades do Ocidente em encontrar uma solução para cessar a guerra mostram que, diferentemente de anos atrás, a colonização dos povos não é algo restrito aos povos colonizados do Sul, mas é um processo em curso também nos países do Norte. “Antigamente, a descolonização estava associada somente aos povos colonizados. Não era vista como uma missão ou tarefa histórica que teriam os povos colonizados para sair de sua própria subalternidade. Nos últimos anos, se fala em descolonização também no Norte do mundo e isso é algo bastante novo, um fenômeno dos últimos 15, 20 anos. A ideia de descolonizar os saberes, a cultura e a política dos colonizadores ou da cultura europeia moderna não é algo que estava dentro do projeto anticolonial e decolonial dos pensadores tradicionais dos países do terceiro mundo”, pontua.
De acordo com o pesquisador, tanto a guerra quanto a pandemia podem ser compreendidas como expressões da crise do Ocidente e da Europa, ou seja, a crise de um projeto político e econômico iniciado com a queda do Muro de Berlim e a expansão da globalização. “Quando trato da crise do Ocidente ou da Europa, não entendo por Ocidente simplesmente uma entidade geográfica. Entendo sobretudo um significante, isto é, o núcleo, uma parte da geografia imaginária moderna. O que entendo por Ocidente ou Europa não é o continente europeu ou uma localização especificamente geográfica – embora o ponto de partida seja esse –, mas um significante de um sujeito definido e de uma espécie de teologia política. Nesse sentido, quem vê a história colonial se dá conta de que o Ocidente, entendido como significante, é guerra; essa é sua missão cultural e política. Nesse sentido, está claro que o Ocidente é guerra porque se apresenta como um delírio maniqueu: de uma parte está o bem, o ocidental, a democracia, os direitos e, de outra parte, o mal, o contrário a tudo isso”.
Na avaliação dele, a guerra é “embrião de um mundo multipolar”, que será pós-ocidental e pós-europeu. “O que está acontecendo, de modo conflitivo, é a passagem desta hegemonia, em que se anuncia um mundo não mais dominado somente pelo lado ocidental, mas no qual o domínio eurocêntrico será somente uma parte. Muitos especialistas estão teorizando que vamos viver uma fase de bastante desordem global. Está terminando um sistema que começou no século XVI, que teve o protagonismo dos EUA nos últimos cem anos, e está iniciando outra coisa, multipolar, na qual Ocidente será só uma parte do sistema global. Com isso, o que está terminando também é a globalização, sobretudo a que conhecemos nos últimos 30 anos, chamada de globalização neoliberal. Ela está implodindo, está em decomposição em várias esferas geopolíticas e econômicas. Uma das consequências será não mais a hegemonia do dólar”. E acrescenta: “Esta é uma crise que não tem retorno. Este é um ponto importante: não será possível voltar atrás. A guerra não tem retorno, não tem solução nem uma resolução pacífica. A única solução que pode ter é ou o desenho de um novo mapa geográfico da Europa ou uma catástrofe militar. Mas não tem uma solução pacificadora; qualquer solução será temporária”.
Um dos efeitos mais imediatos do atual conflito entre Rússia e Ucrânia, destaca, é o retorno da estagnação econômica e do aprofundamento das desigualdades sociais de raça, gênero e diferentes setores da população. “O aprofundamento econômico e o aprofundamento das desigualdades, a pandemia, a crise ambiental, a guerra, a corrida armamentista que é proposta por boa parte do Ocidente para sair dessas crises, a carestia ligada aos efeitos negativos que vamos ter com essa guerra – que não vai durar pouco tempo – e a ameaça de catástrofe nuclear, são diferentes dimensões de um modo de produção muito próxima de um colapso. A crise do Ocidente contém em si o colapso de um modo de produção, ou, dito de outro modo, todas essas coisas levam a um esgotamento de um modo de produção econômico que chegou a uma fase terminal e que se mostra cada vez mais insustentável em todas as suas dimensões: econômica, social, ecológica, de simples convivência, de segurança ontológica. O que estamos vivendo através das várias crises é um esgotamento da modernidade capitalista global”.
Na conferência, Mellino mencionou obras de autores que podem servir como chave de leitura para compreender as transformações em curso no presente. Entre elas, destacam-se Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade (1986), de Ulrich Beck, O longo século XX (1994), de Giovanni Arrighi e The Colonial Present: Afghanistan, Palestine and Iraq (2004), de Derek Gregory.
Segundo Mellino, em Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade, o sociólogo alemão Ulrich Beck apresenta um pensamento “ao qual devemos voltar para encontrar chaves de leitura do contemporâneo, sem termos de ‘casar’ completamente com o paradigma do autor”. A ideia central proposta por Beck, explica, é que “a modernidade, como estava se desenvolvendo a partir do capitalismo global dos anos 1970 e 1980 – época em que a energia nuclear era muito sentido –, produzia mais mal do que bem”.
Capa do livro Sociedade de Risco (Foto: Reprodução)
Nesta obra, o economista político italiano e teórico do sistema-mundo, ex-professor da Universidade Johns Hopkins, defende a tese de que “a última fase do domínio ocidental do sistema-mundo - a última fase empregada com a passagem, como descreve Arrighi, da hegemonia da Inglaterra aos EUA, que se produz entre a Primeira e a Segunda Guerra mundiais – está terminando”. Esta guerra esta mostrando, acrescenta, “a crise definitiva do Ocidente. O que está se esgotando é o que iniciou em 1989, com a queda do Muro de Berlim e o início da globalização, ou seja, um projeto de governança global unipolar, centrado sobretudo nos Estados Unidos da América”.
Capa do livro O longo século XX (Foto: Reprodução)
Nesta obra, o geógrafo britânico, professor de Geografia da Universidade de British Columbia, em Vancouver, analisa o imaginário orientalista durante a guerra no Afeganistão por parte dos EUA. De acordo com Mellino, “na obra há elementos importantes porque destaca que o imaginário orientalista através do qual se produz a legitimação da intervenção norte-americana no Afeganistão reproduz a lógica do ‘eles e nós’, como se houvesse uma marca identitária. O que o autor diz sobre o Afeganistão é certo também com respeito à história da Rússia, mas de outra maneira. Ele disse que a destruição do Afeganistão foi produzida pela ação do imperialismo moderno. Não se pode pensar a história afegã como algo que foi produzido separadamente do mundo”.
Capa do livro The Colonial Present (Foto: Reprodução)