29 Março 2022
"O abandono da atual disciplina celibatária, longe de ter de ser considerado como uma rendição ao 'espírito dos tempos', tornar-se-ia ocasião para um verdadeiro enriquecimento da ação pastoral da Igreja", afirma o teólogo italinano Giannino Piana, em artigo publicado por Il Mulino, 25-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Giannino Piana é ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, além de autor de uma importante obra de Teologia Moral Social.
A questão do celibato dos padres retorna há tempo com insistência no âmbito da opinião pública católica (e não só) como uma questão crítica e de difícil resolução. As intervenções têm sido frequentes nos últimos anos: do sínodo amazônico ao alemão, até o recente simpósio do Vaticano sobre o ministério. As posições presentes no âmbito da hierarquia da Igreja são muito variadas a este respeito - como se pode constatar pelos documentos redigidos em tais circunstâncias. O que está exigindo uma mudança na atual disciplina é, sem dúvida, a falta de clero à disposição das igrejas locais. No passado, o pedido dessa mudança vinha sobretudo dos episcopados do Terceiro Mundo, onde essa escassez era mais consistente; hoje vem também dos episcopados ocidentais devido à redução drástica, nas últimas décadas, das vocações sacerdotais.
Para além dessa motivação, aliás questionável - não poderia ser essa a ocasião para restituir aos leigos as funções que lhes competem ampliando os espaços de participação eclesial? – despontam, inclusive a nível hierárquico, outras mais nobres, em primeiro lugar aquela relativa à liberdade de escolha, já que não há vínculo indissolúvel entre ministério ordenado e matrimônio - como é aliás demonstrado pela presença na Igreja Católica de uma disciplina distinta: aquela das Igrejas cristãs orientais, que permite a escolha do matrimônio também para quem ingressa no ministério.
Uma reflexão sobre o tema já havia sido aberta durante a celebração do Vaticano II (1962-1965), mas o debate (acalorado) que começou a se desenvolver foi interrompido após a intervenção do Papa Paulo VI, que advogou a questão para si, prometendo intervir como aconteceu com a publicação da Sacerdotalis caelibatus, que nada mais fez que confirmar a doutrina tradicional da Igreja Católica Latina. A principal razão aqui apresentada é de natureza pastoral e consiste na afirmação de uma maior liberdade interior e de um maior espaço de tempo a ser dedicado ao serviço eclesial por aqueles que estão livres dos laços matrimoniais e familiares. A motivação é altamente questionável. A situação de quem exerce o ministério presbiteral em condição de estabilidade afetiva como aquela matrimonial é certamente melhor do que a situação de quem escolheu o ministério, porque sente que pode oferecer esse serviço à comunidade cristã, e se vê obrigado para ter acesso a dar seu consentimento ao celibato, muitas vezes vivenciando essa condição com frustração, com evidentes repercussões negativas também no próprio exercício do ministério.
Se, além disso, forem repercorridas as etapas pelas quais se chegou à disciplina canônica ainda vigente, sancionada com autoridade pelo Tridentino (1545-1563), percebe-se que a motivação pastoral muitas vezes funciona como cobertura para outras motivações não explicitadas, mas que de fato desfrutam de considerável relevância.
A primeira (e talvez a mais importante) está ligada à visão negativa da sexualidade, que foi se afirmando no período da patrística - é sintomático que a comunidade apostólica não levante o problema - por influência de correntes neoplatônicas e gnósticas, que assumiram um papel de grande importância na elaboração dos costumes eclesiais e, em particular, na formação dos futuros padres, centrada na remoção do sexo e na advertência contra o perigo representado pela relação com a figura feminina.
A segunda motivação é de natureza estritamente econômica, e consiste no desejo de conservar intacto o patrimônio dos bens eclesiásticos, preservando-o do risco da transmissão aos filhos ou netos caso o sacerdote viesse a ter uma família própria. Esta preocupação exerceu (e ainda exerce em parte) um papel importante na vida da Igreja, que ainda hoje luta para assumir a pobreza, tanto de bens econômicos como de poder - as duas coisas estão intimamente ligadas e interdependentes - como estilo de vida.
Esse entrelaçamento de motivações ainda subsiste nas raízes, embora tenha assumido contornos diferentes em relação ao passado. O Vaticano II marcou uma virada nesse sentido (não totalmente concluída) tanto no que diz respeito ao juízo sobre a sexualidade - uma visão mais positiva do sexo emerge dos documentos conciliares, em especial da Gaudium et spes - quanto no que diz respeito à questão econômica com a exigência de um retorno (na realidade não totalmente implementado) à pobreza evangélica. A motivação que adquire o primeiro lugar é, portanto, hoje, como mencionado, aquela pastoral, que, aliás, se choca com uma instância pastoral não menos importante, a saber, o dever dos bispos de fornecer à comunidade um número suficiente de ministros para o desenvolvimento da vida comunitária, que tem na celebração da Eucaristia seu momento culminante.
Daí o pedido de revisão da disciplina eclesiástica sobre a obrigatoriedade do celibato, que muitos fiéis consideram uma disciplina anacrônica, que, ao impor por lei uma escolha a que corresponde a uma vocação particular e que, portanto, deveria ser totalmente livre, termina criando, por um lado, situações de desconforto existencial, decorrentes da busca de extenuantes compensações afetivas e, por outro, diminuir o próprio valor da virgindade - na realidade, o que está em jogo é o celibato (e ainda na mentalidade comum de fiéis as duas coisas coincidem) - graças a uma perda de credibilidade devido ao contratestemunho daqueles que deveriam vivê-la.
A obrigatoriedade do celibato é considerada por muitos fiéis arcaica e anacrônica, pois ao impor por lei uma escolha que deveria ser totalmente livre, acaba por criar situações de desconforto existencial.
A proposta que por vários setores é apresentada e então aquela de ter acesso a uma dupla tipologia do ministério: celibatário e casado. Certamente o ministério celibatário não deve ser banido, onde for a expressão de uma livre escolha, fruto de uma autêntica vocação à virgindade. Há boas razões para afirmar que o celibato, vivido na alegria de uma livre escolha, constitua, além de sinal da dimensão escatológica do mistério cristão, um status que oferece uma particular disponibilidade interior para viver o ministério ordenado. Mas isso não exclui a plausibilidade da presença de um ministério uxorado, que, por sua vez, tem possibilidades consideráveis também do ponto de vista pastoral: basta pensar como é importante a experiência familiar para enfrentar de maneira eficaz questões da vida cotidiana que envolvem a maior pare dos fiéis.
A questão então é: como conceber a relação entre as duas tipologias de ministério? Em outras palavras, como delinear uma práxis pastoral que assuma a contribuição diferenciada delas, tornando transparentes as duas dimensões constitutivas do mistério cristão, a instância encarnatória e a tensão escatológica?
Trata-se - esta é a proposta que tomo a liberdade de apresentar - de dar vida à presença dentro da Igreja de dois papéis diferentes no exercício do ministério ordenado. A primeira (e mais difundida) - a do ministério uxorado - deveria ser proposta como forma de serviço residencial oferecido aos fiéis que vivem na região por pessoas reconhecidas como líderes espirituais capazes de fazer crescer a comunhão (não seria esta talvez a função dos presbíteros na comunidade cristã primitiva?).
A segunda modalidade - aquela celibatária - deveria desempenhar uma função mais missionária, no sentido de se dedicar ao desenvolvimento de formas de presença em âmbitos onde é cada vez mais urgente uma obra de evangelização ou destinada a cuidar de áreas específicas em que se desenvolve a vida familiar, profissional e laboral em geral; áreas que requerem uma intervenção mais direcionada e especializada.
O abandono da atual disciplina celibatária, longe de ter de ser considerado como uma rendição ao "espírito dos tempos", tornar-se-ia ocasião para um verdadeiro enriquecimento da ação pastoral da Igreja. A possibilidade de acesso ao ministério em ambas as condições de vida, além de constituir um ato de respeito à liberdade pessoal e permitir escolhas humanamente mais sólidas por serem mais serenas, favoreceria a realização de uma complementaridade no exercício do ministério presbiteral, hoje necessária para interpretar corretamente a complexidade das situações e responder eficazmente às exigências de uma condição de secularização que torna cada vez menos perceptível a demanda de fé.
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O celibato dos padres: uma proposta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU