09 Março 2022
E se chegassem a casa e o vosso filho tivesse vendido uma série de coisas que considerasse supérfluas e inúteis para apoiar uma causa? Qual seria a vossa reação? É isso que Abel (Louis Garrel) e Marianne (Leticia Casta) são confrontados logo no início de “A Cruzada”, um projeto escrito pelo falecido Jean-Claude Carrière e assinado pelo próprio Louis Garrel. Da sua trotinete ao vestido Dior da mãe, passando pelos relógios do pai, livros e garrafas de vinho, o filho do casal (interpretado por Joseph Engel) viu-se livre para angariar dinheiro para um projeto cujo objetivo é “salvar o planeta”.
“A Cruzada” fez parte do Festival de Cannes, inserido na efémera seção “Cinema para o clima”. Foi na Croisette que nos encontramos com Garrel e falamos deste seu filme, o qual lança o debate sobre a nova geração de crianças e adolescentes ativistas ecológicos através da estrutura de um filme de aventuras: a geração “Greta Thunberg”.
A entrevista é de Jorge Pereira Rosa, publicada pelo site de cinema português C7nema, 08-03-2022.
Quando começou a trabalhar no filme foi em 2017 e a história era bastante diferente, certo?
Sim e inicialmente não havia crianças na história. O Jean-Claude Carrière (1931-2021) deu-me o primeiro tratamento do roteiro. Ele explicou-me de algumas crianças que falavam do tema climático, da injustiça perante elas, mas eu não era militante sobre o tema e não me via a ir por aí. Três meses depois, a jovem sueca Greta Thunberg fez uma greve de fome e tornou-se notícia. Liguei ao Jean-Claude e perguntei: és um profeta ou quê? (risos). Foi aí que senti-me forçado a fazer o filme.
Há dez anos, para mim, não havia um problema climático. Pensava nos meus sapatos, nas minhas calças, em mim. Não tinha consciência global. Já o Jean-Claude, além de ser um homem muito inteligente, curioso perante o mundo, e um cinéfilo não obsessivo, era assim, uma pessoa consciente. Alguém com um conhecimento geográfico e cultural gigantesco.
O que queria fazer com ele era um filme que tocasse no tema, mas que não fosse militante, um filme de propaganda. Não queria definir o bem e o mal, queria uma sátira que falasse dos problemas, mas que desse prazer ao espectador de o assistir.
Aquilo que mostra no seu filme são crianças extremamente maduras e inteligentes nas suas reflexões. Ao contrário, os adultos são frequentemente incompreensíveis e mostram-se ultrapassados no seu pensamento…
As coisas são assim. Veja, há 20 ou 30 anos que temos cientistas a falar em problemas climáticos e a geração dos 40 e 50 anos não ligou, nem liga a isso. As crianças de hoje, e não é por serem mais gentis ou abertas que nós, têm uma reação natural da espécie humana de instinto de sobrevivência. E querem o poder. A situação é urgente e aquilo que querem mudar é para daqui a 2 ou 3 anos, não mais. Veja-se o Covid-19. Com o medo de morrer, as coisas pararam. Eles querem fazer o mesmo. Eles querem parar tudo e encontrar uma solução, como se encontrou com a vacina.
Os adultos estão ultrapassados, como disse, mas as mulheres no filme parecem mais receptivas ao que os jovens têm para dizer. Vê assim o mundo?
O filme começa com uma ingenuidade, mas simultaneamente é erudito. O que amo na personagem da Letícia [Casta] é que a sua ingenuidade se torna lucidez. Não digo que todas as mulheres são assim. Não gosto muito de fazer generalizações. Neste filme tinha de haver um equilíbrio entre os dois. Esta é uma aventura nos tempos que vivemos, mas algo com uma perspectiva divertida e não catastrófica.
E o que acha desta “geração Greta Thunberg”?
As crianças de hoje, como a Greta, já não se dizem ecológicas de forma gentil. No nosso tempo, nós não dizíamos: as tuas ações, a tua forma de viver, afeta o habitat, a Terra, as pessoas. O problema muitas vezes é que os defensores da causa ecológica são vistos como simpáticos, plantam tomates e consomem produtos biológicos etc. Têm um discurso muito New Age.
Esta nova geração não é assim, percebeu que existem 15 mil cientistas que dizem que temos um problema, como no Canadá onde encontramos temperaturas como 50º C. Eles querem um Plano Marshall para combater a emergência climática. Não querem passar da quinta mudança para a quarta, querem travar. Acho isso genial. Estamos perante algo diferente, uma outra coisa além do tradicional comunismo ou outra facção política. (…).
As palavras usadas na luta pelo clima devem mudar. Veja-se o nome “Partido Ecológico”. São palavras demasiado gentis. Por isso a Greta é tão forte e toca em tanta gente. Ela não tem medo, mete medo e se for preciso faz coisas alucinantes… insulta. Não usa eufemismos. E mesmo que alguns adultos a ataquem, há outros que a defendem. Ela tem uma grande inteligência política. (…).
Tipos como o Donald Trump eram uns loucos. Aquela posição cética, que entrava no psicótico e paranoico. E a Mídia dá atenção. Um tipo diz que a gravidade é mentira e no dia seguinte está nos jornais. Existem 15 mil cientistas falando de emergência climática e não se liga. Há que mudar isso, essa postura. E note-se que até entendo essa atitude. Mete demasiado medo o que os cientistas dizem e as pessoas nem querem pensar nisso. Por isso, volto a insistir que as palavras devem mudar. O termo ecologia é demasiado simpático.
Sugere uma nova forma de comunicação e marketing?
Sim, podemos dizer isso.
Ao ir buscar crianças para uma aventura, fez lembrar a tradição americana dos anos 80, do Spielberg e de outros cineastas. Como vê a infância?
A infância é um terreno onde ainda não pagamos impostos, não pensamos em campanha eleitoral e a racionalidade, o ver todos por todos os prismas, não é total. A infância é um mundo de aventura. Quando somos pequenos, dizemos que quando crescemos fazemos isto e aquilo, mas é muito raro isso se cumprir. Por isso, o prazer deste filme é de ser uma verdadeira aventura com crianças.
E gostaria de fazer um grande filme de aventuras?
Sem dúvida. Adorava encontrar um tema e ter 250 milhões de dólares para o fazer (risos). Bem, o mundo do confinamento é de um filme desses valores, mas foi feito com quase nada. Foi o Emmanuel Macron que deu uma ajudinha (risos). Ele foi um diretor de produção genial. (risos)
Mas sinceramente acho o Jean-Claude Carrière profético e aquela história de levar o mar ao deserto tem uma fonte. No século XIX, um francês, nos tempos que a Argélia fazia parte do império colonial, um dos responsáveis pelo Canal do Suez, tinha um projeto de um mar interior para baixar as temperaturas e tornar os campos férteis. Na época, não havia meios e técnicas para tal e a ideia foi abandonada. Mas o Júlio Verne escreveu um livro, “A Invasão do Mar”, onde imagina isso. Tenho tanta confiança nas capacidades proféticas do Carrière e por isso creio que isso vai acontecer (risos). O filme pode aparentar ser absurdo, mas é um filme de antecipação. É por isso que era importante terminar com um sinal de esperança.
Há um filósofo muito inteligente, que se chama Bruno Latour, que diz que esta nova concepção do Homem com a Terra é uma verdadeira revolução. E é.
O ‘La Croisade’ é um filme para o cinema, mas de alguma forma tem uma certa estrutura de série. Para si, qual é a diferença entre fazer uma série ou fazer um filme para cinema?
No cinema vemos as coisas em conjunto. Nas salas, em especial nos festivais, quando um filme que amas não agrada à pessoa que está ao teu lado, há uma espécie de tristeza. As séries são algo mais masturbatório. O cinema é mais uma orgia (risos). A minha cultura não é muito de séries. É como no atletismo, gosto dos sprints, não gosto das maratonas. Nos Jogos Olímpicos vejo sempre os 100 metros, mas não as corridas de fundo. É um gosto pessoal.
E crê que o seu filme pode fazer um percurso especial além cinema, por exemplo, nos estabelecimentos de ensino?
Adoraria. Há muitos jovens que já têm consciência climática, mas nem todos. E não é apenas fazerem manifestações e greves, mas pensarem em coisas assim, como as que vemos no filme. Verdadeiros projetos de vida…
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“Greta Thunberg tem uma grande inteligência política”. Entrevista com Louis Garrel, diretor de ‘A Cruzada’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU