O ponto de vista de Maidan: Somos todos ucranianos

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10 Março 2022

 

Nós estamos com os ucranianos sem nenhuma hesitação. Nós estamos com os ucranianos em suas lutas de fundação democrática, na resistência ou no exílio. O único modelo novo da globalização que nos interessa é o que nasce desse desejo de existir e lutar apesar do sofrimento, da guerra e da morte.

 

O artigo foi publicado por Rede Universidade Nômade, 08-03-2022.

 

Na Ucrânia hoje, não há uma guerra com dois lados, mas uma agressão infame e a luta desesperada de uma população perseguida. Lutas como essas moldaram as grandes democracias como a Inglesa, a Americana e a Francesa, ou aboliram a escravidão, como no Haiti. Lutas que hoje nos servem como referências incontornáveis de liberdade e democracia.

 

Nós estamos com os operários da central nuclear ucraniana de Enerhodar que colocaram os corpos na frente dos tanques russos para impedir sua entrada. Nós estamos com os povos da Europa Oriental que se emanciparam da escravidão do imperialismo russo e agora se mobilizam contra a última ameaça, desta vez não mais sob as cores do socialismo, mas das bandeiras fascistas de supremacia étnica pan-eslavista. Nós estamos com todos os cidadãos russos que se levantaram contra o despotismo do Kremlin, antes e depois da queda do muro de Berlim, aqueles nos protestos das praças de 2011-12, nas ações de solidariedade aos ucranianos e nos atos de repúdio ao assassinato em massa em curso comandado pelo seu presidente. Estamos com os presos políticos e os assassinados pelo regime e solidários aos seus familiares.

 

Nós somos contra o novo tipo de fascismo que ameaça a humanidade e se identifica na figura do déspota de Moscou, bem como de seu entorno de oligarcas e “campeões nacionais” bilionários, uma liderança cuja infâmia se eleva à altura do projeto que vem sendo imposto: com Trump, Orban, Salvini, Zemmour-Le Pen e, naturalmente, Bolsonaro e suas milícias.

 

Nós estamos com o “comediante-presidente” que ganhou as eleições contra os partidos nacionalistas e coloca seu corpo junto aos corpos das multidões diante de tanques, aviões e bombas a vácuo do estado invasor. Os corpos da soberania juntos nas lutas pelas ruas contra o maior inimigo da paz, da segurança internacional e da autodeterminação dos povos.

 

Nós estamos com a Praça Maidan, a insurreição democrática que refundou a Ucrânia que hoje resiste. Pertencente ao ciclo das primaveras árabes, a Maidan está viva e exprime as energias criativas da multidão global, a única força capaz de contrarrestar os projetos dos grandes blocos geopolíticos e fazer eclodir uma democracia renovada.

 

Apenas depois de deixar clara esta posição ética, podemos começar o balanço dos encadeamentos das causas e dos efeitos. Na tragédia ucraniana, vários níveis de reflexão se entrecruzam e vários processos se sobrepõem, porém, pelo menos dois neste momento se apresentam como centrais, e vamos esboçá-los nas próximas linhas: (1) a questão geopolítica ou a geopolítica das questões; (2) O posicionamento da esquerda diante das lutas de nosso tempo.

 

A questão geopolítica ou a geopolítica das questões

 

A geopolítica é uma variável importante, mas ela não pode ser a pedra angular para a colocação dos problemas, se quisermos pensar e agir situados, ou seja, do ponto de vista das lutas e não como funcionários do poder dominante. Quando a geopolítica passa a enquadrar os acontecimentos, como uma chave superior de inteligibilidade, não passa de uma armadilha conceitual e como tal de fácil domesticação pelo discurso de Estado. Pois ela é o terreno privilegiado da Razão de Estado, de seus realismos imorais e da geometria variável dos interesses estatais e capitalistas no tabuleiro fluido da globalização. Frequentemente, em nome de um pensamento que seria mais complexo e elaborado, que saberia contextualizar nas grandes linhas e quadrantes das forças globais, os pensamentos das lutas e nas lutas terminam neutralizados. Ao projetar a sombra de conspirações imperialistas e lançar o alerta de forças ocultas perversas, os antagonismos reais são simplesmente esvaziados de sentido, sendo substituídos pelo jogo das narrativas dos influencers.

 

Não bastasse isso, a geopolítica é o campo mais fértil para o florescimento de retóricas morais, que cobram posicionamentos homologados e apontam para sujeitos unitários, com maiúsculas, aos quais se costuma atribuir um valor em si: o Povo, a Nação, a Raça, a Etnia, a Religião. Esta operação de despolitização idealista está destinada a legitimar as práticas mais imorais, levando ao maquiavelismo rasteiro que articula arbitrariamente fins e meios.

 

A guerra de Putin pretende ser legitimada com base em uma dupla justificativa, de fundo geopolítico. A primeira é a noção – largamente usada pelos estrategistas da Alemanha nazista – de Lebensraum (espaço vital). Cada país teria direito a um entorno estratégico sobre o qual seria esperado que seja aceita a subordinação política, econômica e militar dos demais, pois decorrente da condição do mais forte. Tal entorno não tem apenas características territoriais, como também mobiliza a denominação de etnias e a sua exploração pressuposta, numa reedição da biogeografia nacional-socialista de antes da Segunda Guerra Mundial.

 

A outra justificativa, reclamada pelo nazismo e igualmente pelos czares antes dele, é a negação mesma da Ucrânia. A Ucrânia não teria sequer o direito de existir e, no limite, nem mesmo existiria enquanto entidade. Na retórica do Kremlin, a Ucrânia não passaria de uma fabricação artificial pelos bolcheviques da primeira fase da Revolução de 1917, como se todo e qualquer estado nacional não fosse ele mesmo uma fabricação artificial. Como se o passado da Rússia, esse sim, consistente, remontasse a uma tribo originária da Alta Idade Média, cujos descendentes conservam ao longo do tempo a vocação histórica de dominar a região e exercer o seu direito natural à opressão dos vizinhos. Não seria essa promessa de restauração da Grande Rússia, bem como o revanchismo diante do que teria sido um período decadente de perda de império, degeneração interna e humilhação externa, algo mais aparentado ao nazismo do que o governo eleito e sitiado em Kiev?

 

As duas justificativas são repetidas continuamente como fronte de desinformação, o que a seguir é aceito pelos apoiadores cínicos a título de esforço de guerra informacional. Do mesmo modo como, durante as eleições, é comum a certos grupos partidarizados justificarem as suas próprias fake news amigas: mentir é a regra do jogo. Daí a mangueirada de mentiras óbvias que temos presenciado: “A OTAN [a Aliança Atlântica] está entrando na Ucrânia e ameaçando estrategicamente o espaço vital da Rússia” ou “a Ucrânia não existe, sempre foi apenas uma região russa”.

 

Acontece que a invasão russa, temperada de ameaças contra a existência da humanidade como um todo, ocorre num dos países que se emancipou da exploração russa (chamada URSS até 1991) e que não está na OTAN, tendo inclusive devolvido voluntariamente o arsenal nuclear legado pela dissolução soviética. Quanto à verdade sobre a história da Ucrânia, é preciso lembrar que a sua existência cronológica precede à da própria Rússia e o seu atual presidente eleito, um comediante judeu e russófono, com parentes executados em campos de concentração, personifica uma luta por democracia. Essa luta mobiliza abrangente espectro de forças sociais na Ucrânia – claro, não sem contradições, não sem problemas a serem enfrentados, como aliás toda luta desde baixo – e a pluralidade das componentes culturais que integram a diversidade do país. Já Putin e o seu governo promovem a supremacia étnica de uma única identidade (eslava e branca ou, numa palavra, Russa).

 

O posicionamento da esquerda diante das lutas

 

A lição de Rosa Luxemburgo continua atual: a crítica à democracia não implica acabar com ela, como fizeram os bolcheviques antes mesmo da ascensão de Stálin. Mas sim em aprimorá-la, ampliá-la, aprofundá-la. E vice-versa: estar contra a invasão da Ucrânia pela Rússia não pode significar amar a OTAN, do mesmo modo como não a amávamos quando prestou apoio aéreo e tropas em solo para a proteção de Rojava (o experimento utópico encravado na Síria Oriental e possibilitado pelas primaveras árabes). É preciso sermos capazes de escapar das chantagens e nos posicionarmos para além da repetição de tropos herdados de uma geração falida, que já não tem mais ligação com as lutas reais. Depois da queda dos muros, os povos minoritários que se libertaram das ditaduras soviéticas o sabem muito bem: basta ler a carta das esquerdas polonesas.

 

Contudo, como esperado, influencers da esquerda brasileira puseram o capacete e entraram de imediato nos tanques da geopolítica, disparando rajadas de apoio à agressão do estado russo. Em uma lista não exaustiva do festival de disparates que as redes sociais mostraram, valem ressaltar algumas pérolas: “A Rússia está apenas respondendo à ofensiva da Otan e do imperialismo americano”; “A Ucrânia é um antro de nazistas”; “A culpa é de terem eleito um comediante, ou seja, da antipolítica”, “Só há esse alvoroço todo porque agora acontece na Europa, com o homem branco”, “Lista das invasões americanas”, “A guerra esquecida do Iêmen”… Outras declarações, amparadas pelo sofisma da complexidade, são ainda mais envergonhadas, tudo para não deslocar os públicos da zona de conforto dos binarismos interpretativos de sempre: “Não serei mais um especialista sobre guerra (…). Podemos tomar posição sem isso e a minha é antimilitarista”.

 

O grau de radicalidade esquerdista que é colocado nessas tomadas públicas de posição contra o que seria o consenso é proporcional à sua real covardia. Ao mesmo tempo em que reclamam para si uma condição de resistência e desafio, a negam aos únicos que estão resistindo e desafiando: os ucranianos e aqueles que se opõem a Putin, na Rússia e no Belarus. Desse modo, revezam-se e se reforçam a desinformação institucional do governo russo e ranços ideológicos mais antigos, ambos recheados de nacionalismo, xenofobia, racismo e autoritarismo. Soma-se a isso ainda uma narrativa mais recente, que vem sendo tecida na forma de uma reação orquestrada a Junho de 2013 e a tudo que lhe seja parecido, como a abertura da brecha democrática durante os protestos massivos na Maidan.

 

Na pandemia em curso, a imposição necropolítica da dita “imunidade de rebanho” foi e continua sendo um terreno para a reorganização e exacerbação dos movimentos fascistas pelo mundo (Trump e Bolsonaro, em primeiro lugar). Mas há um outro gado ganhando os pastos, cuja imunidade é tão precária quanto aquela contra a Covid. É o rebanho lulista, mais recentemente reforçado pela manada de juristas, advogados, jornalistas, professores, escritores, youtubers e tutti quanti, todos em apoio, escancarado ou tortuoso, ao fascista e homofóbico Vladimir. Não nos interessa aqui compreender a fundo a contradição psicanalítica, e Lula já está às voltas com outras núpcias (Alckmin, Calheiros…). O que nos interessa mais é o significado político da resiliência do espírito de rebanho, para além da covardia nos posicionamentos cotidianos e das análises que preferem fatos paralelos a encarar o curso da história.

 

No plano eleitoral, a adesão bolsonarista a Putin pode até momentaneamente salvar Lula dos efeitos colaterais da derrocada (no mínimo, ética) do putinismo geopolítico – uma tendência persistente na estruturação dos problemas colocados para quem pensa o país e o mundo, e presente sem dúvida no núcleo lulista. De qualquer modo, não é possível ocultar, por um lado, a convergência das derivas fascistas de Bolsonaro e Putin e, por outro lado, a explicitação da morte da esquerda. Se o gado lulista, entre apoiadores desvairados, sofistas da complexidade e matemáticos da neutralidade, não está do lado dos ucranianos que sofrem na guerra e das reações à imoralidade e ilegalidade dela, o que mais poderia significar hoje ser de esquerda? Ou não se é de esquerda, ou hoje, paradoxalmente, a esquerda não é mais esquerda. Talvez nunca tenha sido, pois também convém avaliar retrospectivamente.

 

Vários de nós passamos a nossa vida tentando ser “aquela parte da esquerda” que não compactuava com o espírito de rebanho. Porém, a história se repete de novo e de novo, e a cada vez na forma de uma tragédia maior. A conclusão que se poderia extrair é que, depois da morte da esquerda, lhe sobreviveu apenas o rebanho e não há mais nenhuma outra, nenhuma “parte”. No final das contas, esta “parte” (nós por exemplo) serve apenas para servir de grilo falante do rebanho e isto calha apenas para legitimá-lo.

 

Assim como, ao longo do século passado, havia pensadores comunistas, bastante inteligentes e preparados, que seguiam apoiando o socialismo realmente existente diante da evidência de milhões de mortos de fome na Ucrânia, durante o Holomodor, ou dos campos de trabalho forçado e concentração estalinistas, ou dos milhões de mortos de fome na China maoísta (nos anos 1950), ou então diante dos tanques neocoloniais vermelhos nas ruas de Berlim, Budapeste, Praga, Danzig. Tudo em nome daqueles que “realmente acreditam”, das simbologias ou simplesmente da comodidade espiritual de sentir-se agregado a uma força histórica real. Depois disso tudo, continuamos a ver hoje a esquerda apoiar um autocrata rodeado de oligarcas sem nenhum receio em relativizar o drama de cidades arrasadas, dezenas de milhares de mortos e milhões de refugiados. Mais uma vez, quem é do rebanho só tem receio do rebanho mesmo. Inclina-se, como que movido pela força da gravidade, a apoiar todo tipo de atrocidade, até as últimas consequências, como temos visto na ditadura na Venezuela. Lembrando que justificar essa guerra é também legitimar os estupros e a violência contra as mulheres como acontece em todas as guerras.

 

Quando pensamos no Brasil, aqui o lulismo geopolítico, isto é, de viés putinista, demostra um fenômeno que vai simultaneamente aquém e além da figura de Lula. Além dele porque abrange a ideia de esquerda. Aquém dele pois ancorado no funcionamento usual do capitalismo no país, que funciona graças às molas do apadrinhamento, do favor, dos vínculos clientelistas. O rebanho se corrompeu de ponta a ponta, engrenando ideologia socialista e extrativismo.

 

A crise da Política da Representação não decorre das redes sociais ou de uma técnica específica de manipulação da opinião, uma novidade que teria surgido depois da inclusão da população nos meios de produção e comunicação de verdade. Isto não significa que as manipulações e as indústrias de fake news não existam e sejam impactantes, como presenciamos nas eleições brasileiras de 2014 ou 2018, sem falar das votações pelo Brexit ou com a ascensão de Trump. O problema, entretanto, nunca foi o avanço da técnica/tecnologia ou algum excesso de democracia que a tenha descarrilado. O problema é que, depois das primaveras, em vez de reabrir o espaço para a democracia, a cisão entre amigo e inimigo foi reimposta na contramão dos antagonismos que elas expressaram. Com isso, se conseguiu reunir silenciosamente na prática o que na arena pública se apresenta ruidosamente como polo oposto. Daí que frações do bolsonarismo e do lulismo hoje concorram cabeça a cabeça no flerte não só com o atual Déspota de Moscou, como também na tentativa de torção putinista das dinâmicas da globalização.

 

Ao manifestar a sua repulsa pelo “comediante antipolítico” eleito presidente da Ucrânia, o rebanho não está apenas exibindo o desgosto por presidentes que sejam comediantes e que tenham êxito em antagonizar com o mercado de políticos profissionais. Mas sim o ódio pela democracia que o permitiu emergir como resposta ao ciclo de lutas. A democracia que deveria ter se renovado em junho de 2013, e que também se exprimiu, em sua configuração singular, na Maidan em 2014. Por conseguinte, ao sistematicamente negar as alternativas e descartar as grandes manifestações, debaixo da acusação de antipolítica fascistoide, o putinismo geopolítico pastoreia com facilidade as ovelhas do lulismo. O resultado disso, nos últimos anos, foi institucionalizar de vez o bolsonarismo de esquerda, o qual, enquanto fenômeno político-midiático, vem retroalimentando as redes mobilizadas de Bolsonaro. A virada reacionária de larga escala que testemunhamos no Brasil desde 2014 completa assim o seu percurso, no ponto em que a direita fascista (Putin, Bolsonaro, Trump) consegue que a sua representação de mundo seja encampada não só pela esquerda como sendo de esquerda, mas como a única salvação para a própria esquerda com um todo.

 

Conclusão

 

Para concluir, o apoio lulista e de esquerda à guerra de Putin na Ucrânia repõe outra questão fundamental e histórica. Ao se recusar a diferenciar agressor e agredido, sob o argumento da complexidade e do maniqueísmo, e ao invocar disparatadamente a OTAN, o Capitalismo ou o Neoliberalismo, essa esquerda não está mentindo. Está falando a verdade recôndita de seus valores: a indiferença pela distinção entre democracia e despotismo, ou melhor, a discreta preferência pelo segundo.

 

Neste momento surpreendente, em que a multidão se remobiliza e reorganiza contra a guerra de Putin e as ameaças de cataclismo nuclear, colocando-se a favor das populações atingidas de todas as nacionalidades, com a formação de redes de solidariedade, apoio material e protesto, precisamos uma vez mais reafirmar que a distinção entre democracia e despotismo sim, faz toda a diferença e é central para a recomposição.

 

Ditadores insolentes que, do alto de suas tribunas, prometem subjugar países vizinhos e submeter populações inteiras não são novidade.

 

Como ensinava Spinoza, mais do que pelo medo experimentado pelos que são reprimidos, o que sustenta o tirano é o afeto de seus adoradores, que hoje se encontram à esquerda ou à direita. Somente a resistência não só dos ucranianos, como de todos os amantes da democracia, desde baixo e em rede, em crescente mobilização global, pode pôr fim à tirania, construindo uma nova paz.

 

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