04 Janeiro 2022
Já surpreende que um blockbuster catastrófico “estrelas e listras” não tenha um final feliz com o herói da vez, talvez negro ou judeu, que salva a humanidade... Mas que até mesmo o mundo seja destruído por um cometa fora de controle e que tudo aconteça sem a tentativa de se livrar do monstro estelar que se aproxima é, para dizer o mínimo, surpreendente. "Don't Look Up" é muito, muito mais do que um filme não convencional com um elenco estelar. A verdade, de fato, está escondida no subtítulo que aparece no pôster do filme: “Baseado em fatos realmente possíveis”. O que parece um simples golpe publicitário, depois de assistir ao filme, oferece uma chave de leitura surpreendente.
O comentário é de Domenico Delle Foglie, publicado por Agência SIR, 03-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A pergunta, de fato, é esta: quais fatos realmente possíveis poderiam causar a destruição de toda a humanidade? A ponto de possibilitar a explosão do planeta com a contribuição decisiva de governos, velhos e novos poderes e povos dessensibilizados? Sem querer dar spoilers, o filme merece ser visto porque é divertido, há um encadeamento de eventos perfeitamente possíveis.
Vamos pela ordem: um enorme cometa está se dirigindo à Terra, os descobridores do evento não conseguem furar o bloqueio das informações oficiais. E mais ainda: o poder político e midiático não dão ouvidos, aliás, contestam os cientistas. Quando finalmente entendem a gravidade da ameaça, se deixam encantar por quem quer explorar o cometa com um projeto tecnológico arriscado e tudo dá desastrosamente errado.
Tendo dito isso (alguns diriam "até demais"), vamos ao cerne da trama e vamos analisar o que ela nos revela. Em primeiro lugar, o filme destaca a impotência da ciência frente ao poder político, midiático e econômico. Aliás, os três poderes são aliados na construção de uma espécie de aliança negacionista. Assim, apresenta-se uma questão central: quais caminhos a verdade científica deve percorrer hoje para alcançar a opinião pública? Uma questão nada secundária em uma época como a nossa, profundamente marcada pelo negacionismo (veja-se a Covid e a emergência ambiental).
Além disso, se a narrativa pública é totalmente dominada pela fragmentação e pela insustentável leveza das mídias sociais que condicionam até os gabinetes da política, o que resta a fazer para reconstruir uma agenda pública capaz de responder efetivamente às necessidades dos povos e às emergências planetárias? E mais ainda: quais são as responsabilidades do mundo da comunicação se é incapaz de distinguir o verdadeiro do falso e prefere achatar-se no verossímil e no divertido, especialmente se produz audiência?
Mas, acima de tudo, e é o tema mais delicado levantado por essa comédia de humor negro, como o sistema democrático pode ser protegido do poder excessivo do chamado "capitalismo da vigilância" denunciado há apenas três anos pela socióloga Shoshana Zuboff? Não seria surpreendente se o diretor do filme, o aclamado Adam McKay, revelasse ter lido o trabalho monumental da professora da Harvard Business School e dissesse que moldou sua personagem mais inquietante, o gélido industrial do setor digital que "possui" os dados pessoais de bilhões de seres humanos, exatamente sobre a figura do capitalista do amanhã (aliás, já de hoje). Ou seja, do financista que cinicamente usa a capacidade preditiva proporcionada pelo monopólio das novas tecnologias e que, graças à riqueza econômica sem limites (graças também ao déficit regulatório dos governos), pode induzir a política, até mesmo forçá-la, a fazer escolhas erradas.
Assim, como no caso narrado pelo filme, não destruir o cometa, mas tentar explorar seus metais nobres, mesmo correndo o risco de um desastre planetário. Condenando as pessoas à morte enquanto os super ricos e os poderosos fogem para o espaço.
Para além dos muitos paradoxos presentes nesse filme sarcasticamente visionário e ironicamente distópico, talvez agora conheçamos o pesadelo que devemos evitar: ser governados por um presidente louco e corrupto, ser desinformados por jornalistas reduzidos a palhaços, vender-nos como escravos aos magnatas do mundo digital, permanecer vítimas de nossa ignorância.
Quatro condições impossíveis? E quem pode afirmar isso? Só uma já bastaria para engrossar nuvens escuras... Então, abrir os olhos e olhar para cima, nunca é tarde demais.
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“Não olhe para cima”: um futuro realmente possível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU