08 Novembro 2021
"Lovelock argumenta que as temperaturas da superfície do nosso planeta foram moduladas por bilhões de anos, pois, graças à Gaia: florestas, oceanos e outros elementos do sistema regulador da Terra, manteve a temperatura da superfície razoavelmente constante e quase ideal para a vida. Mas a humanidade mexeu substancialmente com essa fórmula cuidadosamente equilibrada. Assim, dois atos genocidas – asfixia por gases de efeito estufa e o desmatamento das florestas tropicais – causaram mudanças em uma escala nunca vista em milhões de anos", escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 05-11-2021.
O aumento internacional do preço dos alimentos, evidentemente, afeta os preços nacionais, embora o Brasil seja o quarto produtor de bens de subsistência (atrás da China, Índia e EUA)
“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome” - Caetano Veloso
O Índice de Preços dos Alimentos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) bateu todos os recordes em outubro de 2021, atingindo o maior valor real em quase 50 anos. O Índice (FAO Food Price Index – FFPI) que estava em 94,2 pontos em 2018, subiu para 95,6 pontos em 2019. No primeiro semestre de 2020 o FFPI caiu, mas subiu no segundo semestre e atingiu 99,2 pontos no ano de 2020. Mas em 2021 os aumentos foram assombrosos e o FFPI atingiu o valor de 123,3 pontos, confirmando a tendência de alta do século XXI, conforme mostra o gráfico abaixo (da esquerda).
O principal componente para o aumento do FFPI foi o Índice de Preços dos Cereais que teve média de 137,1 pontos em outubro, conforme mostra o gráfico abaixo (da direita). Os preços internacionais de todos os principais cereais aumentaram em relação ao mês anterior. Os preços mundiais do trigo continuaram subindo pelo quarto mês consecutivo, subindo mais 5 por cento em outubro. Entre os grãos grossos, os preços internacionais da cevada foram os que mais subiram em outubro, impulsionados pela forte demanda, redução das perspectivas de produção e aumento de preços em outros mercados. Os preços internacionais do arroz também subiram e o preço do milho se estabilizou.
Os impulsionadores dos preços médios internacionais dos alimentos são sempre múltiplos e complexos. Porém, existem quatro fatores que inquestionavelmente tem contribuído para a elevação da inflação alimentícia: 1) o aumento do preço da energia, que começou em abril de 2020, afetou os preços de todas as commodities alimentares, aumentando os custos de produção e transporte dos alimentos; 2) a escassez de mão de obra resultante da pandemia da covid-19 que reduziu a disponibilidade de trabalhadores para cultivar, colher, processar e distribuir alimentos, além de ter contribuído para a ruptura da cadeia produtiva de muitos produtos que fazem parte da estrutura da oferta de alimentos; 3) o processo de degradação dos solos e das fontes de água limpa que dificulta o aumento da oferta diante da crescente demanda global por bens alimentícios; 4) o aquecimento global que tem provocado eventos climáticos extremos e gerado desastres ambientais que aumentam os prejuízos econômicos da iniciativa privada e dos governos, afetando toda a população mundial.
O gráfico abaixo mostra a variação do FFPI de 1990 a 2021. Cabe registrar que a década de 1990 apresentou o menor valor do Índice de Preços de todo o século XX. Portanto, os primeiros 21 anos do século XXI já apresentam valores médios do preço dos alimentos bem acima da última década do século passado e o valor do FFPI no ano de 2021 é cerca de 50% maior do que os valores dos anos 1990.
O aumento internacional do preço dos alimentos, evidentemente, afeta os preços nacionais, embora o Brasil seja o quarto produtor de bens de subsistência (atrás da China, Índia e EUA). Os preços nacionais são pressionados em função de 5 fatores, que, inclusive, foram agravados pela pandemia da covid-19: 1) aumento dos custos de produção e transporte; 2) desorganização da cadeia produtiva global (gerando gargalos na produção e distribuição); 3) aumento do preço do petróleo; 4) danos causados pela crise ambiental; e 5) desvalorização cambial.
De fato, no Brasil, a fome atingiu 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivam com algum grau de insegurança alimentar — número que corresponde a 55,2% dos domicílios, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede PENSSAN.
O que os dados da FAO mostram é que o Brasil e o mundo terão dificuldade para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU. O Objetivo 2 dos ODS se propõe a: “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”.
O item 2.2 diz: “Até 2030, acabar com todas as formas de desnutrição, inclusive pelo alcance até 2025 das metas acordadas internacionalmente sobre desnutrição crônica e desnutrição em crianças menores de cinco anos de idade, e atender às necessidades nutricionais de meninas adolescentes, mulheres grávidas e lactantes e pessoas idosas”. O item 2.1 diz: “Até 2030, acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano”.
O fato é que o aumento do Índice de Preços dos Alimentos da FAO ameaça a meta da Fome Zero global. A humanidade vive várias emergências globais (econômica, social, sanitária, climática e ambiental). O contínuo crescimento demoeconômico fez a Pegada Ecológica global ultrapassar a capacidade de carga da Terra e a elevação do preço dos alimentos é um sintoma da insustentabilidade do modelo de produção e consumo hegemônico.
A COP26, que está sendo realizada em Glasgow (local de nascimento de James Watt que patenteou a máquina a vapor há 250 anos e deu início ao consumo em massa dos combustíveis fósseis) tem indicado a necessidade de medidas urgentes deter as mudanças climáticas, embora os acordos tem ficado muito aquém do necessário para evitar o colapso ambiental
O influente cientista e ambientalista James Lovelock (de 102 anos) – autor da teoria de Gaia (que diz que a Terra se autorregula como um organismo vivo) – sugere que o meio ambiente do nosso planeta se ajusta em resposta aos abusos antrópicos. Assim, devido à forma horrível como os humanos tratam o meio ambiente, Gaia está prestes a retornar com uma vingança.
Lovelock argumenta que as temperaturas da superfície do nosso planeta foram moduladas por bilhões de anos, pois, graças à Gaia: florestas, oceanos e outros elementos do sistema regulador da Terra, manteve a temperatura da superfície razoavelmente constante e quase ideal para a vida. Mas a humanidade mexeu substancialmente com essa fórmula cuidadosamente equilibrada. Assim, dois atos genocidas – asfixia por gases de efeito estufa e o desmatamento das florestas tropicais – causaram mudanças em uma escala nunca vista em milhões de anos.
Portanto, estamos entrando em uma era do calor em que a temperatura e os níveis do mar subirão década a década até que o mundo se torne irreconhecível e, em grande parte, inabitável. James Lovelock diz: “Precisamos resolver o problema da superpopulação e deter com urgência a destruição das florestas tropicais.
Acima de tudo, precisamos olhar para o mundo de uma forma holística” (The Guardian, 02/11/2021). Indubitavelmente, precisamos entender o mundo de forma holística para compreender as razões do aumento do preço dos alimentos e a volta da fome como uma “espada de Dâmocles” sobre as condições de vida da população mundial.
ALVES, JED. O preço dos alimentos bate recordes e aumenta a fome, Ecodebate, 14/04/2021 - disponível aqui.
ALVES, JED. Aula 11 AM088: Decrescimento demoeconômico e capacidade de carga do Planeta, IFGW, 11/04/21
LOVELOCK, James. Beware: Gaia may destroy humans before we destroy the Earth, The Guardian, 02/11/2021 - disponível aqui.
Renata Lo Prete. O Assunto #415: Comida cara, tensão social em alta, G1, 22/03/2021 - disponível aqui.
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Aumento do preço dos alimentos ameaça a Fome Zero dos ODS. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU