18 Outubro 2021
Um levantamento realizado pelo Sul21 mostra que, pelo menos, metade das Delegacias de Atendimento à Mulher do Rio Grande do Sul já recebeu denúncias de importunação sexual ou estupro realizados por motoristas de transportes de aplicativo durante as viagens. Na semana passada, a denúncia de uma jovem de Canoas ganhou repercussão nacional. A estudante de 20 anos publicou um vídeo nas redes sociais relatando que o motorista tentou dopá-la e que precisou saltar do carro em movimento, temendo ser violentada.
A reportagem é de Fernanda Nascimento, publicada por Sul21, 14-10-2021,
A Polícia Civil do Rio Grande do Sul não tem um registro específico sobre esse tipo de ocorrência. Mas em contato com as delegacias do Estado é possível constatar que a denúncia ocorrida em Canoas não é fato isolado. Investigações concluídas ou em andamento já foram registradas em Alvorada, Bento Gonçalves, Gravataí, Montenegro, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Santa Maria, São Leopoldo e Viamão. O número pode ser ainda maior, já que a reportagem não obteve retorno das delegacias de Caxias do Sul, Cruz Alta e Erechim.
Responsável pela investigação do caso em Canoas, a delegada Clarissa Demartini afirmou que a polícia já identificou o motorista suspeito, possui imagens de locais por onde aconteceu a corrida e realizará novos procedimentos nos próximos dias. Ela classifica a investigação como “complexa” e diz que o uso de substâncias entorpecentes em vítimas não é comum nas denúncias envolvendo importunação ou estupros em transporte por aplicativos. “Nós já tivemos outras denúncias relacionadas ao transporte por aplicativo, mas nenhuma envolvendo o uso de substâncias químicas. Tivemos registros de conduta perigosa ou de abordagem com conotação sexual”, explica.
A identificação do suspeito é uma das primeiras medidas adotadas em qualquer investigação. E a possibilidade de reconhecer o condutor do veículo pelo registro do aplicativo é considerada um fator de segurança para as usuárias deste tipo de transporte, conforme um estudo realizado pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva. O levantamento de 2019 aponta que 46% das mulheres não se sentem confiantes para usar meios de transporte sem sofrer assédio sexual. No caso dos aplicativos de transporte, o número de desconfiança cai para 25% – o que, de acordo com a interpretação do estudo, está associado à maior facilidade de denúncia e possibilidade de punição em caso de assédio.
Mas nem sempre a identificação é tão simples. No início do ano, um homem foi preso suspeito de ter cometido dois estupros, em Alvorada. Nos dois casos, um mesmo modus operandi: em uma viagem noturna alterou a rota de destino e violentou as vítimas em um lugar de difícil acesso. No momento da investigação, a delegada responsável pelo caso, Samieh Saleh, verificou que o carro era sublocado pelo suspeito e a conta usada no aplicativo também não estava em seu nome. “Verificamos que o carro estava em nome de uma pessoa e ela alugava para um motorista. Conforme as investigações foram andando, a gente descobriu que a pessoa que estava com a foto e o nome no aplicativo não era o suspeito, ele emprestava o seu login para um terceiro. E também descobrimos que isso é uma prática comum para motoristas de aplicativo. Os aplicativos não aceitam pessoas com antecedentes criminais e, nesse caso, ele já tinha respondido por outro caso de estupro anteriormente”.
Episódios de violência contra a mulher em situações vulneráveis também não são incomuns. Em Pelotas e Rio Grande as delegadas informaram situações que expõem a ausência de segurança em momentos de lazer: nas duas localidades há registro de investigações por estupro de vulnerável, em casos nos quais vítimas estavam embriagadas e foram abusadas sem possibilidade de resistência. Em 2019, uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul causou revolta entre as entidades de defesa dos direitos das mulheres: após ser condenado em primeira instância por estuprar uma jovem embriagada na saída de uma festa, um motorista de aplicativo foi absolvido porque os desembargadores consideraram que a vítima ingeriu bebida alcoólica por “livre arbítrio” e não poderia ser “colocada na posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido”.
Episódios de importunação sexual também não são incomuns, ainda que muitas vezes não sejam registrados. Outra denúncia, em fevereiro de 2020, adquiriu repercussão nacional. Uma adolescente de 17 anos gravou o assédio sofrido em um deslocamento em Viamão e publicou nas redes sociais. Em entrevista à imprensa, o motorista justificou o comportamento afirmando que a jovem usava “um short tipo Anitta”. O homem foi indiciado por perturbação à tranquilidade e difamação.
Situações como estas se somam à denúncias ocorridas no transporte coletivo – em ônibus e trens – e também no transporte intermunicipal de passageiros, como um caso investigado em ônibus que faz a linha entre Bagé e Porto Alegre.
Apesar dos dados de que as mulheres se sentem mais seguras no uso de aplicativos de transporte, a terceira edição da pesquisa Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, desenvolvida pelo Fórum Nacional de Segurança Pública e DataFolha, aponta um crescimento no número de mulheres que já foi assediada fisicamente em transporte particular: de 4%, em 2019, para 5,7%, em 2021. Os números são expressivos, já que o transporte particular tem um ingresso mais recente no país e a maior empresa do setor atende cerca de 10% da população brasileira.
Samieh Saleh salienta a importância de registrar boletim de ocorrência e denunciar mesmo os casos considerados de menor potencial lesivo. “Às vezes a pessoa passa por uma situação constrangedora e não denuncia. Aí esse indivíduo que, de repente, não teve a oportunidade de fazer algo mais grave, pode aproveitar uma próxima vítima e cometer um estupro. É importante saber o que são condutas impróprias e denunciar (confira no final da reportagem)”.
Arte: Sul21
Os casos de assédio e estupro contra as mulheres em transporte por aplicativo integram uma cultura de violência de gênero. Sem acesso adequado aos meios de transporte – sejam públicos ou particulares -, as mulheres passam por situações nas quais a segurança é sempre um fator de risco a ser considerado em cada deslocamento, independente do horário ou do local.
Mariana Imbelloni, formada em Direito e em História e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, é uma das pesquisadoras que têm se debruçado sobre a mobilidade de mulheres. Para a pesquisadora, há uma dupla questão de violência envolvendo o acesso ao transporte na cidade: a invisibilidade e as necessidades socialmente atribuídas às mulheres. “Toda a lógica do transporte e a forma como se organiza o sistema leva em consideração apenas os deslocamentos de casa para o trabalho. Ela desconsidera os deslocamentos de cuidado, desconsidera as especificidades do que é designado às mulheres, como o transporte para levar os filhos à escola ou ao médico, por exemplo”.
O resultado dessa lógica é uma sobrecarga no deslocamento, relacionada à ausência de olhares e à insegurança vivida nas ruas. “Nós andamos nas ruas calculando para onde ir. Em qual rua eu tenho menos chance de sofrer violência sexual. Ao entrar no ônibus, a gente procura o lugar mais próximo da porta… Todos esses cálculos significam um estado de atenção no espaço público, muito maior do que o dos homens. É muito cansativo e restritivo. A gente deixa de fazer deslocamentos, de fazer atividades, por medo”, explica.
E se os deslocamentos para atividades de trabalho e cuidado são restritos, os momentos de lazer se tornam ainda mais calculados. “O que as mulheres deixam de fazer? Deixam de estar em espaços de lazer, deixam de sair à noite, em momentos em que estarão ainda mais expostas. O que as mulheres levam em conta no transporte não é aquele que chega mais rápido, muitas vezes é aquele considerado mais seguro”.
Sobre o transporte por aplicativos, a pesquisadora acredita que eles surgem, muitas vezes, como uma “solução precária” para a ausência de segurança no transporte e nos espaços públicos, mas reiteram padrões de violação ao corpo da mulher ao não enfrentar o problema: a violência de gênero.
A utilização de transportes exclusivos para mulheres é um dos debates da mobilidade urbana do século no Brasil. Ônibus em horários de pico com ingresso restrito às mulheres e/ou crianças; trens, metrôs e BRTs com parte dos veículos destinados apenas para utilização de mulheres; transporte particular em táxis ou aplicativos com carros dirigidos por mulheres e uso exclusivo de passageiras. Essas são algumas das soluções apontadas para garantir maior segurança para passageiras e que, conforme Mariana, podem ser compreendidas como medidas pontuais, mas importantes.
Se, por um lado, não solucionam o problema estrutural da violência de gênero, por outro, garantem um nível de segurança às usuárias. “O transporte exclusivo não pode ser a solução final. Ele não resolve a violência em espaços de transporte. Mas é uma medida que, minimamente, facilita a vida das mulheres em seu deslocamento diário. Medida que traz conforto, mais do que segurança. E que, no mínimo, coloca o assunto em debate público e faz com que se discuta a necessidade da proteção das mulheres”, reflete Mariana.
Injúria: Insultar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou a honra de forma gravíssima. Pena de detenção de um a seis meses ou multa.
Importunação sexual: Praticar contra alguém e sem consentimento ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Por exemplo: apalpar, tocar ou masturbar-se. Pena de um a cinco anos de reclusão.
Estupro: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso. Pena de seis a dez anos de reclusão.
Estupro de vulnerável: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Enquadra-se no mesmo crime manter relação com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, como estado de embriaguez, não pode oferecer resistência. Pena de oito a 15 anos de reclusão.
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Metade das delegacias do RS já recebeu denúncias de violência sexual em transporte por aplicativo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU