06 Outubro 2021
Em Jacarecanga (PA), reportagem flagrou garimpeiros desmobilizando áreas de extração ilegal de ouro em reservas ambientais e indígenas, depois de terem sido informados em reunião ‘oficial’ de que haveria fiscalização.
A reportagem é de Daniel Camargos, publicada por Repórter Brasil, 02-10-2021.
O vazamento de uma megaoperação conjunta da Polícia Federal, Ibama e Funai para combater o garimpo ilegal em terras indígenas no Pará provocou uma corrida do ouro às avessas. Com informações de que os fiscais chegariam nos próximos dias a Jacareacanga, no sudoeste do estado, garimpeiros se movimentavam para esconder o maquinário usado na extração clandestina de ouro em territórios dos Munduruku e em áreas de conservação.
Enquanto a reportagem presenciava a mobilização dos garimpeiros para fugir da fiscalização, lideranças indígenas se revoltavam com o “caráter oficial” do vazamento. Isso porque não é a primeira vez que os donos de garimpo são avisados antes de fiscalizações do tipo.
Em dezembro, a operação Fool’s Gold (Ouro de Tolo, em português) da PF prendeu um delegado, acusado de vender informações. No entanto, desta vez, o vazamento teria sido comunicado em uma reunião com a presença de garimpeiros e de uma associação indígena controlada pelos interesses pró-garimpo.
Segundo indígenas ouvidos pela reportagem, um representante da Funai foi ao encontro.
“Para nós, essa reunião em que as autoridades fizeram um acordo com os garimpeiros foi um equívoco. Deram 15 dias para que todos os garimpeiros brancos retirassem seus bens”, afirma Ademir Kaba Munduruku. “Daí, por incrível que pareça, as principais cabeças que têm provocado toda essa violência continuam livres, enquanto nós temos que nos recolher e ficar com a liberdade tolhida”, afirma o líder indígena, que se opõe à exploração de ouro.
Era intensa a movimentação no porto local, em um braço do rio Tapajós, na manhã da quarta-feira (29). Embarcações de diversos portes chegavam carregadas de motores usados na extração de ouro. “Está uma correria danada. O pessoal está tentando esconder as PCs no mato, pois o rio está muito baixo e não dá para tirar na balsa”, conta um funcionário de um garimpo na região do rio Cabitutu, que aceitou conversar com a reportagem sob condição de anonimato.
PC é abreviação usada nos garimpos para as retroescavadeiras e pás-carregadeiras que revolvem a terra e transformam áreas intocadas de floresta em um lamaçal, poluindo os rios. Essas máquinas custam entre R$ 500 e R$ 1 milhão e são um sinal claro de que quem investe em garimpo são empresários de grande porte.
Esses donos de garimpos clandestinos teriam sido comunicados da ação da Polícia Federal durante o encontro, ocorrido em 17 de setembro. A Repórter Brasil teve acesso a dois documentos sobre a reunião. O primeiro é um convite – direcionado a vários caciques – para discutir a “retirada dos proprietários de máquinas não indígenas das TIs Munduruku e Sai Cinza”. O documento é assinado por Francinildo Cosme Kaba Munduruku, que preside a Associação Índigena Pusuru – uma entidade de Jacareacanga controlada pelos interesses dos garimpeiros – e por um representante da Coordenação Técnica Local da Funai de Jacareacanga.
O segundo documento, também assinado por Francinildo, é um comunicado sobre o que teria ocorrido na reunião, onde se lê: “Ficou decido por unanimidade que os garimpeiros e proprietários de máquinas não indígenas que praticam atividade de garimpagem ilegal no interior das TI Munduruku e Sai Cinza tem 15 dias de prazo para retirar seus maquinários, caso não cumpram com esta determinação os órgãos competentes de fiscalizaçao como Ibama, Polícia Dederal e Força Nacional serão acionados para fazer a retirada de todos e estarão sujeitos a prisão e prejuízo dos seus pertences.” O prazo venceria neste 2 de outubro.
Questionada, a Funai afirmou que essas operações são de responsabilidade da Polícia Federal e recomendou que o órgão fosse procurado. Já o Ibama e a Polícia Federal disseram que não podem comentar sobre operações sigilosas. O ICMBio, que também faz parte da operação, não respondeu às perguntas enviadas. A reportagem voltou a questionar a Funai, por telefone e e-mail, mas não teve retorno. O órgão preferiu não responder sobre o funcionário presente na reunião do dia 17. Fracinildo também foi procurado pela reportagem, mas não se posicionou.
O documento da Pusuru menciona que a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) também participou da reunião que vazou a informação da operação. Questionada sobre o acordo, a FNSP disse que está atuando em Jacareacanga em apoio à Funai e que “não tem competência para atuar em tratativas com a comunidade indígena” e que não participou do acordo com a Associação Indígena Pusuru.
Ademir Munduruku criticou a reunião: “Além de tudo é desnecessária, porque já há uma decisão judicial para que todos os invasores sejam retirados do nosso território”. O líder indígena também destacou a participação da Funai e criticou a associação. “A Pusuru não tem autonomia nem respaldo para tratar de operações com as autoridades, visto que ela é a responsável por toda essa situação de invasão do nosso território. As autoridades deveriam era punir os membros da Pusuru envolvidos com a atividade de garimpo.”
A organização presidida por Francinildo é assessorada por Edward Luz, conhecido como o “antropólogo dos ruralistas”, que atua para reverter demarcações de terras indígenas, sempre com um discurso conservador e de ataque a ONGs.
“Chega de sermos manipulados por ongueiros que só querem nos usar como cobaias ou escudos humanos contra o nosso próprio desenvolvimento”, diz nota da Associação Pusuru publicada em abril em defesa do Projeto de Lei 191, que prevê a liberação do garimpo em terras indígenas.
A posição da Pusuru está longe de ser unânime entre os Munduruku. Sete dias após a associação publicar essa nota, 72 caciques Munduruku contestaram a legitimidade da Associação Indígena Pusuru. Na carta que escreveram, declaram ser contrários ao PL, que chamam de “projeto de morte”. Eles atribuem ao projeto a divisão dos Munduruku, a violência e o ataque às mulheres e lideranças que defendem o território.
José (nome fictício), que conversou com a reportagem mediante a condição de não ser identificado, estava em um barco carregado com cinco motores queimados. O fogo foi colocado durante a última fiscalização, em junho, e, por ordem de seu patrão, ele retirou os motores do garimpo na tentativa de recuperá-los em uma oficina em Jacareacanga. Cada motor custa cerca de R$ 30 mil.
O objetivo dos garimpeiros é evitar que os equipamentos sejam destruídos pela fiscalização, como prevê o decreto da presidência da República 6.514 de 2008, que dá essa prerrogativa aos fiscais ambientais diante da impossibilidade de apreender e remover motores e retroescavadeiras em áreas de difícil acesso na floresta.
A Repórter Brasil também flagrou uma retroescavadeira sendo rebocada por um caminhão na BR-230, a rodovia Transamazônica. O que pode ser entendido como mais um sinal da fuga empreendida pelos garimpeiros diante da ameaça da fiscalização. Apesar de ser chamada de rodovia, o trecho de 290 quilômetros entre Jacareacanga e a vizinha Itaituba lembra em muitos momentos uma trilha precária.
A paisagem ao redor desse trecho da Transamazônica é intercalada por três diferentes cenários. Tem grandes áreas queimadas com presença de gado; diversas vilas de garimpeiros com aviões monomotores estacionados nas marginais da rodovia e também a densa selva Amazônica, com a pista cortando áreas de reservas como o Parque Nacional da Amazônia, a Terra Indígena Munduruku e as Floresta Nacionais de Amana e de Itaituba, todas elas com garimpos ilegais.
Somente na Terra Indígena Munduruku, houve um aumento de 363% de área degradada pelo garimpo entre janeiro de 2019 e maio de 2021, a porcentagem representa 2.274,8 hectares, quase 15 vezes a área do Parque Ibirapuera, em São Paulo, segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA).
O garimpo que José* trabalha, no leito do rio Cabitutu, chegou a ter 170 garimpeiros antes de a operação vazar e os garimpeiros serem desmobilizados. Parte dos homens que restaram estão agora empenhados em levar as máquinas para áreas na floresta longe da extração e camuflar com folhas e galhos para não serem identificados pelos drones usados na fiscalização.
Antes de trabalhar no garimpo do Cabitutu, José, que tem 28 anos, trabalhava em outro garimpo no igarapé Massaranduba. Lá, ele conta, que chegavam a retirar 2 kg de ouro por dia. Considerando o valor atual do grama do ouro (R$ 308) o faturamento diário era de R$ 616 mil. Ele mostra no celular a fotografia de uma imensa pepita de ouro. No boné, tem o nome e sobrenome verdadeiro escritos em dourado, simulando um metal folheado a ouro, uma tendência na região do Alto Tapajós.
“Certeza ninguém tem, mas estamos esperando a qualquer hora o pessoal (fiscalização) vir para cima. Estamos esperando a qualquer minuto. O povo está cabreiro”, afirma o garimpeiro Vilelú Inácio de Oliveira, que tem uma atuação crucial no lobby articulado na região para tentar legalizar o garimpo de ouro nas terras indígenas dos Munduruku, como mostrou reportagem publicada em julho pela Repórter Brasil.
Viela, como é conhecido, articula mais de 30 grupos de Whatsapp com garimpeiros de toda a Amazônia. Já organizou protestos para paralisar a BR-163 após fiscalizações feitas em 2019, quando máquinas de garimpo foram queimadas. A mobilização encabeçada por ele levou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a prometer mais de uma vez que proibiria a queima de maquinário de garimpo por fiscais ambientais. O que não aconteceu.
“Esse Bolsonaro não tem palavra. Ele disse que ia ajudar os garimpeiros, pois o pai dele tinha sido garimpeiro, mas a única coisa que ele fez foi colocar a mídia, o Ministério Público e todo mundo que é contra ele contra nós (garimpeiros)”, afirma Vilela.
O alerta dos garimpeiros ficou maior, pois na terça-feira (28), Polícia Federal, Ibama e Funai foram a campo na terceira fase da Operação Alfeu para combater a extração ilegal de ouro na Terra Indígena Sararé, em Pontes e Lacerda (MT). Segundo a Funai e a PF, foram usados drones para localizar os equipamentos, que foram destruídos.
Caminhando por Jacareacanga e conversando nos restaurantes, hotéis e bares, o temor da população contra a possível fiscalização é uníssono. Nas lojas que compram ouro, os funcionários estão nas portas aguardando os garimpeiros, que reduziram a presença nos últimos dias.
O comércio da cidade é repleto de lojas de equipamentos que fomentam a destruição da floresta. Motosserras são vendidas entre R$ 3 mil e R$ 5,5 mil. Mangueiras, motores, ferramentas e toda a infraestrutura necessária para o garimpo estão à venda pendurada de maneira caótica na entrada das lojas. Pelas ruas, picapes passam carregadas de galões de combustível usados para abastecer geradores, os motores estacionários, as PCs e as embarcações que alimentam os garimpos.
Enquanto fiscais e garimpeiros atuam como gato e rato nas ruas de Jacareacanga e na floresta Amazônica, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 191 de 2020, de autoria do Executivo, que prevê permissão para lavra garimpeira em terras indígenas desde que haja consentimento dos envolvidos. Movimentos indígenas reclamam de associações que não representam o interesse das comunidades, apenas de alguns indivíduos que trabalham em parceria com o garimpo, e que seriam usadas para o tal consentimento.
O Ministério Público Federal (MPF) aponta a inconstitucionalidade do projeto de lei, destacando que os mais de “4 mil procedimentos minerários incidentes em 216 terras indígenas demonstram que não são os interesses dos indígenas ou da União que motivam a proposta de regulamentação dessa atividade, mas sim o interesse econômico de determinados grupos”.
O projeto é objeto de lobby de empresários, políticos locais, deputados e senadores e está entre as 35 prioridades do governo federal, entregues por Bolsonaro ao Congresso Nacional em fevereiro.
Distante 2,5 mil quilômetros do Congresso, os escombros da Associação das Mulheres Wakoborun em Jacareacanga dão lugar à construção de um supermercado. A Associação aglutinava a resistência Munduruku contra os garimpos e pela preservação da floresta, mas foi invadida e destruída por um grupo de garimpeiros em março deste ano.
Em maio, os garimpeiros promoveram um motim na cidade e expulsaram as forças federais que preparavam uma operação. Eles também queimaram a casa da liderança indígena Kabaiwun Munduruku (antes conhecida por Leusa) e da sua mãe. A escalada da violência que assola os Munduruku foi denunciada nesta terça-feira (28) pelo governo da Dinamarca no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
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Operação ‘vaza’, e garimpeiros escondem máquinas na floresta para fugir da fiscalização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU