17 Agosto 2021
Desde novembro de 2019, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 5.822, que propõe a alteração na Lei 9.985 de 2000, que trata da criação das Unidades de Conservação de Uso Sustentável do tipo Floresta Nacional, mais conhecida como SNUC. De autoria do Deputado Delegado Éder Mauro (PSD/PA) o PL pretende permitir a “pequena mineração” através de lavras garimpeiras individuais ou em forma cooperativada em Florestas Nacionais (FLONA).
A reportagem é publicada por Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente a Mineração, 13-08-2021.
Sabe-se que a realidade garimpeira do século 21 não são aquelas imagens de Serra Pelada (PA) eternizadas pelo fotografo Sebastião Salgado. Onde existiam milhares de homens, baixo maquinário e ferramentas rústicas – o “famoso” garimpeiro da bateia! Segundo informações do site The Intercept, na matéria “Arquitetura da devastação” de abril de 2020, a megaoperação que derrubou o Diretor do Ibama (Olivaldi Azevedo), por ter destruído retroescavadeiras e outros maquinários ilegais utilizados por garimpos em terras indígenas do Pará, as retroescavadeiras foram avaliadas no valor de 500 mil reais.
Em matéria da Folha de São Paulo, [1] “Garimpos no Pará adotam escavadeiras e amplificam destruição” de setembro de 2018, realizou um balanço do garimpo nos municípios de Jacareacanga e Itaituba, ambas no estado do Pará. Em depoimento de morador da região [2], também garimpeiro, foi dito que existem “draga que vale 2 milhões, 3 milhões de reais” e que foram queimadas. Essas embarcações removem grande volume de sedimentos dos fundos e calhas dos rios em atividades ilegais dentro das Terras Indígenas e Unidades de Conservação. No Tapajós são despejados 7 milhões de toneladas de rejeitos de garimpo por ano, ou uma barragem de Fundão da Samarco a cada 15 anos, segundo a Polícia Federal . Mesmo sabendo que estes relatos vão além dos cometidos em Florestas Nacionais, como propõe o PL, cabe nos atentar que a categoria de “pequena mineração de lavra garimpeira” não são exatamente pequenas, como o relator Nereu Crispim (PSL/RS) e o Delegado Éder Mauro (PSD/PA) querem parecer crer.
Parece bastante sintomático o PL 5.822 ter sido apresentado dias depois do Presidente Jair Bolsonaro, até então no mesmo partido do relator (PSL), indagar a garimpeiros em forma de ameaça no cercadinho na frente do Palácio da Alvorada: “Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso no Estado lá?”, se referindo a queima de escavadeiras de garimpos ilegais.
Ao mesmo tempo, já estava em curso dentro do Ministério de Minas e Energia (MME), através das portarias da Secretaria de Geologia e Mineração (SGM) 108, de 11/07/2019; 109, de 18/07/2019; 137, de 27/08/2019 e 186, de 22/10/2019, a criação do Grupo de Trabalho Garimpo que apresentou seu relatório mais de um ano após a sua criação. Há, no entanto, uma evidentemente dificuldade em garantir os interesses dos grandes grupos econômicos da mineração e concomitantemente dos garimpeiros, forte base do movimento bolsonarista. O principal dissenso entre os dois grupos está ligado ao local de atuação dos garimpeiros. Para o garimpo se legalizar em determinada área não pode haver nenhum requerimento de título minerário pretérito na Agência Nacional de Mineração (ANM). Sabemos que o território brasileiro possui cerca de 80% sob controle das grandes mineradoras.
Nesse embate, o relatório final do Grupo de Trabalho Mineração do MME definiu que: em áreas que haja duplicidade de atuação será dada a oportunidade de o titular do direito minerário manifestar-se, no prazo definido, quanto ao interesse no aproveitamento de todo o potencial mineral, hipótese em que, não se manifestando, poderá haver a concessão de permissão de lavra garimpeira” . A pergunta que devemos fazer, com certeza os garimpeiros já o fizeram, é: o que as multinacionais do setor irão ganhar não se manifestando? Nada!
Sobre a mineração em Florestas Nacionais, no ano de 2014, a Advocacia Geral da União (AGU) deu parecer (nº 21/2014/DEPCONSU/PGF/AGU) negativo ao entendimento do, então, Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) sobre a legalidade de mineração em FLONAs. Com o seguinte entendimento: “Essa questão encontra-se atualmente superada já que as Florestas Nacionais que foram criadas anteriormente a Lei do SNUC e que não tiveram mineração a exploração mineral autorizada não o podem ter agora em virtude do regime legal que foi instituído com a Lei 9.985, de julho de 2000.” E segue com a finalização do parecer “de acordo a interpretação sistemática da Constituição Federal (art. 225 parágrafo 1º, inciso III) com a Lei 9.985, de julho de 2000, chega-se a conclusão de que não é possível a realização de mineração nas Florestas Nacionais após o incremento no mundo jurídico da Lei 9.985, de julho de 2000.
No entanto, a demanda pela regulamentação da mineração em FLONAs tem se intensificado com o lobby realizado por garimpeiros no Congresso Nacional e as posições pró-garimpeira do Presidente da República. A Associação Nacional do Ouro (ANORO), tem sido uma referência na negociação com o governo federal e parlamentares. Segundo nota da ANORO em resposta ao site Repórter Brasil [3], “A ANORO já tem em seu portfólio mais de 40 audiências públicas oficiais com órgãos do Governo Federal no período de 2017 até 2021 para atuar no combate ao garimpo ilegal no Brasil e ao comércio ilegal de ouro no país.” Além disso, ela apresenta em seu site o “book ANORO”[4], onde uma das principais demandas é o pedido para “que seja revisto o parecer da AGU por este atual Governo e que possa ser liberado a atividade de mineração/garimpagem, dentro das Unidades de Conservação de Uso Sustentável, em todo território nacional, por exemplo (FLONAs e Reservas Extrativistas).”
O Instituto Socioambiental (ISA)[5] chama atenção para alguns conflitos particulares entre áreas protegidas e garimpeiros no vale do Tapajós. “A FLONA do Amanã, FLONA do Jamanxim, FLONA do Crepori e FLONA do Trairão, é encabeçado pela ANORO (…). No âmbito do Plano BR-163 Sustentável, a antiga delimitação da Reserva Garimpeira do Tapajós teve mais de 85% de sua área destinada à criação da APA Tapajós, FLONA do Crepori, FLONA do Jamanxim, PARNA do Jamanxim e PARNA do Rio Novo. De acordo com o presidente da ANORO, Dirceu Santos, “[O Plano BR-163 Sustentável] veio sem considerar que a principal atividade econômica ao longo dos 1000 km da estrada é o garimpo. O umbigo do mundo está na região do Tapajós, que abrigou o mais antigo vulcão do mundo, com grande incidência de minérios […] Geodiversidade vem antes da biodiversidade: você pode transportar uma floresta, mas não pode transportar uma mina ou uma jazida “.” Ou seja, o interesse por garimpar em FLONAs tem grande centralidade na Amazônia e em especial no Tapajós.
É a luz desses pleitos relatados que precisamos analisar a formulação do PL nº 5.822, de 2019. Vejamos o papel do Relator, Nereu Crispim deputado pelo Rio Grande do Sul, na tramitação do PL. No dia primeiro de junho de 2021, o mesmo deu parecer negativo ao PL alegando que não havia legalidade no conteúdo da proposição.
O Projeto de Lei nº 5.822, de 2019, foi apresentado pelo nobre Deputado Delegado Éder Mauro com o objetivo, externado em sua justificação e na própria ementa da proposição, de permitir a lavra garimpeira em áreas de Floresta Nacional (FLONA).
Ocorre que o dispositivo modificado pelo projeto não se refere a floresta nacional. Constata-se que o artigo 18 da Lei nº 9.985, de 2000, trata especificamente de reserva extrativista, uma modalidade específica de unidade de conservação, na qual, de fato, é vedada a atividade minerária: “Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. § 6º São proibidas a exploração de recursos minerais e a caça amadorística ou profissional. […]
Desse modo, não vemos razão para que a matéria seja aprovada, tendo em vista que as preocupações externadas pelo autor já se encontram atendidas na legislação vigente, exceto para o caso das reservas extrativistas, como acima mencionado.
Diante do exposto, votamos pela REJEIÇÃO do Projeto de Lei nº 5.822, de 2019.
Após um mês, não sabemos quais foram as motivações ou pressões que o deputado recebeu da Presidência da República e dos Parlamentares que representam os garimpeiros, mas o fato é que o mesmo reapresentou um segundo parecer propondo votação a partir de um substitutivo construído por ele, onde reorganizou a proposta original para Floresta Nacional e não mais em reserva extrativa.
Parece que esteve em curso o lobby duplo que alterou a posição do relator dentro da Comissão de Minas e Energia (CME) da Câmara dos Deputados. Garantindo ambos interesses, por um lado reorganiza a base garimpeira do governo – aprovando esse PL na CME – e ao mesmo tempo não gera conflitos com as multinacionais do setor que são as donas dos títulos que impedem a criação das PLG’s no território brasileiro. Também há o Grupo de Trabalho Mineração que foi criado na Câmara dos Deputados sem a intencionalidade prévia de alterar a questão tributária, defendendo os interesses do setor.
É de conhecimento de todos os brasileiros os danos e conflitos causados pela extração mineral, seja por garimpo ou pela mineração industrial. Deste modo, não podemos aceitar a aprovação desse PL que irá aumentar os conflitos nos territórios e danos ao meio ambiente.
Aos Deputados que compõem a CME da Câmara, suas bases eleitorais saberão como vossa excelência votou nessa matéria!
Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente a Mineração
[1] Garimpos no Pará adotam escavadeiras e amplificam destruição. Disponível aqui.
[2] Garimpos jogam uma ‘Samarco’ a cada 12 anos no rio Tapajós. Disponível aqui.
[3] Íntegra da resposta da Anoro. Disponível aqui.
[4] Book Anoro. Disponível aqui.
[5] Garimpo ilegal em Áreas Protegidas na bacia do Tapajós. Disponível aqui.
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Garimpeiros querem legalizar atividades ilegais em Florestas Nacionais com a aprovação do PL 5.822, na CME - Instituto Humanitas Unisinos - IHU