09 Setembro 2021
"É a hospitalidade ética que cada um poderá demonstrar para com os outros que provará quem é o verdadeiro herdeiro dessa utopia", afirmou Gaël Giraud, jesuíta e economista francês, em diálogo com o economista senegalês Felwine Sarr, publicado por Il Fatto Quotidiano, 08-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gaël Giraud — As culturas negro-africanas e as espiritualidades orientais poderiam ensinar os europeus a se tornarem filhos de Kant. Como o planeta é redondo e finito, escreveu Kant, estamos de alguma forma "condenados" à hospitalidade; o cosmopolitismo deve ser hospitaleiro.
Com a sua afirmação, Kant retomou o fio do Evangelho naquilo que ele tem de mais radical: o teólogo Christoph Theobald não hesita em fazer da hospitalidade o sinal messiânico por excelência.
O interessante sobre Kant é que ele vincula essa experiência messiânica à finitude da criação. Seja como for, é isso que a Europa não conhece mais, pois parece ter confinado a experiência cosmopolita a uma pequena elite financeira de mônadas que não conhecem mais enraizamentos nacionais.
É uma minúscula minoria que passa a vida nas salas VIP dos aeroportos, debruçada sobre o seu smartphone 5G, não entendendo mais o que vivem aqueles dois terços da população da Europa Ocidental que não tiveram ensino superior. O gap não é mais apenas financeiro, é também educacional e, em última instância, cultural. E, como o elevador social, fruto da escola da Terceira República, está fora de serviço desde meados dos anos 1990, esses dois terços da população sofrem com a ansiedade e a realidade do rebaixamento, no final do mês ter que ir às compras na loja solidária, e os serviços de reanimação sobrecarregados quando eclode uma epidemia... diante de um punhado de privilegiados que um terço da população com "educação superior" tenta imitar a todo custo.
Um terço é muito, observou o sociólogo Emmanuel Todd. Pode-se viver em endogamia quase completa e, consequentemente, tornar-se perfeitamente ignorantes do que milhões de homens e mulheres em situação de pobreza vivenciam na França (ou seja, com menos de 60% da renda média, cerca de 1.000 euros por mês) e também todos os outros que têm um único medo: despencar, por sua vez, na miséria. Assim, quando as classes populares vão às ruas, fazem greve ou, o que dá no mesmo, votam em Le Pen, a pequena elite "cosmopolita" sente-se fortemente tentada pela síndrome da fuga a Varennes. A meu ver, esta é precisamente uma das questões em jogo no diálogo entre os gilets jaunes e as elites dos centros das cidades que têm nas mãos as rédeas midiáticas, políticas e financeiras.
Felwine Sarr — Da maneira como você o descreve, o fenômeno também parece explicar a “insensibilidade” daqueles 10% dos super ricos em relação à maioria da população humana. Ou mesmo aquela do conjunto dos povos euro-americanos, que, embora percebendo que há algo de errado se eles detêm sozinhos 80% das riquezas do planeta, fundamentalmente não se identificam com as humanidades do chamado Sul global; no máximo pode acontecer que tenham pena ou comiseração, o que é diferente da compaixão ou da fraternidade comum. Certamente não pretendo generalizar: seres de boa vontade existem em toda parte. Isso não tira o fato de que as sociedades ocidentais parecem ter dificuldade para renunciar a um estilo de vida que devasta o planeta e do qual o mundo inteiro deve arcar com os custos, bem como estabelecer relações econômicas mais equitativas com o resto do mundo.
Gaël Giraud — O que você está dizendo me faz pensar na parábola dos três anéis de Lessing, outro grande Aufklärer (filósofo do Iluminismo), contida em seu Nathan, o Sábio. Um pai morre, e ele é um rei. Cada um de seus três filhos pretende ser o herdeiro legítimo, pois detém o anel do poder. Portanto, é óbvio que dois dos três anéis são falsos. Apenas um pode ser autêntico. Como reconhecer qual deles? No final, chega o profeta Nathan e diz essencialmente aos três homens: “Na verdade não se sabe quem é o verdadeiro herdeiro, ignora-se qual de vocês possui o anel verdadeiro. Mas será descoberto no decorrer da história, graças à hospitalidade ética que cada um terá para com os outros irmãos”.
Claro, o que Lessing tem em mente quando escreve são as três religiões abraâmicas que disputam o território europeu e a legitimidade do legado de Abraão. Mas, na verdade, poder-se-ia dizer que é o legado da utopia democrática e igualitária em busca de um herdeiro. Um dos três filhos é a Europa, as Europas, outro poderia ser a África, as Áfricas. Não existem três herdeiros, são 60! Afinal, é a hospitalidade ética que cada um poderá demonstrar para com os outros que provará quem é o verdadeiro herdeiro dessa utopia.
Felwine Sarr — Concordo neste ponto. Não é mais o momento de proclamar valores, mas de encarná-los. Aqui está o grande déficit. Tínhamos uma Europa declarativa. Mas quando se trata de encarnar essas proclamações no mundo contemporâneo, na crise mundial que estamos atravessando, na atualidade do mundo - que é realmente candente: Israel, Palestina, a embaixada estadunidense em Jerusalém, os mortos em Gaza ... - há como um impasse. O fato de, do ponto de vista ético, nem chegarmos a nomear um massacre como tal, a designar com seu nome os crimes e as violências, e de não cessarmos de eufemizar a realidade com a linguagem, é precisamente o sinal da dicotomia total entre a capacidade de declarar os valores, que são desfraldados e propalados em todo o mundo, e a capacidade de encarná-los. É talvez nessa lacuna que devemos buscar uma abertura.
No que diz respeito à hospitalidade, notamos que a Alemanha fez um esforço considerável em 2019 - um gesto que teve um enorme custo político para Angela Merkel - mas pergunto-me se é sabido que em certos países africanos a população estrangeira pode chegar a 40%. Pessoas que ainda assim são acolhidas. Um percentual que pode chegar e até ultrapassar 50%. A ideia seria ir além do preceito ético da hospitalidade e torná-lo uma cosmopolítica que uniria os Estados entre si, obrigando-os a acolher a vida temporariamente fragilizada e cuidar dela. Passar do dever de hospitalidade ao direito à hospitalidade, com todas as obrigações vinculantes que decorrem do direito.
Gaël Giraud — Qual país você tem em mente? Costa do Marfim? Líbano?
Felwine Sarr — Estou pensando na Costa do Marfim... no Gabão.
Gaël Giraud — Eu também penso no Chade. Os refugiados do Darfur sudanês e da África Central representam quase um quarto da população daquele país. E é ainda mais surpreendente porque as populações autóctones não são, em muitos casos, muito menos necessitados do que as populações de refugiados hospedados em campos improvisados. No mínimo, esses campos revelam a dificuldade dos ocidentais em demonstrar hospitalidade: o campo de Lesbos, por exemplo, é a vergonha da Europa. Você mencionou os massacres de Gaza ... Poder-se-ia pensar também no livro "Rwanda, fin du silence" de um oficial francês que participou da Operação Turquoise em Ruanda. O autor reflete sobre o contínuo não-dito que se vive na França a respeito da contribuição daquela operação para atrasar o avanço da Frente Patriótica de Ruanda (Fpr)...
Felwine Sarr — Salvando assim os genocidas...
Gaël Giraud —... enquanto a FPR tentava colocar fim aos massacres...
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Só a hospitalidade ética nos salvará. Diálogo entre Gaël Giraud e Felwine Sarr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU