22 Junho 2021
Enzo Bianchi, monge italiano fundador da comunidade monástica de Bose, fala na décima sétima edição da Torino Spiritualità com uma lectio magistralis intitulada "Não se privem de um dia feliz" (tirado de um versículo do livro bíblico do Eclesiastes, 14,14: "Não te prives de um dia feliz, e não deixes escapar nenhuma parcela do precioso dom").
O artigo é publicado por La Stampa, 19-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enzo Bianchi, o fundador da comunidade monástica de Bose, fala na décima sétima edição da Torino Spiritualità com uma lectio magistralis intitulada "Não se privem de um dia feliz" (tirado de um versículo do livro bíblico do Eclesiastes, 14,14: "Não te prives de um dia feliz, e não deixes escapar nenhuma parcela do precioso dom").
Desejar faz parte do léxico astronômico e seu significado é estar longe (de) das estrelas (sidera). E quem está longe das estrelas as deseja, as busca, as quer ver e por isso quer estar com elas. Os seres humanos que estão sob as estrelas, vivem de desejo, procuram por elas, são seres desejantes...
Todos nós experimentamos o desejo, um sentimento que nos habita como uma pulsão, uma tensão, uma força. O desejo é certamente um sentimento pessoal e íntimo que brota das profundezas de um homem e de uma mulher que, no entanto, nunca são donos absolutos dele.
Em cada um de nós, não é o meu eu que deseja, mas é o desejo que deseja com força para além do nosso eu. Somos habitados pelo desejo, possuídos pelo desejo e essa experiência nos faz dizer que o desejo pode nos dominar, nos alienar, nos arrastar. É por isso que devemos nos ver como "desejantes". O que está na raiz de todos os desejos humanos? Existe a nossa indigência, a nossa condição de necessidade, de falta de vida plena, a nossa limitação. Permanece profundamente verdadeiro na experiência do desejo ter que operar um discernimento sobre o desejo quando ele surge: de fato, o desejo é um sentimento complexo, polifônico. Pode ser um desejo por coisas boas, portanto um desejo bom, e pode ser um desejo por coisas ruins, portanto, um desejo ruim.
O desejo pode se tornar ganância, voracidade, fome, concupiscência em uma linguagem ético-cristã. Nas tradições religiosas, o desejo é frequentemente visto com desconfiança, e não é por acaso que o maior conselho da sabedoria budista indica a necessidade de extinguir todo desejo. Na tradição judaica e cristã não existe uma posição negativa em relação a esse sentimento e, no entanto, continua a ser significativo que nas dez palavras dadas por Deus a Moisés no Sinai duas vezes aparece a proibição "Não desejarás ..." (em Ex 20 e Dt 5).
Duas vezes é pedido com autoridade para aniquilar o desejo que pode surgir no coração dos humanos: o desejo da mulher que já pertence ao próximo e o desejo pelas posses ou propriedade do próximo. O verbo hebraico chamad aqui usado não remete a uma solicitação superficial, um desejo vago, mas a um desejo ao qual a vontade adere, um desejo que se transforma em ação. Desejo eficaz! Então, há um juízo negativo por esse desejo, que é uma pulsão que procede do coração, da alma. “Cada um, porém, é tentado pelo próprio mau desejo, sendo por este arrastado e seduzido. Então esse desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado, e o pecado, após ser consumado, gera a morte” (Tg 1,14).
Portanto, a guerra contra os desejos perversos, uma luta espiritual sobre a qual se demoraram os pais do deserto e os ascetas cristãos, definindo o desejo mau como a matriz de todos os males, de todos os vícios ... Mas toda a tradição bíblica também testemunha o desejo como sentimento legítimo e absolutamente bom, aliás, abençoado: desejo de vida, de felicidade ... E não se deve esquecer que toda Promessa feita por Deus no Antigo e no Novo Testamento é uma promessa de bem, de felicidade, é a satisfação do desejo humano. “Quem é o homem que deseja a vida, que quer largos dias para ver o bem?” Salmos 34,12. E toda a vida indicada por Deus é para obter esta vida e esta felicidade! Desejo de vida! Que, por outro lado, é a única vocação dos homens: viver e viver esta única vida que lhes é dada porque não existe outra! Nunca se diz o suficiente, mas o primeiro desejo, o mais verdadeiro e mais presente mesmo quando parece que se queira negá-lo, é viver! Não é por acaso que a linguagem metafórica está presente: "sede de vida", "sede de Deus". Lembrem-se do versículo do Salmo 42: "Como a corça brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus". Ou: "Desejo o Deus Vivente, a minha carne o deseja".
Linguagem que parece impossível, mas está na boca e no coração de muitos crentes que dizem estar à procura de Deus, que desejam ver o seu rosto, desejam estar com ele. É uma linguagem de amor dirigida ao Outro invisível e indizível que se torna um tu, mas mais do que uma palavra é um grito, uma invocação de vida plena, de felicidade, de saúde, de alegria que nasce das relações vividas no afeto e na comunhão dos corações.
Até mesmo o desejo de amor na Bíblia é exaltado e cantado: a mulher deseja o homem, e o homem deseja a mulher (Gn 3,16; Ct 2,16). Desejo de união de corpos, de prazer, de fortuna de amor no Cântico dos Cânticos. O desejo, mesmo quando é paixão amorosa, é uma chama de JHWH, de Deus e por isso deve ser cantado e celebrado em festas com vinho e perfumes. Não, no matrimônio bíblico não há mistificação do desejo, muito menos sua extinção: estamos nos antípodas do ascetismo budista. É até o desejo de comer e beber um bom vinho, é “porção para os humanos” que conhecem a árdua labuta de viver. Por isso o Eclesiástes diz: “Alegra-te, jovem, na tua mocidade, e recreie-se o teu coração nos dias da tua mocidade, e anda pelos caminhos do teu coração, e pela vista dos teus olhos; sabe, porém, que por todas estas coisas te trará Deus a juízo” (11,9). E ao jovem e idosos Sirach adverte: “Não te prives de um dia feliz! e não deixes escapar nenhuma parcela do precioso dom”.
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Não se privem da felicidade. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU