11 Mai 2021
Talvez o mundo ocidental deixe de ser o protagonista na formação geopolítica que poderá se efetivar em consequência da pandemia do vírus SARS-CoV-2. Esta é a suspeita de Pascal Boniface, diretor do Instituto Francês de Relações Internacionais e Estratégicas, embora ainda se mostre cauteloso com o seu diagnóstico.
Ainda que o coronavírus tenha tido a sua origem na China, os países asiáticos demonstraram maior eficácia no momento de controlar a sua circulação. A influência conquistada por eles, quando se pensa em política internacional, enfrenta diversas resistências culturais do ocidente para entender a instrumentalidade de suas ações e seus métodos.
“A economia da China representava 10% do PIB dos Estados Unidos, no ano de 2001. Hoje, representa 65%. A URSS, durante a Guerra Fria, não ultrapassou 40% do PIB norte-americano”, destaca Boniface.
Estes dados e a presença da China como o único país que demonstra uma economia sólida diante dos desdobramentos da pandemia podem ser lidos em paralelo à destreza demonstrada pela Rússia em criar sua vacina Sputnik V, em pouco tempo, e a validação científica que a revista médica britânica The Lancet lhe atribuiu.
“Existe uma tendência ocidental a considerar como ditaduras todos os países que não são ocidentais”, avalia o especialista em geopolítica, e avança: “Não existe uma oposição entre democracias ocidentais e ditaduras não ocidentais”.
Por isso, o professor de relações internacionais na Universidade Paris VIII estabelece uma classificação de três tipos de países em função de sua resposta política e sanitária, ao se confirmar o estado de pandemia. Os que implementaram uma ação imediata e avançaram em cuidados urgentes, entre os quais identifica China, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Nova Zelândia e Vietnã. Os que reagiram mais tarde e, aqui, coloca especialmente a Europa e boa parte dos países da América Latina. Finalmente, aqueles que negaram a situação, entre os quais se destacam sem brilho os Estados Unidos e o Brasil.
Esta descrição serve para que Boniface explique a primeira derrota dos Estados Unidos e o enfraquecimento da Europa em uma conjuntura que experimenta as sequelas sanitárias de “uma guerra sem guerra”.
Boniface publicou na França o livro Géopolitique du coronavirus (Editora Eyrolles). Pode-se dizer que o livro é um exercício, no calor da hora, no qual o autor se permite compartilhar seu próprio desconcerto: “Ninguém poderia ter previsto a pandemia. Realmente, ninguém? Ou não estivemos suficientemente atentos a certas advertências? A crise da Covid-19 pode parecer incrível, estritamente falando. De fato, muitas pessoas, incluídos muitos líderes políticos, aqueles a quem geralmente é atribuído um comportamento racional, inicialmente, não acreditaram”, aponta Boniface, e enfatiza uma ideia terminante: os países que se percebiam e eram percebidos como os donos do mundo, tanto pelas decisões econômicas como pela incidência ideológica, sofreram “uma lição de modéstia”.
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín-Revista Ñ, 09-05-2021. A tradução é do Cepat.
Você destaca que a pandemia de Covid-19 está a meio caminho entre um acontecimento conjuntural e uma revolução estrutural. Os países que historicamente conferiram maior centralidade ao Estado saem mais fortalecidos desta crise?
A crise da Covid-19 é a primeira crise internacional importante, desde 1945, na qual os Estados Unidos não desempenham um papel predominante. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos assumiram a liderança do mundo livre e dirigiu não somente o mundo ocidental, mas também teve uma influência determinante no conjunto dos assuntos mundiais.
Como resultado da política de retirada do presidente Donald Trump, sua America first se transformou em uma América só, desolada. Os Estados Unidos, por outro lado, são um dos países que mais duramente foi golpeado pela crise e não participou na gestão internacional, fechando as portas para a Organização Mundial da Saúde. Podemos fazer várias críticas a esta organização, mas certamente era o pior momento para deixá-la.
De qualquer modo, a erosão do peso dos Estados Unidos na vida internacional é muito antiga. Embora Trump tenha deixado a Casa Branca, sabemos que Joe Biden desejará reinserir os Estados Unidos na vida internacional, penso que esta crise veio para reforçar elementos estruturais já existentes. A ascensão em potência da China, a crise do multilateralismo, a rivalidade entre a China e os Estados Unidos, a perda do monopólio ocidental no poder, mas não criou realmente nenhuma situação nova. Sim, seria possível dizer, em todo caso, que mudou os termos profundamente. Acentuou, ampliou, exacerbou, tanto a sua realidade como a sua percepção.
Levando em consideração que o sistema de saúde norte-americano foi central neste enfraquecimento de sua política, vem um mundo em que o fortalecimento e o predomínio estatal serão fundamentais?
O mundo ocidental há muito tempo perdeu o monopólio do poder que exerceu durante cinco séculos. O problema é que ninguém parece notar. A crise da Covid-19 trouxe isso especialmente à luz. Os Estados Unidos, os países da Europa ocidental e os países latino-americanos pagaram o mais pesado tributo à crise. Os países asiáticos são os que se saíram melhor.
A diferença não reside, como se diz em todas as partes, entre países autoritários e países democráticos. A Coreia do Sul e Taiwan, que são perfeitas democracias, pouparam os pesos que muitos países ocidentais tiveram que enfrentar. O que fez a diferença foi privilegiar o grupo acima do indivíduo e as medidas enérgicas ser tomadas como decisões de estado.
O predomínio do mercado deixou alguns países em situação mais vulnerável diante da pandemia?
Inicialmente, os países ocidentais avaliaram que não seriam afetados porque, segundo o seu critério, as pandemias eram monopólio da Ásia e África. Pudemos ver as fossas comuns em Nova York e os hospitais lotados na Europa ocidental. Foi um choque psicológico importante, em nível mundial.
A situação está longe de ser resolvida. A intervenção do Estado é determinante, especialmente em matéria de saúde pública. Haverá grandes injustiças sociais na luta contra a pandemia. As vacinas não serão acessíveis a todos.
Por outro lado, quando se trata de inovação tecnológica, o mercado pode ser mais eficiente que o Estado. É necessário, então, que haja uma justa repartição de esforços e, sobretudo, uma coordenação entre os dois. O Estado deve guardar o seu papel de coordenador e fazer com que o mercado receba uma espécie de estímulo.
Embora a globalização possibilitou que o vírus circulasse de maneira mais rápida, você destaca que não é possível encontrar uma solução sem a coordenação entre os países. É possível existir um mundo não globalizado? Está claro que do ponto de vista digital é impossível, mas o mundo do futuro será um mundo onde a circulação das pessoas será menor?
A crise da Covid-19 transformou um mundo que se movimentava o tempo todo em um mundo imóvel. Viajávamos cada vez mais intensamente e, às vezes, parecia que as fronteiras não existiam. Com as medidas de distanciamento social, os indivíduos não só não saíam de seus países, como também de suas cidades ou de suas regiões. Mas isto não está destinado a durar.
Do mesmo modo que é exagero falar em fim das fronteiras antes da crise da Covid-19, é exagero pensar que serão totalmente herméticas, a partir deste momento. De modo muito rápido retomaremos o hábito de viajar. É claro, pode ser que ocorram cada vez mais eventos virtuais, mas o encontro direto, o contato pessoal, não pode ser substituído.
Você destaca que Donald Trump perdeu as eleições por causa da pandemia. Por que Bernie Sanders não conseguiu capitalizar esse cenário político?
Bernie Sanders certamente parecia muito radical para ganhar a indicação dentro do Partido Democrata. A máquina se organizou para colocar Joe Biden, muito mais centrista, no poder.
No curso da campanha, Biden e Trump se acusavam mutuamente de ser o candidato preferido de Pequim. Trump declarou: “If you want to stop China, stop Biden”. Isso deu a entender que o caráter errático da política de Trump só podia ser apreciado por Pequim.
Por que considera que a derrota de Trump não é uma vitória para a China?
Pessoalmente, penso que a China terá muito mais problemas para lidar com Biden do que com Trump, porque não será o que parece: Biden não irá estreitar os vínculos com os aliados, aqueles aliados que Trump havia amplamente prejudicado. Os partidários de Biden dizem que a gestão caótica de Trump na política internacional permitia à China avançar mais facilmente nos fóruns internacionais.
E qual considera que deveria ser o lugar da Europa neste cenário?
A Europa pode ter colaborações com a China, mas em muitas questões existe uma situação de rivalidade. Posso dizer que em temas como a luta contra o aquecimento climático ou o dossiê nuclear iraniano, estamos em harmonia. Sobre o plano de concorrência comercial, temos críticas a fazer à China (descumprimento da propriedade industrial, fechamento de mercados), e temos grandes divergências sobre a natureza de seu sistema político.
Mas, por outro lado, o problema dos Estados Unidos em relação à China é a rivalidade pelo primeiro lugar como potência mundial. Isto não tem relação com a Europa. A Europa deve definir sua política em função de seus interesses e não se determinar em função dos interesses chineses ou americanos. Deve funcionar com um polo de poder e não como o parceiro júnior de Washington ou Pequim.
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“O mundo ocidental há muito tempo perdeu o monopólio do poder que exerceu durante cinco séculos”. Entrevista com Pascal Boniface - Instituto Humanitas Unisinos - IHU