04 Mai 2021
A meritocracia, apesar das aparentes e ruidosas críticas, continua soberana e rindo daqueles que supõem que haverá, nos marcos do capitalismo, lugar para todos/as, escreve Berenice Bento é professora no Departamento de Sociologia da UnB, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 03-05-2021.
Não sei quando escutei pela primeira vez na minha vida que o esforço, a disciplina seriam condições primeiras para eu me tornar gente. Na boca de minha mãe saíam palavras encantadas: “você precisa estudar para ser alguém na vida”. Talvez de formas distintas, este mantra possa ser identificado como um dos eixos estruturantes da vida social brasileira. Pela voz dos/as estudantes vejo suas mães e revejo a minha mãe. Ali estão eles/elas em uma sala de aula, tentando fazer-se gente.
As reflexões que tenho realizado na minha trajetória acadêmica, inicialmente marcadas pelas teorias feministas, de certa forma, me liberaram dessa crença inicial que foi incorporada na fase da vida em que tudo que pai/mãe dizem é interiorizado como verdades absolutas. Quando, em algum momento de nossas vidas, nos damos conta de que há condições históricas, sociais e econômicas que antecedem ao nosso desejo, nos deparamos com dois caminhos possíveis para lidar com os dilemas ou rupturas com os valores interiorizados: ou fazemos o esforço para entender por que determinadas condições de possibilidades me foram negadas (por ser negra/o, mulher, transexual, indígena) ou tentamos negociar individualmente com estas mesmas condições que limitam o nosso acesso aos bens materiais e simbólicos socialmente disputados. No primeiro caso, estamos diante de dilemas que se voltam para a história fora de nós. No segundo, somos nós, no mundo da vida, que tentamos sobreviver e “furar” o cerco das barreiras. É aqui, nesse segundo movimento, que a noção de meritocracia impera.
Meritocracia pode ser compreendida como um sistema de hierarquização e premiação baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo. Etimologicamente, vem do latim meritum (mérito) e cracía (“poder”). O poder do mérito está assentado na suposição de qualidades individuais, resultado dos seus esforços e dedicações. Este termo foi utilizado pela primeira vez por Michael Young, no livro Rise of the Meritocracy (Levantar da Meritocracia), publicado em 1958. Nesse livro de Young, o mérito é entendido como um termo pejorativo, uma vez que se relacionava com a narração de uma sociedade que seria segregada, tendo como base dois principais aspectos: a inteligência (QI elevado) e um grande nível de esforço. As melhores posições hierárquicas estariam condicionadas às pessoas que apresentam os melhores valores educacionais, morais e aptidões técnicas ou profissionais específicas e qualificadas em determinada área.
O sistema meritocrático de recompensa é amplamente aplicado por empresas e organizações privadas, mediante a valorização e premiação de profissionais que apresentam melhores produções, seja com aumentos de salário ou oferta de cargos superiores. A meritocracia nas empresas é uma forma de motivar os funcionários que se dedicam em suas funções em busca de alcançar melhores oportunidades como consequências dos méritos apresentados.
Há uma multiplicidade de vozes que aponta o caráter ideológico de se atribuir o sucesso aos esforços individuais. Os dados da estratificação social seguem apontando diferenças salariais consideráveis entre homens e mulheres que realizam as mesmas tarefas. Estas diferenças aprofundam-se quando se cruza outros marcadores sociais da diferença (por exemplo: raça, sexualidade, origem). Quando não se considera as condições históricas que possibilitaram que determinadas identidades e corporalidades ascenderam socialmente, temos a seguinte possibilidade explicativa: há pessoas com determinados atributos que, de fato, são mais inteligentes e disciplinadas. Encontramos aqui a explicação de caráter essencialista.
A meritocracia pode ser compreendida como o tutano do liberalismo. Aqui, o indivíduo é apresentado como um ser livre de condicionantes sociais. Ele é capaz de se parir e, do nada, torna-se ser. Racismo, misoginia, transfobia, xenofobia são termos estranhos àqueles/as que acreditam que o esforço individual é a medida de todas as coisas, e o mercado de trabalho seria o lugar de veridição, aquele que fará o julgamento final das qualidades que cada um possui. A crítica à meritocracia não faz sentido caso não traga para o centro do debate o mercado capitalista, local de produção reiterada das desigualdades.
No entanto, o que se pode observar é uma contradição que segue operando o debate sobre meritocracia e justiça social. A fala do crítico à meritocracia só é ouvida porque ele mesmo é uma pessoa de sucesso. Conforme apontei, a meritocracia é um sistema de premiação. O que acontece com alguém que critica a meritocracia fechando seu eixo de crítica a uma determinada população? Ela/ela será convidado/a para falar em programas de televisão, se tornará a/o ídolo/a de famosos/as e produzirá o desejo de outras pessoas excluídas serem como ele/ela.
É comum escutarmos também que a visibilidade pelo sucesso é importante para produção de identificações. E assim, caminhamos em círculos. O que está em jogo? Uma aliança é formada entre o/a crítico/a domesticado/a da meritocracia e o mercado. Um dos eixos que fazem a meritocracia funcionar é produzir um quantum de gente de sucesso para que haja a produção, incessante, de identificações com as pessoas de sucesso. Há uma aliança não dita entre o/a crítico/a domesticado/a e o mercado, fundamentada no silêncio, no ocultamente de uma verdade simples: a regra no capitalismo é exceção. Com esta excepcionalidade que os novos críticos de sucesso da meritocracia têm feito seu ganha-pão.
A narrativa tradicional do sucesso combina pobreza familiar e esforço pessoal. O que se tem observado, nos últimos anos, é algo novo: sujeitos pertencentes a determinadas populações historicamente excluídas que passam a falar em nome dessa população e apontar/denunciar a ilusão da meritocracia. Onde está o nó dessa crítica à meritocracia? Na redução da crítica ao caráter sistemático da exclusão. A crítica à meritocracia é feita como se, pela força da crítica da situação específica da “minha população”, todas as mulheres conseguissem entrar no mercado de trabalho e ter condições dignas de remuneração e reconhecimento. Assim, a crítica à meritocracia fecha-se sobre si mesma. A trava invisível que existe para que as mulheres ascendam a determinados lugares faz com que eu eleja, na minha crítica à meritocracia, a dimensão de gênero para lê-la.
A crítica domesticada à meritocracia termina por ter regozijo com a eleição de uma mulher negra como vice-presidenta nos Estado Unidos, com a nomeação de um general negro como Secretário de Defesa dos Estados Unidos. Eu fico imaginando se há muita diferença para os Estados-nação destruídos pelas invasões estadunidenses se, no comando, estivesse um negro ou uma branca. De agora em diante, o Império irá produzir guerras, continuará a sustentar o apartheid e o colonialismo israelense com as caras que nos parecem mais palatáveis. Finalmente, estamos representados/as! E novas gerações aprenderão que o sucesso é possível porque já terão com quem se identificar.
Não se pode articular crítica à meritocracia com as lutas identitárias? O que vulgarmente se chama de “luta identitária”, eu chamo de luta pela vida. Construir análises e políticas pela vida de populações que foram e são excluídas de direitos fundamentais, que são atiradas a condições de absoluta precariedade, não pode ser reduzido à simplificação de “luta identitária”. Mas não existe vida não precária para todos/as no capitalismo. O capitalismo se nutre do exemplo, do herói, daquele que produz a narrativa da superação, de travessias impossíveis.
Como é possível fazer a crítica à meritocracia e, ao mesmo tempo, silenciar para o pacto da Rede Globo com os interesses do mercado? Como sustentar uma crítica coerente à meritocracia se ofereço meu sucesso para fazer propagandas de um Aplicativo que mantem relações de trabalho similar aos primeiros tempos do capitalismo (jornadas de trabalho de 18 horas, salários miseráveis, ausência de qualquer direito). Eu, com o meu lugar de fala, porque sou eu, minha história, minha corporalidade, me coloco à disposição da máquina capitalista. Assim, o lugar da crítica alimenta-se ele mesmo das substâncias que acredita negar.
A meritocracia, apesar das aparentes e ruidosas críticas, continua soberana e rindo daqueles que supõem que haverá, nos marcos do capitalismo, lugar para todos/as. Instrumentaliza-se a crítica como forma de negar a crítica.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Crítica da crítica à meritocracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU